É bem conhecida a abertura de O que vemos, o que nos olha - nela, Didi-Huberman resgata a "inelutável modalidade do visível" que James Joyce postula no começo de Ulisses. O livro de Didi-Huberman, assim como o de Joyce, é uma reflexão acerca da tentativa de desnaturalização do olhar ("ver" é algo que se aprende, não surge pronto da noite para o dia, como Atena da cabeça de Zeus). O reconhecimento da passagem da naturalização para a desnaturalização não pode acontecer, evidentemente, sem trauma, drama, passagem, desnivelamento do não-saber em direção ao não-saber. Ver é perder, escreve o autor. Por isso Didi-Huberman frisa esse momento do Ulisses de Joyce:
Stephen Dedalus acaba de ver com seus olhos os olhos de sua própria mãe moribunda erguerem-se para ele, implorarem alguma coisa, uma genuflexão ou um prece, algo, em todo caso, ao qual ele terá se recusado, como que petrificado no lugar.
Alinhado que está à fenomenologia de Merleau-Ponty, Didi-Huberman busca atravessar Joyce em direção a uma crítica da experiência estética, sua historicidade e a possibilidade de engendrar um discurso crítico a partir daí (os três momentos interligados, ao longo de O que vemos, o que nos olha e do restante de sua obra). Nos termos da crítica literária, da teoria literária, o que nos vemos, o que nos olha - essa fórmula - pode indicar a possibilidade da tradição (do passado das obras, das referências) permanecer aberta e atuante no presente. É nesse espírito que Didi-Huberman resgata, no mesmo trecho, essas primeiras páginas do livro, a teoria da história de Walter Benjamin:
Está claro, aliás, que essa modalidade [inelutável, ou seja, "votada a uma questão de ser"] não é nem particularmente arcaica, nem particularmente moderna, ou modernista, ou seja lá o que for. Essa modalidade atravessa simplesmente a longa história das tentativas práticas e teóricas para dar forma ao paradoxo que a constitui (ou seja, essa modalidade tem uma história, mas uma história sempre anacrônica, sempre a "contrapelo", para falar com Walter Benjamin).
É claro que isso já está posto por Joyce, no resgate/reconfiguração de tudo que faz em Ulisses - e também claramente delineado pelo próprio Didi-Huberman, que ressalta como a passagem de Dedalus diante do mar no romance de Joyce é já uma releitura de Dante e Aristóteles (é no primeiro círculo do Inferno - o Limbo - que Dante - textualmente citado na passagem de Joyce - ergue os olhos para perceber Aristóteles, "o mestre dos que sabem"). Um fragmento de Wittgenstein, do Tractatus (6.522), fecha o capítulo de Didi-Huberman:
Há seguramente o inexprimível. Este se mostra.
(Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha. trad. Paulo Neves, Ed. 34, 1998, p. 29-35).