domingo, 31 de dezembro de 2017

Céline, Perón, 1

O ator de que fala Céline em De Castelo em Castelo - esse ator francês que foi para a Argentina trabalhar -, a quem ele se refere como "La Vigue", existiu de fato e se chamava Robert Le Vigan (1900 - 1972). O ponto alto de sua carreira foi o papel de Jesus Cristo no filme Golgotha, de 1935, dirigido por Julien Duvivier, mas de 1931 a 1945 ele fez mais de 30 filmes na França. De certa forma, a odisseia do ator e de sua esposa Anita pelo pampa representa, em miniatura, toda a odisseia de Céline e a trupe de colaboracionistas que escapa da França em direção ao Castelo de Sigmaringen (essa travessia do pampa faz lembrar também o romance de Saer, As nuvens, de 1997, história de um jovem psiquiatra que, em 1804, conduz cinco loucos a uma clínica, viajando de Santa Fe a Buenos Aires). Depois da guerra, Le Vigan foi condenado a 10 anos de prisão, sendo libertado depois de cumprir três anos. Depois disso, foi para a Espanha e, em seguida, para a Argentina, morando em Tandil (350 km de Buenos Aires), onde morre em 1972. Le Vigan ficou conhecido por repassar regularmente à Gestapo "cartas de delação", nas quais visava membros da classe artística, denunciando judeus e membros da resistência.   

sábado, 30 de dezembro de 2017

Céline, Perón

1) Com as investigações de Ricardo Piglia sobre as origens do teatro argentino ainda frescas na memória, chamou minha atenção esse trecho de Céline, quando estava lendo De Castelo em Castelo: o narrador reencontra um amigo ator, desaparecido há anos, que relata ter passado um tempo na Argentina. "Como veio parar aqui?", diz o narrador ao amigo ator, "Era complicado... escuto-o... trabalhava na Argentina... tinha encontrado, sorte dos diabos!... uma 'figuração', uma 'externa' com sua mulher, a Anita...".
2) O amigo ator toma a palavra e diz: "Está vendo as esporas?... espie só!... 'gaúcho'!... um filme que devia durar dois meses!... logo de cara eu ganho o papel... não pedi nada, claro! fui praticamente forçado... pergunte para a Anita!... um filme histórico... primeiro 'gaúcho'... e depois 'bandido'... e depois 'general dos insurgentes'... um filme sobre a história deles lá... justo quando o Perón cai!... e era ele que subvencionava! aí eu disse: Até logo! vou dar no pé!... aí pensei, o Lebrun! o Pétain! o Hitler! eu já tinha me divertido bastante!... o Perón... que merda!.... fogo na roupa, todos os portos fechados, interditados!... a gente só encontrava um cargueiro para a França em Santiago do Chile!... e tem mais!... toda a travessia da América, o pampa todinho!... três meses de mato, alto assim, ó, o mato!".
3) Um colaboracionista francês escapa para a Argentina e quase faz um filme de gaúcho sob os auspícios de Perón. Ao cair o presidente, em 1955, o ator precisa fugir: "Conhece o pampa?... três meses!... na Cordilheira a gente acha tudo!... um acampamento completo!... um maria-fumaça que ia serpenteando a montanha... um trem de verdade!... uma cidade de gaúchos!... a gente fez a maior festa! se você visse!... nos cobriam de tudo!... tinham me visto, tinham uma sala de cinema, me conheciam!... 'sonora' e tudo!... e tinham me visto no Goupil!" (Louis-Ferdinand Céline, De Castelo em Castelo, trad. Rosa Freire d'Aguiar, Cia das Letras, 2004, p. 115-116).

