sábado, 26 de setembro de 2015

Matar o estrangeiro

1) Em O pai Goriot, Balzac alude a uma passagem das obras de J. J. Rousseau, na qual esse autor pergunta ao leitor o que este faria se - sem deixar Paris, e naturalmente sem ser descoberto - pudesse matar, por um simples ato de vontade, um velho mandarim em Pequim, cujo passamento lhe traria enorme vantagem. Ele dá a entender que a vida desse dignatário não lhe parece muito garantida. "Tuer son mandarin" [matar seu mandarim] tornou-se uma expressão proverbial para essa disposição oculta, que é também dos homens de hoje. (...) Nosso inconsciente é tão inacessível à ideia da própria morte, tão ávido por matar estranhos, tão dividido (ambivalente) em relação à pessoa amada como o homem das primeiras eras. Mas como nos afastamos desse estado primevo em nossa atitude cultural-convencional diante da morte! (Freud, Considerações atuais sobre a guerra e a morte [1915]. Obras completas, vol. 12, Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos [1914-1916]. Trad. Paulo César de Souza. Cia das Letras, 2010, p. 243-245.)
2) Estou atormentado por ideias horrendas. Você leu Rousseau? - Li. 
Lembra-se daquele ponto em que pergunta ao leitor o que faria, caso pudesse ficar rico matando na China, apenas com sua vontade, um velho mandarim, sem sair de Paris? - Sim.
E então? - Ah! Já estou no trigésimo terceiro mandarim.
Não brinque. Escute, se lhe demonstrassem que a coisa é possível e que bastaria um meneio da cabeça, você o faria? - É muito velho, o mandarim? Ora, moço ou velho, paralítico ou gozando de boa saúde, por minha fé... Raios! Pois bem, não! (Balzac, Le Père Goriot, Paris: Garnier, 1963, p. 154-155). 
3) O primeiro a assinalar a conexão entre Balzac e Chateaubriand foi Paulo Rónai, "Tuer le mandarin", em Revue de littérature comparée, 10 (1930), pp. 520-3 [Rónai mostra que a atribuição da história a Rousseau por parte de Balzac é errônea; a fonte correta é Chateaubriand]. Não obstante o subtítulo, o ensaio de L. W. Keates, "Mysterious miraculous mandarin. Origins, literary paternity, implications in Ethics", Revue de littérature comparée, 40 (1966), pp. 497-525, não trata dos precedentes setecentistas. A importância dos dois excertos de Diderot para o desenvolvimento sucessivo do tema é negada explicitamente por A. Coimbra Martins, O mandarim assassinado, em Ensaios Queirosianos, Lisboa, 1967, pp. 11-266. Ver também R. Trousson, Balzac disciple et juge de Jean-Jacques Rousseau, Genebra, 1983, p. 243 e nota 11. (Carlo Ginzburg, Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 294, nota 19).

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Roth, Munro, Kepesh


Um contraste interessante com a experiência de Kepesh [protagonista de livros de Philip Roth como O animal agonizante e O professor do desejo] é o célebre conto de Alice Munro, "O urso atravessou a montanha". Munro retrata um dos mais indiscutivelmente amorosos maridos da ficção moderna, um homem devotado a sua esposa na velhice e no longo mergulho dela no mal de Alzheimer, mas um homem que, quando jovem, foi também um libertino compulsivo [assim como Kepesh]. Na verdade, ele é um professor que se afastou da trajetória convencional atraído pela sexualidade livre e pelo vale-tudo dos anos 1960, e só foi impedido de destruir seu casamento perfeito pela crescente vigilância dos cães de guarda do campus e de feministas cada vez mais furiosas. (Como diz o imoralista de Gide: "Quem há de dizer quantas paixões e quantas ideias antagônicas podem coabitar dentro de um homem?" [só de um homem?]). Kepesh toma a trilha dos anos 1960 na direção inversa - uma trilha que poucos seguiram até o destino final, e mesmo poucos se perguntaram como seria exatamente esse lugar. Determinado a "seguir a lógica da revolução até sua conclusão" e a "transformar a liberdade num sistema", ele fez da própria vida um experimento radical - que, como outros sistemas radicalmente "puros" que Roth examinou em sua obra, está fadado a fracassar.

(Claudia Roth Pierpoint. Roth libertado: o escritor e seus livros. Trad. Carlos Afonso Malferrari. Cia das Letras, 2015, p. 374).

domingo, 6 de setembro de 2015

Para cada história, uma linguagem

1) Em Infância e história, Giorgio Agamben procura relacionar linguagem, história e experiência, numa trajetória que vai de Montaigne a Benjamin com o objetivo de pensar os inúmeros pontos de contato entre a constituição do sujeito (e de comunidades, logo, da política) e o domínio ou não-domínio da linguagem ("o problema, na realidade, não é o de saber se a língua é uma menschliche Erfindung ou uma gottliche Gabe, pois ambas as hipóteses se interpenetram - do ponto de vista das ciências humanas - no mito: mas o de tomar consciência de que a origem da linguagem deve necessariamente situar-se em um ponto de fratura da oposição contínua de diacrônico e sincrônico, histórico e estrutural, no qual se possa captar a unidade-diferença de invenção e dom, humano e não humano, palavra e infância" - Infância e história, trad. Henrique Burigo, UFMG, 2008, p. 61).
2) O bárbaro é aquele que está de fora da linguagem (o bar-bar-bar dos persas, essa mímese derrisória do discurso do outro), a linguagem que inaugura uma história possível entre outras (Montaigne reconhece a possibilidade de uma história e uma linguagem nos "selvagens" e faz isso com o simples gesto de estranhar aquilo que era mais cotidiano aos europeus - mendigos nas ruas, guerras, por exemplo).
3) Assim como Lacan fala do inconsciente como uma linguagem, essa inauguração da história está ligada sempre a uma linguagem, não à linguagem, simplesmente (é da ordem do suplemento, da fuga da centralidade e da essência, para dizê-lo com Derrida - que, assim como Agamben, também faz uso da reflexão de Montaigne acerca do etnocentrismo da concepção de linguagem vigente na história do pensamento ocidental em seu ensaio sobre o jogo e o discurso das ciências humanas).