sexta-feira, 26 de julho de 2013

Casacos

Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, 1775-1854
 "Observe-se o casaco de Schelling", escreve Walter Benjamin na Pequena história da fotografia, "observe-se o casaco de Schelling, na foto que dele se preservou". Ali está o tempo, afirma Benjamin: "esse casaco se tornou tão imortal quanto o filósofo: as formas que ele assumiu no corpo de seu proprietário não são menos valiosas que as rugas no seu rosto". Benjamin não fala, mas pode ter pensado na mão de Napoleão, a mão direita de Napoleão, sempre metida pela metade na abertura do dolmã - será que aquela protuberância se mantinha no tecido mesmo depois de retirada a mão?
Impossível não lembrar do fantástico livrinho de Peter Stallybrass, O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Se para Benjamin o casaco de Schelling diz alguma coisa, em suas dobras e em sua imortalidade, da vida e do trabalho do filósofo, para Stallybrass o casaco de Marx é uma trágica e irônica e quase imperceptível alegoria não apenas da vida cotidiana de Marx, mas de toda obra vasta e complexa que produziu. "O casaco de inverno de Marx estava destinado a entrar e a sair da loja de penhores durante todo os anos 1850 e o início dos anos 1860", escreve Stallybrass. "E seu casaco determinava diretamente que trabalho ele podia fazer ou não. Se seu casaco estivesse na loja de penhores durante o inverno ele não podia ir ao Museu Britânico. Se ele não pudesse ir ao Museu Britânico, ele não podia realizar a pesquisa para O Capital. As roupas que Marx vestia determinavam assim o que ele escrevia" (Autêntica, Tradução de Tomaz Tadeu, p. 48).

terça-feira, 23 de julho de 2013

Sade, 1956

Em 1947, Jean-Jacques Pauvert começa a editar as obras completas do Marquês de Sade. Em 1956, é intimado a comparecer diante da Justiça Francesa para responder a um processo de atentado contra a moral. Depois do resultado favorável, é o próprio Pauvert quem publica, em 1957, um relatório do processo, uma espécie de resumo do percurso sadiano até então: L'Affaire Sade. Paris: Pauvert, 1957. Além do próprio editor, a defesa valeu-se dos testemunhos de André Breton, Jean Cocteau, Jean Paulhan e Georges Bataille que, de distintas perspectivas, confirmaram a importância da obra sadiana para o conhecimento mais profundo da condição humana. No ano de publicação do affaire Sade, 1957, completavam-se exatos cem anos de dois outros processos envolvendo escritores: Baudelaire, com as Flores do mal, que foi condenado e teve de pagar multa, e Flaubert, com Madame Bovary, que foi absolvido.  

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Prefácios

Antoine Compagnon, em O trabalho da citação (p. 128-134), fala de Hegel e do prefácio que escreveu à Fenomenologia do espírito. Um prefácio que condena a escrita de prefácios, uma vez que quando o autor explica o fim pretendido por seu trabalho esvazia seu sentido filosófico. O prefácio, escreve Hegel, na citação de Compagnon, é "sem valor como modo de exposição da verdade", e, ainda assim, Hegel o faz, mesmo que negativamente. O outro extremo apresentado por Compagnon é Descartes - pois, se Hegel faz um prefácio contra o ato de fazer prefácios, o prefácio de Descartes (a Princípios de Filosofia) é um prefácio no condicional, um prefácio imaginado, aquilo que é feito se eventualmente ele pudesse de fato escrever um prefácio.
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"Deveria escrever um novo prefácio para este livro já velho", escreve Foucault em História da loucura, e continua: "confesso que a ideia não me agrada, pois isso seria inútil". O livro já se multiplicou, já está fragmentado e fora de qualquer possibilidade de controle. Mas, "para quem escreve o livro", é grande a tentação "de legislar sobre todo esse resplandecer de simulacros, prescrever-lhes uma forma". O prefácio leva à tentação da tirania, do controle: leva à tentação do "sou o autor", escreve Foucault. O desejo que apresenta no prefácio é outro: gostaria que o livro "tivesse a desenvoltura de apresentar-se como discurso: simultaneamente batalha e arma, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível". E nas duas últimas linhas Foucault resgata a aporia hegeliana: " - Mas você acabou de fazer um prefácio! - Pelo menos é curto".