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Tristeza, piedade

1) Qualquer recorte de fragmentos de textos/diários/cartas/etc de 1933 a 1945 (seja aquele que Calasso apresenta em seu último livro ou não) se encerra num ponto crítico, que é, ao mesmo tempo, de resolução e intensificação. Calasso cita as cartas de Céline, especialmente aquelas da década de 1930, seu melhor momento (alinhado à direita, Céline prosperava também com os direitos autorais de seus romances - e também com a venda de seus panfletos antissemitas, que chegava às dezenas de milhares). Com o fim da guerra, contudo, a vida de Céline muda drasticamente: ele precisa fugir da execução certa que esperava boa parte dos colaboracionistas. Seus romances do pós-guerra lidam com essa experiência, entre eles, e especialmente, De Castelo em Castelo, de 1957.
2) O estilo de Céline é o mesmo dos romances da década de 1930, mas ele parece intensificado pelo caráter absurdo da fuga e da estadia de quase dois mil colaboracionistas franceses em um castelo na Alemanha, o castelo de Sigmaringen, de novembro de 44 a março de 45. A situação é absolutamente precária (Céline fala inúmeras vezes da latrina que transborda e inunda seu andar), minuciosamente localizada no tempo e no espaço e, ao mesmo tempo, tão representativa da vida política e suas dinâmicas desde os gregos (situação contra reação, expurgo dos vencidos, etc). 
3) Como o documentário de Marcel Ophüls, Le Chagrin et la Pitié, ou as palestras de Sebald reunidas em Guerra aérea e literatura (e ainda assim tão diferentes entre si), o romance de Céline dá conta dessa zona de sombra que liga e separa a vitória da derrota. Céline comenta como o Castelo balança com as bombas, por exemplo:

...covil-berço da mais importante criação dos mais rematados lobos rapaces da Europa! era a grande pilhéria desse Santuário! e como balançava, nem lhe conto, sob as esquadrilhas que não paravam, milhares e milhares de "fortalezas voadoras", para Dresden, Munique, Augsburgo... de dia, de noite... que todos os pequenos vitrais se espatifavam, pulavam para o rio!... você vai ver!..." (Louis-Ferdinand Céline, De Castelo em Castelo, trad. Rosa Freire d'Aguiar, Cia das Letras, 2004, p. 153).
  

sábado, 23 de dezembro de 2017

Turistas (Calasso, Didi-Huberman)

1) Um dos principais atrativos da escrita de Roberto Calasso é a capacidade que tem de fazer do leitor uma sorte de participante. Isso ocorre - em grande medida a lição é de Walter Benjamin - muito mais por conta daquilo que não é dito do que por conta do que é apresentado pelo crítico. Ou seja, trabalhando a partir de lacunas e elipses, Calasso faz o leitor preencher os espaços vagos a partir de seu próprio repertório (como a antiga máxima que diz que a música se dá nos silêncios entre uma nota e outra).
2) No caso do seu último livro (que já comecei a comentar aqui), Calasso apresenta essa colagem de fragmentos que vai de 1933 a 1945, uma variedade de fragmentos que, no entanto, deixa uma série de personagens de fora. A escolha de Calasso é dialética, os fragmentos oscilam entre desesperados (Joseph Roth, Walter Benjamin) e celebratórios (Céline, André Gide), encerrando com a entrada de Vassili Grossman e do Exército Vermelho em Treblinka. Ou seja, ainda que não declare abertamente isso, Calasso encerra a segunda parte de seu livro preparando o caminho para a releitura da primeira (que faz a relação entre terrorismo e turismo nas últimas décadas).
3) Se durante a II Guerra a notícia dos campos era recebida com descrença (vide a história de Jan Karski), é possível dizer que parte da história da segunda metade do século XX é a história da revisão dessa descrença e da absorção dessa "notícia". É precisamente o problema que toca Calasso em seu livro ao falar do "turismo" e dos "turistas", e também o problema que aborda Didi-Huberman em Cascas: "em 2011, oito após a publicação de Images malgré tout, Georges Didi-Huberman vai ao campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, como um turista até certo ponto qualquer, com sua máquina fotográfica em punho. Esse tour ou deambulação pelo coração do que sobrou da máquina de morte nazista dará origem ao ensaio “Cascas” (Ecorces, no original), espécie de caderno de notas, ou ensaio autobiográfico, escrito a partir das fotografias registradas pelo filósofo" (fonte).   

