domingo, 28 de setembro de 2014

Vidas no tempo

Cena de On the black hill, 1987, baseado no romance de Chatwin
Ainda com Pierre Michon, ainda com as Vidas minúsculas de Michon - agora com o gesto que se ocupa em definir uma vida como "minúscula", capturá-la como minúscula, tendo em vista um pano de fundo que se ocuparia, evidentemente, do maiúsculo. Talvez envolva um pouco daquilo que Benjamin chama de história dos vencidos, e não dos vencedores; talvez envolva um pouco daquilo que Agamben, a partir de Benjamin e a partir dos brinquedos de Benjamin, escreve em Infância e história - a miniaturização é a cifra da história, ou seja, esses elementos condensados de que se vale a história para circular em baixa voltagem, em modo econômico, como se em estado latente.
Em Mourioux nos meus verdes anos, acontecia, quando eu estava doente ou somente preocupado, que minha avó para me divertir fosse procurar os Tesouros. Eu chamava assim duas latas ingenuamente pintadas e amassadas que há tempos contiveram biscoitos, mas que encerravam então alimentos bem outros: o que dela tirava a minha avó eram objetos ditos preciosos e sua história, dessas jóias transmitidas que são memória para a gente miúda. Vidas minúsculas, trad. Mário Laranjeira, Estação Liberdade, 2004, p. 29.
No livro de Michon, em paralelo à evocação das vidas, das biografias, há também a evocação da geografia, daquela paisagem específica no interior francês durante a infância do narrador - algo que se encontra também em livros como Colina negra, de Bruce Chatwin, ou Os emigrantes, de Sebald. Ainda que o centro do romance de Chatwin seja preenchido sobretudo pelas vidas dos gêmeos Benjamin e Lewis, é inegável que existe o desejo de também dar conta dessas "vidas minúsculas" que se desenvolvem ao redor dos protagonistas, com seus objetos que condensam e miniaturizam o tempo (a realização máxima de Chatwin nesse campo seria Utz, em 1988).
A sala era pequena e desbotada, e a pintura das paredes descascava. Numa prateleira acima da lareira havia latas de chá e o relógio dos gêmeos divinos. Na parede do fundo havia uma cromolitografia - de uma menina loira que colhia flores à beira do caminho numa mata. Um bordado inacabado jazia numa poltrona. Acordada pela luz do sol, uma borboleta batia contra a vidraça, embora suas asas estivessem presas numa teia de aranha empoeirada. O chão estava juncado de livros. Colina negra, trad. Luciano Machado, Companhia das Letras, 2005, p. 253. 

sábado, 20 de setembro de 2014

Um personagem de Céline

Céline em Saint-Malo, 1933
1) Pierre Michon, em Vidas minúsculas, conta duas histórias paralelas de formação: já comentei a primeira, que se desenvolve a partir do surgimento dessas vidas minúsculas, desses indivíduos esquecidos, parentes e vizinhos, que Michon toma como sua responsabilidade (ou como seu fardo, o fardo da vivência direta, que ele deve abandonar para poder ser um escritor de fato, ou seja, da imaginação - o narrador reclama continuamente de sua imobilidade, do desconfortável silêncio da folha em branco); a segunda história de formação é aquela que surge quando o narrador começa a acionar suas referências, seus modelos, seus fantasmas literários - Rimbaud, Céline, Balzac.
2) Se a primeira trama, a trama das vidas minúsculas, pode ser encarada como o fardo que precisa ser liberado para que a segunda trama possa emergir, pode também ser pensada numa perspectiva complementar: o contato com as vidas minúsculas na infância, argumenta o narrador de forma sutil e muitíssimos anos depois (depois de finalmente se livrar da sombra do Não), é o que lhe faz não apenas valorizar e cultivar as outras vidas, as vidas ilustres das referências e dos modelos, mas movimentá-las de forma criativa, crítica, dramática (drama como ação, movimento). 
3) Compreende-se melhor, dessa forma, as várias menções de Michon a Faulkner e Céline. "Eu era um personagem de Céline saindo de férias", diz o narrador, com sua namorada entristecida e desgostosa, ambos debaixo da chuva, carregando malas em bicicletas motorizadas (uma das malas está estupidamente cheia de livros, inúteis, diz o narrador, que só serviam para mostrar quão longe ele estava de poder escrever - "livros que me serviam como a um forçado sua bola de ferro", p. 141), que despencam em plena estrada. Faulkner e Céline como vetores desse lado minúsculo da vida, esquecido, que dão acesso a uma espécie de sentimento subalterno do mundo, trabalhado e configurado a partir da exploração de uma série de enigmas insolúveis, decorrentes não da acuidade do raciocínio do escritor (o criador, a originalidade, a essência), mas da natureza prospectiva de seu olhar sobre o mundo (o coletor, o bricoleur, o ready made).  