sábado, 13 de julho de 2013

Sentinelas

Freud dividiu as Conferências introdutórias à psicanálise em duas partes: as 14 primeiras lições foram proferidas no semestre de inverno de 1915-1916; as 14 lições restantes, no semestre de inverno de 1916-1917 (as Novas conferências vieram só em 1933). Na lição de número 19, sobre o recalque, Freud apresenta uma concepção espacial da consciência: o sistema do inconsciente como "um grande salão de entrada", no qual os impulsos psíquicos "se empurram uns aos outros". Junto a este salão de entrada existe uma segunda sala, menor, "a consciência". No limiar entre as duas salas, "um guarda desempenha sua função": examina os diversos impulsos psíquicos, "age como censor". O que está no salão do inconsciente deve permanecer invisível ao consciente - mas se há infiltração no limiar e se o guarda entra em ação, surge o recalcado. Entretanto, escreve Freud, "os próprios impulsos que o guarda permitiu que cruzassem o limiar, não são, também, só por causa disso, necessariamente conscientes"; serão conscientes se conseguirem chamar a atenção da consciência. A segunda sala passa então a ser o "sistema do pré-consciente". Para qualquer impulso, porém, "a destinação do recalque consiste em o guarda não lhe permitir passar do sistema do inconsciente para o do pré-consciente".
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No outono de 1946, "momento mais miserável da crise europeia do pós-guerra", escreve Sloterdijk nas Regras para o parque humano, no outono de 1946, portanto, Heidegger escreveu seu célebre artigo sobre o humanismo - "um texto que também se poderia entender, à primeira vista, como uma carta mais longa a amigos". A carta de Heidegger é uma resposta a Jean Beaufret, que questionava: "como devolver sentido à palavra humanismo?". Não é preciso, afirma Heidegger, pelo contrário: o humanismo, ao longo de dois mil anos, desviou o homem de sua essência através de vários subterfúgios metafísicos. A essência do ser, para Heidegger, está para além do homem como "animal racional" (a expressão subestima o valor do ser, segundo Heidegger). Para ele, escreve Sloterdijk, "a essência do ser humano não pode jamais ser expressa em uma perspectiva zoológica ou biológica, mesmo que a ela se acresça regularmente um fator espiritual ou transcendente". Nesse ponto, continua Sloterdijk, "Heidegger é inexorável, caminhando entre o animal e o ser humano como um anjo colérico com espada em riste para impedir qualquer comunhão ontológica entre ambos" (Regras para o parque humano, tradução de José Oscar Marques, Estação Liberdade, p. 25). 

sábado, 6 de julho de 2013

A casa e o retorno

"Ló deixa Sodoma", Liber Chronicarum, 1493
1) No que diz respeito à questão da casa, da morada, é impossível ignorar esse aspecto da possibilidade de retorno. Que é justamente a perspectiva dada por Jacques Derrida em sua longa exposição sobre os sapatos de Van Gogh, ou seja, a exposição que oscila entre Heidegger e Meyer Schapiro, entre a ideia dos sapatos genéricos, que simbolizam a terra e a técnica, ou os sapatos como memória material da inquietude e do exílio. Não faz parte do horizonte teórico de Heidegger a possibilidade de aniquilamento da morada - esse aniquilamento da construção é o que permanece suspenso em Kafka, ao infinito; e é esse aniquilamento que Blanchot experimenta diante do pelotão de fuzilamento dos nazistas.
2) Em entrevista recente, Aleksandar Hemon fala de Bruno Schulz: "um judeu polonês que passou a vida inteira em um mesmo vilarejo que, devido aos conflitos da primeira metade do século XX, pertenceu a cinco países diferentes". Para qual casa retornava Bruno Schulz (como quando voltou da única viagem que fez a Paris, em 1938)? Uma casa que no fim já não era mais sua, estava ocupada. A morada de Schulz, depois de sua morte, ultrapassou o ponto possível de restituição - foi diluída, sua localização é fantasmática. A glosa dessa impossibilidade de retorno à casa de Schulz foi feita por seu leitor fiel, Danilo Kis, em Um túmulo para Boris Davidovitch
3) Por essa perspectiva, não deixa de ser irônico o fato de Nabokov ter passado seus últimos anos de vida em um hotel - que é, potencialmente, a casa de qualquer um, mas, no fim das contas, não é casa de quem quer que seja. Ou talvez essa perspectiva possa lembrar também aquela passagem de Walter Benjamin sobre Baudelaire fugindo dos credores e morando em mais de 14 endereços diferentes - "entre 1842 e 1858, Crépet conta catorze endereços parisienses de Baudelaire" (Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, tradução de José Carlos M. Barbosa, Brasiliense, 1989, p. 45).  

