Um jovem foge de Moscou, em fins da década de 1930. Ele é um pianista, um "intelectual de merda", como escutou algumas vezes nas ruas, nas escadas de seu prédio. Seus pais foram presos. Escondido do outro lado da rua, ele nota que algo está errado em sua casa. Foge com a roupa do corpo para o interior da Ucrânia, para a casa de um tio que não conhece:
Aleksei aprendeu rapidamente a moldar o corpo, os movimentos, ao vão exíguo. Foi capaz de parar no meio de um gesto sua vida secreta quando um dia, além das tábuas, ecoou esta voz, que dizia rudemente ao tio: "Seu sobrinho não está longe, as pessoas o viram. É bom você nos ajudar, antes que nós mesmos o encontremos no seu celeiro...". O tio, calmíssimo, respondia com uma voz sem timbre: "Nunca vi esse sobrinho em toda a minha vida. Se vocês o encontrarem, vou ter a oportunidade de conhecê-lo...". Aleksei ficou petrificado, a colher parada a caminho da boca, não ousando nem mesmo espantar uma mosca da testa.
Saía do refúgio no meio da noite, lavava-se, mudava de roupa, desenferrujava as pernas. A tranquilidade dos campos, o céu, as estrelas embaçadas de calor, tudo o convidava à confiança, à alegria da vida. Tudo mentia.
Andrei Makine. A música de uma vida. Tradução de Eduardo Brandão. Companhia das Letras, 2006, p. 45.
1) Dentro do universo totalitário, a ideia do esconderijo ocupa uma posição de destaque - é o espaço de resistência por excelência e, simultaneamente, a imagem mais bem-acabada do medo, da fuga, da impossibilidade de seguir adiante. O esconderijo é um esforço tremendo em direção à vida, à sobrevivência. O esconderijo é também o clímax da tensão diante do poder totalitário - o espaço para a esperança é ínfimo, assim como o espaço para o futuro.
2) O esconderijo só faz sentido se pensado como uma contrapartida a algo de externo, de estranho, de alheio. Talvez esse seja o ponto mais produtivo na imagem construída por Makine: o homem sai do esconderijo, olha o céu e os campos, pensa em confiança e em alegria e conclui que é tudo mentira. A angústia maior de quem está no esconderijo parece ser a evidência de que tanto o mal quanto o bem chegam da mesma fonte - do lado de fora. Essa indecidibilidade torna a vida impossível - e o poder totalitário alcança seu paroxismo, a invasão completa de todos os sentidos, de todas as sensações.
3) A única vida possível no esconderijo, portanto, é uma vida invisível, uma vida que emula a própria extinção, que torna verossímil seu próprio fim. É preciso um enorme comprometimento em direção a uma invisibilidade - é preciso adaptar o corpo, como faz Aleksei, ao desaparecimento. Adaptar a voz, os fluidos corporais, a sensibilidade dos olhos, o contato com o ar, a terra e, principalmente, os outros. Um intrincado sistema do viver-junto emerge no esconderijo - seja um esconderijo compartilhado ou um esconderijo solitário. Pois por mais solitário que seja o isolamento, ele se configura sempre como uma espera, como uma absurda e interminável espera.