terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Uma luz em meu ouvido

No começo da década de 1930, influenciado pelas ideias de Spengler acerca do "declínio da civilização", Wittgenstein (citado por Ray Monk) escreve em uma carta que, certo dia, passeando por Cambridge, ele pôde ver uma espécie de diagrama desse declínio: passando pela vitrine de uma livraria, vê os retratos de Freud, Einstein e Russell; pouco mais à frente, na vitrine de uma music shop, vê os retratos de Beethoven, Schubert e Chopin:

I was walking about in Cambridge and passed a bookshop and in the window were portraits of Russell, Freud, and Einstein. A little further on, in a music shop, I saw portraits of Beethoven, Schubert, and Chopin. Comparing these portraits I felt intensely the terrible degeneration that had come over the human spirit in the course of only a hundred years... (Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius, p. 299).

Não há nada de novo para Wittgenstein em Spengler, uma vez que já antes da I Guerra Mundial ele sentia com angústia essa "degeneração" cultural, cujo principal porta-voz, muito antes de Spengler, era Karl Kraus (a revista de Kraus, Die Fackel, na qual ele fazia tudo, era o acontecimento cultural vienense por excelência).

Elias Canetti escreve longamente sobre como sua mente se transformou sob a influência de Kraus - o título de um dos volumes da autobiografia de Canetti é um comentário acerca dessa presença: Die Fackel im Ohr, que cobre o período de 1921 a 1931, usa o título da revista de Kraus, marcando sua penetração no jovem ouvinte Canetti (Uma luz em meu ouvido é a tradução brasileira):

Cada palavra, cada sílaba na Tocha (Die Fackel) vinha dele mesmo. Neste periódico, as coisas se passavam como num julgamento. Ele próprio era o acusador, ele próprio era o juiz. Não havia advogado de defesa, isto era supérfluo, pois ninguém era acusado sem que o merecesse.
Ele sozinho era um teatro inteiro, porém melhor, e este milagre da humanidade, esse monstro, este gênio tinha um nome tão comum como Karl Kraus.
(Elias Canetti, Uma luz em meu ouvido, trad. Kurt Jahn, Cia das Letras, 1988, p. 68-69).

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Wittgenstein no front

O Goplana, onde serviu Wittgenstein na I Guerra Mundial
É conhecida a admiração que Wittgenstein sentia por Tolstói, especialmente as versões dos Evangelhos que ele escreveu em 1883. Piglia explora esse contato Wittgenstein-Tolstói em O caminho de Ida, comentado um pouco aqui.

É curioso que um indivíduo que cultivou em si tantas contradições - entre o inglês e o alemão (e suas respectivas e antagônicas visões de mundo), a intensidade dos sentimentos e o desejo de despir a mente de tudo em favor da "lógica", etc - tenha cultivado também essa, ou seja, aquilo que George Steiner discute em Tolstói ou Dostoiévski, o confronto entre duas visões de mundo dentro de um contexto preciso da história literária.

É irônico também que nesses dois primeiros anos da guerra, 1914-1915, anos em que Wittgenstein lê com devoção, simultaneamente, Tolstói e Dostoiévski, seu exército esteja em confronto justamente com os russos - Wittgenstein era responsável por manejar o holofote de uma embarcação militar, o Goplana, no rio Vístula.

Ray Monk conta em sua biografia de Wittgenstein que, em março de 1916, inesperadamente, aparece a ordem que envia o filósofo para o front (uma solicitação que ele havia feito com insistência muitos meses antes, agora já esquecida). Wittgenstein, surpreso e desolado, deixa a grande maioria de seus pertences para trás, levando só o necessário. Escreve Monk: "One of the few personal possessions Wittgenstein packed was a copy of The Brothers Karamazov" (p. 136). Wittgenstein lia tanto esse livro que sabia de cor várias passagens.

A associação entre água e guerra me fez lembrar de Kafka em seu Diário, na anotação de 2 de agosto de 1914: Alemanha declarou guerra à Rússia. De tarde, fui nadar

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Revelação filosófico-mesmérica

1) Em 29 de abril de 1912, Wittgenstein joga tênis com o amigo David Pinsent, numa tentativa de se livrar, ainda que temporariamente, da melancolia e da angústia. Wittgenstein, contudo, escreve o biógrafo Ray Monk, chegou à conclusão de que o que precisava "não era diversão, e sim maiores poderes de concentração". Para atingir tal fim, continua Monk, ele estava preparado para fazer qualquer coisa, "even hypnosis, and had himself mesmerized by a Dr Rogers". Wittgenstein foi duas vezes, mas só na segunda o "Dr. Rogers" conseguiu hipnotizá-lo. Wittgenstein preparou uma série de perguntas sobre lógica, pontos de sua teoria que ainda não estavam claros, e deu ao médico, para que lesse quando ele estivesse em transe mesmérico. Não deu certo, escreve Pinsent em seu diário, citado por Monk: "Witt says he was conscious all the time", que podia ouvir o médico, mas "absolutely without will or strength", não entendendo o que era dito, "as if he were under anaesthetic" (Ray Monk, Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius, Vintage, 1991, p. 77).