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Coçar a perna

"Montaigne, no ensaio Sobre a crueldade, escrevendo sobre os últimos minutos da vida de Sócrates, conta como dizem que ele coçou a perna. 'Aquele arrepio de prazer que ele sente ao coçar a perna depois que os ferros foram retirados não indica uma semelhante doçura e alegria em sua alma, por estar livre dos incômodos passados e até mesmo por enfrentar o conhecimento das coisas por vir?'. Mas enquanto Montaigne é essencialmente pré-romanesco, porque tem uma tendência a moralizar tais detalhes, e vê esse momento como um exemplo não de acidente, mas de vigor moral, um escritor posterior como Tolstói considerará esse gesto acidental ou automático - a vida apenas desejando instintivamente prolongar-se para além da morte. Penso no momento testemunhado por Pierre em Guerra e paz, quando ele vê um jovem russo, vendado e prestes a ser executado por um esquadrão de fuzilamento, remexer nervoso sua venda, talvez para se sentir um pouco mais confortável" (James Wood, A coisa mais próxima da vida, trad. Célia Euvaldo, Sesi-SP editora, 2017, p. 62-63).
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"A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos. E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora [1981] começa a ser traduzido na Itália): 'Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer''" (Italo Calvino, Por que ler os clássicos, Cia das Letras, 1993, p. 16).

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

O inominável atual

1) Roberto Calasso divide seu último livro (L'innominabile attuale) em três partes: "Turistas e terroristas", "A Sociedade Vienense de Gás" e "Avistamento das Torres". As duas primeiras partes regulam de extensão (70, 80 páginas), mas a terceira é brevíssima, apenas o resgate de uma anotação de Baudelaire, um sonho ou visão, em um papel que Calasso declara como "indatável". Nessa anotação, Baudelaire diz ter visto a queda de uma torre, um enorme edifício, queda essa ignorada pelas "nações" (Calasso faz o paralelo com as Torres Gêmeas e o 11 de setembro e encerra o livro).
2) Na primeira parte do livro, Calasso tenta dissecar a categoria do Homo saecularis, ou ainda, a presença do secularismo na sociedade moderna, as relações possíveis entre as categorias sociais e as categorias religiosas e como essa tensão permanece e se intensifica hoje (especialmente nesse confronto do título, "turistas e terroristas", aqueles que cultivam a mobilidade e aqueles que abominam a mobilidade - seja dos corpos, seja dos costumes). "Homo saecularis é inevitavelmente turista", escreve Calasso, e continua: "Não apenas quando viaja. Zapping e link formam uma vasta parte de sua vida mental. São operações pré-existentes, que um dia alcançaram a configuração indicada nos dois termos. Bouvard e Pécuchet já as praticavam, sem necessidade de recorrer a qualquer suporte técnico" (p. 62).
3) A segunda parte é uma espécie de Livro das Passagens, de Benjamin, em miniatura: uma coleção de citações (mas comentadas e editadas). "Não são lembranças", escreve Calasso de introdução, "Mas de palavras escritas, publicadas, ditas, referidas, registradas nos dias entre o início de janeiro de 1933 e maio de 1945. Todas as imagens daqueles anos, de qualquer proveniência, exalam algo de hipnótico. Foi o auge do preto e branco, no cinema e na vida. Quando aparece o technicolor, parece uma alucinação. Era como se o tempo tivesse formado uma espiral cada vez mais estreita, que terminava em um estreitamento" (p. 95). Das várias fontes disponíveis, Calasso seleciona, por exemplo, os diários de Ernst Jünger (o momento em fica sabendo dos campos de extermínio) e de André Gide (sua insistente defesa de Hitler e Stálin), as cartas de Benjamin e de Céline (suas amantes, sua fuga), as cartas de Beckett escritas durante sua viagem de meses através da Alemanha em 1936.

