terça-feira, 27 de agosto de 2019

As três vanguardas

1) Já na primeira aula de seu curso Las tres vanguardias, Ricardo Piglia afirma que por trás da sua escolha de três nomes contemporâneos da literatura argentina - Saer, Puig e Rodolfo Walsh - está seu desejo de refletir sobre a condição do romance para além das fronteiras nacionais. Para isso, ainda na primeira aula do curso, ele propõe outros três nomes, numa espécie de tabela de correspondências ou afinidades: para Saer está Peter Handke, para Puig está Thomas Pynchon e, para Walsh, está Alexander Kluge (o curso é de 1990 e me pergunto como, através de quem, em que traduções e/ou edições Piglia teve acesso à obra desses três nomes). 
2) Piglia afirma que um dos legados da obra e da figura de Borges é alinhar a literatura argentina com a literatura do resto do mundo - algo que acontece também, em paralelo, por conta da multiplicação dos meios técnicos de difusão de informação (cinema de massa, televisão, internet - um tema fundamental para Benjamin e para Puig, na visão de Piglia no curso).
3) Como é de praxe em se tratando de Piglia, ele retorna a Sarmiento e ao Facundo: mas tal retorno não é simples ou linear, é feito levando em consideração os dois movimentos mostrados acima - em primeiro lugar, a ligação de Saer, Puig e Walsh a Handke, Pynchon e Kluge e, em paralelo, a manutenção subterrânea do modelo de Borges para "o escritor argentino e a tradição". Já no começo do curso, Piglia aproxima Sarmiento e Flaubert - são rigorosamente contemporâneos, e Piglia separa o ano de 1852, indicando o que cada um estava fazendo no momento: se Flaubert é o ponto de referência em termos de vanguarda, escreve Piglia, Sarmiento é, por sua vez, o ponto de referência em termos de construção da figura do autor no sistema literário argentino.  

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Servo de um servo

1) O rei das sombras, romance de Javier Cercas, é mais um artefato artístico em uma longa cadeia de reelaborações de Homero e seus personagens. O objetivo principal de Cercas no romance - seu romance sem ficção, como ele diz - é apresentar as complexidades de Manuel Mena, parente seu que lutou na Guerra Civil Espanhola do lado dos fascistas. Um dos muitos recursos utilizados por Cercas para delinear o personagem - sendo o uso de fotografias talvez o mais notório - é a aproximação que faz dele com Aquiles, o guerreiro da Ilíada
2) "A morte de Manuel Mena tinha sido gravada a ferro e fogo na imaginação infantil de minha mãe como aquilo que os gregos antigos chamavam de uma bela morte", escreve o narrador no início do romance. "Aquiles demonstra sua nobreza e sua pureza arriscando a vida num tudo ou nada (...) para minha mãe, Manuel Mena era Aquiles" (p. 17).
3) Aquiles, porém, é também fonte de instabilidade e ambiguidade para a narrativa, como Cercas logo aponta. Aquiles é tanto aquele que alcança a bela morte como aquele que, reencontrado no Hades, declara que pior posição na vida é sempre preferível à melhor posição na morte: "na verdade ele [Manuel Mena] é o Aquiles da Odisseia e está no reino das sombras maldizendo o fato de, morto, ser o rei dos mortos e não o servo de um servo em vida" (p. 251). O Aquiles da Ilíada é o da bela morte, do sacrifício pela pátria; o Aquiles da Odisseia, contudo, é um herói arrependido, não-reconciliado com a morte, que preferia estar na terra, como servo de outro, do que reinar sobre os mortos.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Das duas às sete

No início de 1923, ainda dando aulas para crianças no interior da Áustria, Wittgenstein entra em contato com Frank Ramsey, o jovem matemático responsável pela tradução do Tractatus do alemão para o inglês. Wittgenstein escreve uma carta convidando Ramsey para uma visita à cidadezinha na qual ele mora, Puchberg. Em setembro desse ano a visita acontece e os dois leem o Tractatus juntos minuciosamente ao longo de duas semanas: palavra por palavra, linha por linha, todos os dias das duas às sete.
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Uma cena de leitura como essa é profundamente angustiante em um período histórico de abundância maníaca como o nosso. A leitura minuciosa - letra por letra, palavra por palavra, como Foucault fazia em seus cursos (embora nunca com um livro inteiro), ou Derrida em seus ensaios e conferências - é hoje praticamente contra-intuitiva. A leitura cerrada, além de ser difícil em si, carrega a dificuldade externa de remeter continuamente ao excesso de referências, de textos e livros que não estão sendo lidos.
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Como no caso de Wittgenstein, a minúcia da leitura por vezes toca a loucura - como acontece em Fogo pálido, de Nabokov, outro exemplo de uma cena de leitura intensa, exclusiva. O leitor passa a viver no interior de cada sílaba, assim como aquele que escreveu o fez. Nesse sentido, a leitura minuciosa gera um curto-circuito entre ação e reação, como se o tempo da leitura pudesse ser equivalente ao tempo da escrita (um livro perfeito para uma insônia perfeita, como queria Joyce, ou seja, um livro cuja leitura demore mais até do que a escritura). Penso na leitura que Flaubert fez de A educação sentimental no salão literário da princesa Mathilde, prima de Napoleão III, que levou dezesseis horas, divididas em quatro seções; ou nas várias noites que Kafka passou lendo na íntegra seus textos para os amigos; ou Fernando Pessoa atravessando a noite de 8 de março de 1914 e escrevendo, em uma espécie de êxtase, toda a obra de Alberto Caeiro.