2) No livro Possuídos: crimes hipnóticos, ficção corporativa e a invenção do cinema, Stefan Andriopoulos rastreia a noção de “possessão” nos discursos jurídico, médico, literário e midiático em fins do séc. XIX e início do XX. Isso passa por uma consideração da hipnose, que o discurso antropológico de fins do XIX considerava equivalente europeu de formas não ocidentais de transe, por exemplo. Na mesma época, as teorias legais sobre pessoas jurídicas invisíveis recorriam a imagens semelhantes de possessão e controle, “organismos invisíveis”, corporações, entidades fictícias. Um ambiente histórico de fantasmagoria, de sugestões invisíveis que guiariam certas condutas, que repercute no cinema, por exemplo, nos temas e nos procedimentos - a relação entre crime e sugestão era um dos temas mais populares nas primeiras décadas de desenvolvimento do cinema, e como procedimento porque o cinema é a arte da ilusão, que trabalha com a montagem, a velocidade, o encobrimento e revelação selecionados daquilo que deve aparecer. Desde O magnetizador, de Georges Méliès, de 1897, até O gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, de 1919, ou Dr. Mabuse, o jogador, de Fritz Lang, de 1922. 
3) O processo, de Kafka (1914-1915), é a descrição da rendição aparentemente voluntária a um organismo judiciário vivo, que o convence em direção ao apagamento, "as if he were under anaesthetic". Ou “O Horla”, de Maupassant, de 1887, sobre um homem que se suicida por acreditar-se possuído por um ser invisível. Andriopoulos afirma que na retórica da época já está, assim como está em Kafka, a ideia de “interpelação” que Althusser vai desenvolver em 1970, relacionamento entre subjetividade e Estado e ideologia, algo desenvolvido por Foucault ao falar da “sujeição”, ao falar de como o poder atravessa os corpos, é performado pelos gestos, o corpo humano como controlado por um poder ubíquo inatingível mas real. 

domingo, 19 de fevereiro de 2017

9 de janeiro de 1952

Que forma mais feliz o long aphorism ou short essay de seu Minima moralia! Já agradeci ao senhor alguma vez pelo livro? Considero tudo possível. Durante dias estive aderido magneticamente ao livro, que cada dia é uma nova leitura fascinante, mas apenas desfrutável em pequenos pedaços, uma delícia concentrada. Dizem que o satélite da estrela Sírio, de cor branca, é de uma matéria tão densa que uma polegada cúbica aqui pesaria uma tonelada. Por isso também possui um impressionante campo gravitacional, semelhante ao que rodeia o seu livro. E além disso os títulos que, com sua cálida sedução, antecedem a essas surpreendentes formações de pensamento. Apenas se diz "Suficiente por hoje!" aparece um simpático rótulo, típico de conto popular, e acabamos nos precipitando em direção à aventura seguinte. 

(Carta de Thomas Mann a Theodor Adorno, escrita da Califórnia, onde morava, em 9 de janeiro de 1952 - Correspondencia 1943-1955, edição de Christoph Gödde e Thomas Sprecher, tradução do alemão para o espanhol: Nicolás Gelormini, Buenos Aires: FCE, 2006, p. 101)
Thomas Mann e Nico na Califórnia

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Holandeses

1) Descobri, em abril de 2013, que em outubro de 1977, na Universidade Columbia, em Nova York, convidado por Edward Said, Jacques Derrida ofereceu um seminário sobre Heidegger, sobre a origem da obra de arte, sobre van Gogh e suas imagens dos sapatos. Passei muito tempo lendo e relendo os textos envolvidos, tanto aquele de Derrida como aqueles movimentados por ele, especialmente o de Meyer Schapiro e também o de Heidegger, que eu já tentava ler de modo contrastante desde 2011

2) Diante disso, foi curioso ler recentemente um livro sobre outro holandês, Rembrandt, no qual a autora, Svetlana Alpers, reúne em um único parágrafo todas essas referências, numa espécie de percurso metodológico vertiginosamente resumido. "Há alguns anos ocorreu um debate entre Meyer Schapiro e Jacques Derrida a respeito do comentário de Martin Heidegger acerca da natureza dos quadros de Van Gogh sobre sapatos", assim começa Alpers. "A discussão tratou da relação do pintor com seu trabalho", completa ela, e continua:
Resumindo: à descrição de Heidegger dos sapatos de camponês como objetos feitos para uso, e da pintura como reveladora de sua essência instrumental - "a tela de Van Gogh é a revelação daquilo que o produto, o par de sapatos de camponês, é [...] na verdade" -, Schapiro retrucou que os sapatos não são um instrumento de uso, mas "um pedaço do ser do artista [...] a presença do artista na obra [...] uma peça de um autorretrato"
Até aí vai Alpers no que diz respeito às diferenças entre Heidegger e Schapiro. Derrida, por sua vez, escreve ela, "argumentou que não eram nem sapatos, nem autorretrato, porque um quadro assinala a ausência ao mesmo tempo dos sapatos e do pintor: 'Portanto, uma obra como o quadro com sapatos exibe o que lhe falta para ser uma obra, exibe - por meio dos sapatos - a falta, poder-se-ia quase dizer sua própria falta'. Assim, do objeto útil pintado passa-se ao artista pintando seus sapatos como autorretrato e deste a uma simples pintura". 
Rembrandt, A volta do filho pródigo, 1669, detalhe
3) Alpers termina por recusar elegantemente a contribuição de Derrida, decidindo que as ideias de Heidegger e Schapiro, ainda que distantes e discordantes, ainda eram produtivas para a questão que ela coloca em seu livro: "No que diz respeito à ausência, Derrida podia muito bem estar falando, como fez em outros lugares, sobre a natureza dos textos, mas o que Heidegger diz sobre os objetos e Schapiro sobre o ser nos ajuda a compreender os objetos peculiares aos quadros (e eu particularmente entendo as pinturas de cavalete tal como esttas se distinguem das imagens em geral) em nossa tradição" (Svetlana Alpers, O projeto de Rembrandt: o ateliê e o mercado, trad. Vera Pereira, Cia das Letras, 2010, p. 306).