domingo, 17 de dezembro de 2017

Flaubert e Turguêniev

"Havia algo muito comovente na natureza da amizade que unia esses dois homens. A meu ver, honra bastante Flaubert a estima que sentia por Turguêniev. Havia uma semelhança parcial entre eles. Ambos eram homens grandes, corpulentos, embora o russo fosse mais alto do que o normando;ambos eram totalmente honestos e sinceros e ambos possuíam o elemento pessimista em sua constituição. Ambos tinham uma recíproca estima afetuosa e creio não estar errado, nem ser indiscreto, ao dizer que, da parte de Turguêniev, essa estima tinha um traço de compaixão. Havia, em Gustave Flaubert, algo que induzia a esse sentimento. No todo, havia fracassado mais do que obtido êxito e o grande maquinário de erudição - o grande processo de burilamento -, que ele pôs em funcionamento nas suas obras, não se fez acompanhar de resultados proporcionais. Tinha talento sem ter habilidade, tinha imaginação sem ter fantasia. Seu esforço foi heroico mas, exceto no caso de Madame Bovary, uma obra-prima, ele conferiu às suas obras algo (como se as tivesse recoberto de placas metálicas) que as fizeram afundar em vez de flutuar. Queria produzir frases perfeitas, perfeitamente interligadas, e o mais estreitamente urdidas, como a malha de uma armadura. Mas havia algo pouco generoso no seu gênio. Era frio, e ele teria dado tudo para ser capaz de arder" (Henry James, "Ivan Turguêniev", publicado originalmente na revista Atlantic Monthly, janeiro de 1884 - consultado em Ivan Turguêniev, Pais e filhos, trad. Rubens Figueiredo, Cosac Naify, 2004, p. 350-351).
"Como muitos autores daquela época, Turguêniev é explícito demais, não deixando espaço para a intuição do leitor, sugerindo e depois explicando pesadamente a que se referia cada sugestão. Ele não é um grande escritor, embora escreva de forma bastante agradável. Nunca produziu algo comparável a Madame Bovary, e dizer que ele e Flaubert pertenciam à mesma escola literária é um engano total. Nem a disposição de Turguêniev de enfrentar qualquer problema social que estivesse na moda nem sua manipulação banal das tramas (sempre seguindo o caminho mais fácil) pode ser assemelhada à arte severa de Flaubert. Turguêniev, Górki e Tchekhov são especialmente bem conhecidos fora da Rússia, mas não há um modo natural de ligá-los. No entanto, talvez seja interessante notar que o pior de Turguêniev estava claramente presente nas obras de Górki, e o melhor de Turguêniev (em matéria de paisagens russas) foi lindamente desenvolvido por Tchekhov" (Vladimir Nabokov, Lições de literatura russa, trad. Jorio Dauster, Três Estrelas, 2014, p. 106-107). 

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A atriz no deserto

"Entro e saio da história argentina. Agora as origens do teatro."

Ricardo Piglia, Los diarios de Emilio Renzi, tomo II, Los años felices, Anagrama, 2016, p. 416.


1) Essa é uma anotação de Piglia/Renzi do dia 02 de dezembro de 1975. Um de seus desenvolvimentos possíveis está em uma das seções de O último leitor, que Piglia publica em 2006. No capítulo de O último leitor sobre Anna Kariênina há uma seção intitulada "Uma atriz no deserto". Piglia cita Estanislao Zeballos e seu livro Callvulcurá e a dinastia dos Piedra. Seleciona o trecho no qual Zeballos menciona o coronel Baigorria, "que se enfia terra adentro para viver com os índios e lê o Facundo no deserto". Zeballos, cita Piglia, conta a história de uma mulher prisioneira, "uma atriz prisioneira no deserto aí por meados do século XIX, no rio da Prata. Uma figura enigmática. Ela tem, em seu silêncio, a lembrança dos livros que leu e que carrega na memória. Podemos imaginar sua história, os teatros em que atuou e os textos que leu e que ecoam, como uma música, no silêncio do deserto. A história de uma atriz prisioneira. A atriz como leitora".
2) Piglia entra e sai da história argentina, portanto, pela oscilação entre o geral e o particular. Depois de citar Zeballos, Piglia contextualiza: "Correm os tempos de Rosas. Naqueles anos, várias companhias atuam em Buenos Aires. Apresentam espetáculos no teatro Vitória e no teatro Argentino de Buenos Aires, fazem turnês pelo interior do país, se apresentam também em Montevidéu, Santiago do Chile e Rio de Janeiro. Pequenas companhias percorrem, na época, as províncias e os países vizinhos. Entre elas - como registra Raúl Castagnino em O teatro na época de Rosas - se destaca a de Telémaco González, que viajava para o Chile frequentemente e que era formada por Trinidad Guevara e Juan Casacuberta, fundadores do teatro nacional". 
3) No início do parágrafo seguinte, Piglia retorna ao detalhe, aproximando o foco, e escreve: "Mas o que nos interessa é um pequeno incidente narrador por Beatriz Seibel em História do teatro argentino. Nesse livro ela relata uma das turnês da companhia de Telémaco González pelas províncias, possivelmente com o objetivo de voltar ao Chile, onde era muito conhecido". A partir de duas fontes distintas (Seibel e Castagnino), Piglia rastreia detalhes da companhia de González. É o próprio González quem mais tarde relata o ataque "de índios selvagens" sofrido pela companhia, durante o qual tiveram que abandonar, "deixando para trás, prisioneiras, a mãe e o resto da família". 
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A hipótese de Piglia, portanto, é a de que a atriz sem nome de Baigorria seja parte dessa comitiva de González atacada pelos índios. Essas companhias foram as primeiras a encenar Shakespeare (e Sarmiento escreveu a crítica de Otelo, informa Piglia entre parênteses). "Podemos imaginar nossa prisioneira atuando em Hamlet ou quem sabe em Otelo. E as tragédias de Shakespeare ecoando na memória daquela mulher no deserto" (Piglia talvez aí faça referência ao conto de Borges, "A memória de Shakespeare", incluindo mais um elemento na equação borgeana). "Sempre há um livro no deserto", finaliza Piglia, "sempre aparece a ideia de um livro que sobrevive no deserto e que, como no Facundo lido por Baigorria, encerra a verdade deste mundo e prediz seu fim". 

