1) Da mesma forma que Ricardo Reis, na ficção de Saramago, reflete em seu corpo a decadência de Portugal - ele morre porque morre Portugal tal como lhe era familiar -, também em Afirma Pereira o corpo do protagonista espelha essa dissolução externa. Nada mais típico da época, essa progressiva consciência de que o mal de fora apodrece também a subjetividade (está em Freud, está em Benjamin). O coração de Pereira não vai bem, ele não consegue subir a ladeira que leva a sua casa, tem que pedir ao táxi que o leve (e deve pagar uma gorjeta extra para que isso aconteça). "Alô, doutor, disse Pereira, aqui é Pereira. Então, como vai?, perguntou o doutor Costa. Estou ofegante, respondeu Pereira, não consigo subir as escadas e acho que engordei uns quilos, e é só dar um passeio que meu coração fica aos sobressaltos" (p. 68).
2) Joseph Roth foi quem melhor personificou esse espelhamento somático da situação política europeia na década de 1930, condensando de forma incisiva algo que é só sugerido em Tabucchi e Saramago. Ilse Lazaroms fala dessa feição "profética" da obra e da figura de Roth, sua capacidade de captar com antecedência as repercussões do contexto histórico traumático - algo que, no caso de Roth, cobrou seu preço, transformando-o numa "profeta bêbado", já que "a queda da Europa em direção a outra guerra seguiu em paralelo ao próprio declínio de Roth em direção ao alcoolismo" (The Grace of Misery. Joseph Roth and the Politics of Exile, Leiden: Brill, 2013, p. xiv). Destino bastante semelhante ao de Fernando Pessoa, por sinal (alguns dizem que Pessoa morreu por conta de uma pancreatite aguda, causa de morte semelhante à de Roberto Bolaño).
3) E com relação a Pereira é preciso levar em consideração o aviso de Tabucchi na nota introdutória ao romance, frisando o passado judaico do nome Pereira - algo que se torna bastante sintomático quando a aventura de Pereira é posta ao lado das histórias de Benjamin ou Roth, por exemplo; e também quando se relembra que o destino de Pereira, no fim do romance, quando ele abandona seu nome e seu país, é justamente a França (ou pense em Gombrowicz chegando a Buenos Aires em 1939). Consta que Joseph Roth morreu em 27 de maio de 1939, depois de ter um colapso, em 23 de maio de 1939, ao receber a notícia do suicídio de Ernst Toller, dramaturgo, seu amigo, enforcado em um hotel de Nova York.