domingo, 14 de setembro de 2014

Vidas, vida

Desenho de Goethe, 1817

Pierre Michon faz tanto o relato dessas vidas minúsculas quanto o relato da progressão da vida desse narrador ao redor dessas vidas minúsculas, ou ainda, a especulação ficcional a respeito do quanto dessas vidas minúsculas sobrevive nessa subjetividade que toma a palavra - que se identifica como escritor tardio, que compartilha o nome Michon com Michon (se alguém poderia reivindicar o mote de Vila-Matas - "meu estilo é o de quem chega tarde e por isso tem pressa -, esse alguém certamente é Michon, que faz desse "chegar tarde" mote para ficção). Vidas minúsculas, portanto, é um romance de formação, um Bildungsroman, que se projeta para o exterior, que codifica uma voz em formação somente de forma enviesada, na refração que sofre essa voz ao se projetar em direção aos mortos (dupla reivindicação de Bakhtin, portanto: primeiro, a reversão do modelo do romance de formação, quando Michon posiciona o tempo de amadurecimento no passado; segundo, a ativação que Michon faz do modelo arcaico das Vidas (Plutarco, mas também Vasari e Marcel Schwob) em paralelo ao modelo do diálogo com os mortos (Luciano de Samósata)) 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O torrão

Pierre Michon
1) Em determinado momento de Vidas minúsculas, de Pierre Michon, um pai estranha seu filho, não o reconhece na lida com a terra, ou imagina ver ali uma inadequação inaceitável do filho diante da terra. "Ora, o pai amava o seu torrão", escreve Michon, "quer dizer que seu torrão era seu pior inimigo e que, nascido nesse combate mortal que o mantinha de pé, fazia-lhe as vezes de vida e lentamente o matava, na cumplicidade de um duelo interminável e começado bem antes dele".  
2) Um duelo interminável que tinha começado bem antes dele, ou seja, a vida humana costurada a esse ciclo natural amplo e de longo alcance, gerações e gerações de indivíduos para dar conta de um mísero pedaço de terra. Mas o filho "entregava as armas, porque a terra não era sua inimiga mortal: seu inimigo mortal era ele" (Vidas minúsculas, tradução de Mário Laranjeira, Estação Liberdade, 2004, p. 38). 
3) Talvez influenciado pelo fato de Michon usar Van Gogh em outro livro (Senhores e criados), eu vi nessa cena entre pai e filho, nessa cena de inadequação que leva ao exílio (o filho some e nunca mais se sabe com certeza de seu paradeiro) uma série de possibilidades veladas para Van Gogh - pensando especificamente nos sapatos de Van Gogh, na leitura de Heidegger (os sapatos estão para a técnica como a técnica está para o mundo, a terra, o "torrão", num "duelo interminável" que é precisamente a história do homem diante e com a técnica, a antropotécnica, para usar o termo de Sloterdijk) e também na leitura confrontativa de Meyer Schapiro (o ensaio de Schapiro tem como título "a natureza-morta como objeto pessoal", ou seja, "a terra não era sua inimiga mortal: seu inimigo mortal era ele", seu exílio, sua deambulação, sua inquietude, sua expulsão).