sábado, 9 de dezembro de 2017

Sacrifício, experimento

Roberto Calasso, em seu último livro, L'innominabile attuale, fala de um deslizamento (semântico, simbólico) da ideia de sacrifício para a ideia de "experimento". Não há qualquer menção à noção de "biopolítica" da parte de Calasso, mas essa oscilação entre "sacrifício" e "experimento" é em grande medida a oscilação entre "política" e "biopolítica". Calasso cita Karl Kraus e seu trabalho monumental Os últimos dias da humanidade, feito a partir do que se lia nos jornais e se escutava pelas ruas na época da I Guerra Mundial (Kraus morre em 1936). Atravessando a polifonia de Kraus, está um tema constante, diz Calasso: o sacrifício pela pátria, pelos costumes "civilizados". Pouco adiante, surgirão os "dois maiores experimentadores sociais do século XX", escreve Calasso, "Hitler e Stálin" (sorte de engenheiros que tinham à disposição milhões de corpos e mentes).

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Waterloo como vitória

Ainda no tópico Napoleão nos pampas: Sarmiento aproxima Facundo de Napoleão, "Que sinistros pensamentos vêm assomar naquele momento à sua face lívida, no ânimo desse homem impávido?", escreve Sarmiento. "Não recorda o leitor algo parecido ao que manifestava Napoleão ao partir das Tulherias para a campanha que terminaria em Waterloo?". Se há um telos na história de Facundo tal como apresentada por Sarmiento, esse telos é a derrocada final, aqui ligada a essa resolução da trajetória de Napoleão em Waterloo (quando é vencido pelos ingleses). Nesse sentido muito específico, Sarmiento é, mais uma vez, um Sarmiento borgeano, uma vez que a tendência/intuição de Sarmiento é a de considerar Waterloo uma vitória (pensar em Borges em sua autobiografia: "sempre penso em Waterloo como uma vitória" - Ensaio autobiográfico, trad. Maria Carolina de Araujo e Jorge Schwartz, Cia das Letras, 2009, p. 23).
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Desde 1980, com Respiração artificial, é recorrente o uso que faz Piglia de Sarmiento como personagem. O acesso recente aos diários amplia esse contato, como no caso de uma passagem do segundo volume dos Diários de Emilio Renzi, na qual Sarmiento surge como uma via de escape, como a possibilidade de uma vida distinta, inteiramente devotada à pesquisa do "texto fundador da literatura argentina" e seu autor. 13 de maio de 1970, escreve Renzi/Piglia: "Pensei que uma salvação possível para mim seria abandonar tudo e dedicar os próximos vinte anos da minha vida a estudar Sarmiento, metido em bibliotecas, enchendo fichas, consultando velhas edições, só e sem amizades, para chegar ao final da vida com centenas e centenas de notas e fichas e então armar um enorme volume de mil páginas no qual só se falará de Sarmiento, do Facundo talvez, só do Facundo" (Los años felices, p. 184). 