terça-feira, 2 de julho de 2013

A casa e o nada

1) No ensaio "Heidegger e o nazismo" (em La potenza del pensiero), Giorgio Agamben conta que perguntou a Heidegger se ele havia lido Kafka - pouco, respondeu o mestre, mas havia ficado especialmente impressionado com o conto Der Bau, a toca, a construção. Um conto sobre a falência do projeto de domesticação, a falência da educação que visa a formação de novos construtores e zeladores (da tradição, dos costumes, das regras, das convenções). "Por fora é visível apenas um buraco", escreve Kafka, "mas na realidade ele não leva a parte alguma" (Um artista da fome / A construção. Tradução de Modesto Carone, Companhia das Letras, 1998, p. 63). Talvez mais do que a dissolução (a "liquidação" de Kertész e Bernhard), a ficção de Kafka trabalha com a suspensão, a aporia, o beco sem saída do humano.
2) Em um ensaio sobre o conto de Kafka, Márcia Schuback (tradutora de Ser e tempo para o português) relembra Heidegger e sua conferência intitulada "Bauen, Wohnen, Denken", construir, habitar, pensar (texto que está disponível aqui), que circula pelo mesmo campo semântico de Kafka - Der Bau, Bauen. Retorna aqui também toda a discussão de Peter Sloterdijk acerca da casa, do ser e da domesticação, da relação do homem com o animal como um complexo biopolítico - e, principalmente, o contato do ser com a linguagem através da clareira, esse espaço de emancipação e de iluminação. Porque também essa clareira é danificada por Kafka: sua construção deixa em suspenso tanto a entrada quanto a saída, a fuga e o retorno, o dentro e o fora.
3) Sempre é bom lembrar o exemplo paradigmático dado por Roberto Calasso em seu livro sobre Kafka, chamado simples e efetivamente de K. Calasso cita uma passagem de um caderno de 1922 (que está em Nachgelassene Schriften und Fragmente II): "A escrita se nega a mim", escreve Kafka. "Investigação e descoberta de elementos tão mínimos quanto possível. Com eles quero depois me construir. Como alguém que tem uma casa insegura e quer construir outra, segura, ao lado, com o material da antiga. Mas a coisa fica séria se, durante a construção, suas forças o abandonarem e então, em vez de uma casa insegura mas completa, ele ficar com uma casa semidestruída e outra pela metade, ou seja, com nada" (K., tradução de Samuel Titan Jr., Companhia das Letras, 2006, p. 25).

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Uma casa atrás de si

1) Humanismo, domesticação, controle. Para o Thomas Bernhard de Extinção é a casa paterna que representa esse cenário de inibição - é a casa que leva à fuga e, depois da morte do pai, é a doação da casa que simboliza essa "liquidação" ampla do legado (para usar um termo de Imre Kertész). Possibilidades e variedades de fuga, como no ensaio de Derrida sobre os sapatos de Van Gogh: se Meyer Schapiro é aquele que insiste na materialidade dos sapatos e na efetividade deles na vida do pintor, é porque procura deixar sempre na superfície o lado trágico da fuga; Heidegger, por outro lado, é definido por Derrida como "aquele que podia permanecer", que tinha uma casa atrás de si - e que fazia tanto da casa como do retorno premissas de seu pensamento.
2) Para Peter Sloterdijk, "a casa, os homens e o animal" formam "um complexo biopolítico". Daí decorre "a íntima conexão entre domesticidade e construção de teoria", a teoria como uma variedade de serviço doméstico, mas, "desde que saber passou a significar poder", assume também "o caráter de trabalho". A casa como centro organizador da experiência do mundo e no mundo. "Também os passeios a pé", continua Sloterdijk, "nos quais movimento e reflexão se fundem, são derivados da vida doméstica". E agora a frase que atualiza a percepção de Derrida: "as mal-afamadas caminhadas meditativas de Heidegger por campos e bosques não deixam de ser movimentos típicos de quem tem uma casa atrás de si" (Regras para o parque humano, p. 37).
3) É responsabilidade da casa formar adequados construtores de casas futuras - eis o papel do administrador, do sábio, Heidegger. O reverso da moeda está não só em Extinção, com a fuga e depois a liquidação, mas também em O sobrinho de Wittgenstein, também de Bernhard, em que a casa ganha sua feição menos edulcorada e se transforma na Instituição Psiquiátrica. Esse é o lado perverso da casa que começa a surgir em Robert Walser - também ele um caminhante meditativo - e explode nos anos de castigo de Fleur Jaeggy (aqui a instituição também é liquidada, como a casa de Bernhard). Pode-se pensar na casa paterna em Kafka, uma mescla de manicômio, prisão e museu de história natural.