1) Borges lança dúvidas sobre se Shakespeare sabia ou não que era Deus. Mas, no processo de sua vida, escreve Borges, Shakespeare procurou disfarces, procurou se misturar, ou seja, procurou fingir nos palcos aquilo que de fato era - um homem multiplicado ao infinito: "No início pensou que todas as pessoas fossem como ele", escreve Borges, "mas a estranheza de um companheiro com o qual começara a comentar essa vacuidade lhe revelou seu erro e fez com que sentisse, para sempre, que um indivíduo não deve diferir da espécie" ("everything and nothing", O fazedor). Novamente: Shakespeare como um filho de Deus (um avatar de Deus) levado à Terra e obrigado a "não diferir da espécie" - nascer, viver, sofrer, morrer (a vida, "a tale", "told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing", everything and nothing?).
2) Borges continua: Shakespeare "adestrara-se no hábito de simular que era alguém, para que não se descobrisse sua condição de ninguém". A situação anterior, de Shakespeare falando ao "companheiro" sobre a "vacuidade" da vida, do universo e de si, e tendo como resposta a "estranheza", ecoa uma passagem brilhante do inteiramente brilhante livro de Simon Leys sobre Napoleão, A morte de Napoleão. Depois de fugir da prisão e chegar a Paris (onde se transforma em um bem-sucedido vendedor de melancias), Napoleão deve fingir que é apenas um homem muito semelhante a Napoleão - e quando tenta contar a verdade à viúva que o acolheu sob suas cobertas, ela tem um ataque histérico: pensa que seu homem está enlouquecendo. Napoleão desiste de ser Napoleão e segue sendo apenas "Napoleão", até a morte (um cenário semelhante está na dinâmica estabelecida entre Hitler e seus sósias na obra-prima de Ignacio Padilla, Amphitryon).
3) O procedimento shakespeareano sobrevive - bastante rarefeito, é verdade - em César Aira, especialmente naquela novelinha finalizada em 21 de abril de 2000, El mago. Não há dúvidas de que se o tempo preservar ao menos cinco obras de Aira, El mago certamente será uma delas. A história de um mágico que tem, de fato, poderes mágicos - dobra as leis naturais conforme sua vontade. Porém, para viver entre os homens, resolve não "diferir de sua espécie", resolve ser apenas mais um mágico medíocre que não faz, apenas finge que faz. A tragédia (que agora, em Aira, é farsesca, simulada, folgazã) irrompe quando o mágico decide assumir sua potência - decide, portanto, abraçar o impossível, o imponderável, o abismo.