1) Ainda pensando sobre a relação entre Borges e Valéry - especialmente por conta da frase de Manguel de que o leitor ideal lê a literatura como se fosse anônima -, é possível descobrir nessa questão específica um problema na poética de Borges que é de âmbito mais geral: sua despreocupação com a indicação de fontes. No ensaio "La flor de Coleridge", quando Borges cita Valéry, o faz de forma vaga: Hacia 1938, Paul Valéry escribió. Esse Hacia 1938 de Borges é quase preciso, faz pensar (erroneamente) que a frase de Valéry foi retirada de sua célebre primeira aula no Curso de Poética no Collège de France, apresentada em 10 de dezembro de 1937. A Aula de Valéry foi publicada como folheto pelo autor e por professores do Collége de France no início de 1938 e em seguida reimpressa na sua Introduction a la Poètique, livrinho de 60 páginas publicado pela Gallimard em fevereiro de 1938 (talvez a fonte consultada por Borges).
2) A Aula de Valéry está traduzida ao português, incluída no volume Variedades (trad. Maiza Martins, Iluminuras, 2007) com o título "Primeira aula do Curso de Poética". A frase que Borges traduz ao espanhol em seu ensaio sobre Coleridge, contudo, não está na Aula, e sim em um texto de Valéry anterior, de fevereiro de 1937, "De l'enseignement de la poétique au Collège de France" (que é distinto do texto "Première leçon du cours de poétique", a Aula traduzida em Variedades). Aqui vai mais uma vez a tradução que Borges faz de Valéry:
Hacia 1938, Paul Valéry escribió: La Historia de la literatura no debería ser la historia de los autores y de los accidentes de su carrera o de la carrera de sus obras sino la Historia del Espíritu como productor o consumidor de literatura. Esa historia podría llevarse a término sin mencionar un solo escritor.
E aqui a frase original de Valéry, tal como consta em "
De l'enseignement de la poétique au Collège de France" (
citada por Michel Théron em seu livro
La stylistique expliquée - La littérature et ses enjeux):
Une Histoire approfondie de la Littérature devrait donc être comprise, non tant comme une histoire des auteurs et des accidents de leur carrière ou de celle de leurs ouvrages, que comme une Histoire de l’esprit en tant qu’il produit ou consomme de la ‘littérature’, et cette histoire pourrait même se faire sans que le nom d’un écrivain y fût prononcé.
3) Marc Fumaroli, em seu livro L'Age de l'éloquence (Genebra, Droz, 2002, p. 9-10), elucida boa parte da questão. Ele faz referência aos dois textos, apontando que a Aula é de fato a conferência preparada por Valéry para a inauguração de sua cátedra; o texto sobre "l'enseignement de la poétique", segundo Fumaroli, é um prefácio preparado por Valéry para a publicação da Gallimard (esse texto, contudo, leva a data "fevereiro, 1937", o que o faz anterior ao pronunciamento da Aula - dezembro de 1937). Se Borges teve acesso aos dois textos em conjunto, via edição Gallimard de 1938, sua escolha de citação parece indicar algo que se pode perceber na leitura seguida desses dois textos: o prefácio apresenta de forma mais direta e concisa (ler a literatura como se fosse anônima) aquilo que a Aula desdobra em termos mais lentos, oficiais e cerimoniosos.