Cena de On the black hill, 1987, baseado no romance de Chatwin |
Em Mourioux nos meus verdes anos, acontecia, quando eu estava doente ou somente preocupado, que minha avó para me divertir fosse procurar os Tesouros. Eu chamava assim duas latas ingenuamente pintadas e amassadas que há tempos contiveram biscoitos, mas que encerravam então alimentos bem outros: o que dela tirava a minha avó eram objetos ditos preciosos e sua história, dessas jóias transmitidas que são memória para a gente miúda. Vidas minúsculas, trad. Mário Laranjeira, Estação Liberdade, 2004, p. 29.
No livro de Michon, em paralelo à evocação das vidas, das biografias, há também a evocação da geografia, daquela paisagem específica no interior francês durante a infância do narrador - algo que se encontra também em livros como Colina negra, de Bruce Chatwin, ou Os emigrantes, de Sebald. Ainda que o centro do romance de Chatwin seja preenchido sobretudo pelas vidas dos gêmeos Benjamin e Lewis, é inegável que existe o desejo de também dar conta dessas "vidas minúsculas" que se desenvolvem ao redor dos protagonistas, com seus objetos que condensam e miniaturizam o tempo (a realização máxima de Chatwin nesse campo seria Utz, em 1988).
A sala era pequena e desbotada, e a pintura das paredes descascava. Numa prateleira acima da lareira havia latas de chá e o relógio dos gêmeos divinos. Na parede do fundo havia uma cromolitografia - de uma menina loira que colhia flores à beira do caminho numa mata. Um bordado inacabado jazia numa poltrona. Acordada pela luz do sol, uma borboleta batia contra a vidraça, embora suas asas estivessem presas numa teia de aranha empoeirada. O chão estava juncado de livros. Colina negra, trad. Luciano Machado, Companhia das Letras, 2005, p. 253.