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Napoleão nos pampas

Em Facundo, de 1845, Sarmiento encontra Napoleão nos pampas: "Facundo é convidado a interpor sua influência, para apagar as chispas que foram acesas no norte da República; ninguém além dele está convocado para desempenhar essa missão de paz. Facundo resiste, vacila; mas afinal se decide. Em 18 de dezembro de 1835, sai de Buenos Aires, e ao subir à carruagem dirige, na presença de vários amigos, seus adeuses à cidade. "Se me saio bem", diz, agitando a mão, "voltarei a ver-te; se não, adeus para sempre!" Que sinistros pensamentos vêm assomar naquele momento à sua face lívida, no ânimo desse homem impávido? Não recorda o leitor algo parecido ao que manifestava Napoleão ao partir das Tulherias para a campanha que terminaria em Waterloo?" (Sarmiento, Facundo, ou civilização e barbárie, trad. Sérgio Alcides, Cosac Naify, 2010, p. 347)
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1) O deslocamento é breve, sutil, quase que apenas ilustrativo - mas muito relevante na ambição geral do livro de Sarmiento. Foi lutando contra Facundo que Sarmiento perde em 1831 e vai para o primeiro exílio no Chile. A questão é que Facundo no Facundo é também Rosas, o sucessor do primeiro ditador. "Facundo", portanto, deve fazer o leitor "recordar" não apenas Napoleão, mas também Rosas.
2) Alan Pauls fala de Borges e da "operação estrábica" de sua escritura (em El factor Borges), na medida em que acessa simultaneamente o passado e o presente, a "alta" cultura das citações filosóficas e a "baixa" cultura dos jornais e revistas (Pauls está falando das contribuições de Borges na imprensa na década de 1930). Operação estrábica como a de Sarmiento - falando de Facundo, reconstruindo a progressão histórica de Facundo e, ao mesmo tempo, armando um sentido subterrâneo que leva diretamente a Rosas, seu contemporâneo (que cairá só em 1852).
3) Napoleão morre em 1821, mas será enterrado definitivamente somente em 1840 - segue circulando, portanto (os restos mortais de Napoleão permanecem 19 anos como propriedade dos ingleses). O 18 de Brumário de Marx, publicado em 1852, não opera da mesma forma que o Facundo de Sarmiento? Não se trata da mesma operação estrábica? Lutero com a máscara de Paulo, a Revolução Francesa com a máscara da República romana, e assim por diante.  

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Puig, narração coral

Domingo, 2 de junho [de 1968]

A estrutura do romance de Puig é faulkneriana, narração coral a partir de narradores que interferem e são testemunhas dos fatos. É o leitor quem deve reconstruir e sintetizar um emaranhado de frases entrecortadas, fragmentos de diálogos, cartas, diários, até construir uma história que não está em lado algum, que não foi narrada, e sim aludida. Romance de formação, grande destreza no uso da oralidade.

Quinta, 6 de junho 

Em A traição de Rita Hayworth de Puig se produz um fenômeno de estilização, um tipo de distorção aparente que pode ser vista como um "defeito" de composição (à maneira do choque e da afetação estilística de Onetti). É, no entanto, a maior virtude, porque o romance revela o caráter extremo de um mundo que se move no interior de uma linguagem comum baseada em formas de expressão que vem do cinema de Hollywood, da fotonovela e do correio sentimental, que moldam a experiência vivida (e estão de fora de toda formulação literária ou de alta cultura). O notável é que maneja com tal qualidade essa forma de realismo verbal que converte a linguagem em expressão vívida da vida. Essa linguagem já é uma forma de vida. O romance trabalha então a realidade já narrada (pelos mass media). 


(Ricardo Piglia, Los diarios de Emilio Renzi, Los años felices (vol. II), Barcelona, Anagrama, 2016, p. 32-33)

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Foucault, asiático

Em um ensaio sobre o "discurso de Foucault" ("a historiografia do anti-humanismo", agora presente na coletânea The Content of the Form), Hayden White diz que a retórica do autor de Vigiar e punir é deliberadamente contrária à "claridade" da herança cartesiana. Contra o "aticismo" da geração anterior, Foucault seria "asiático". De novo, toda a questão dos "gregos e bárbaros". 
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A questão tem peso na história da filosofia, na história da literatura - o estilo que ora pende para o "grego", ora pende para o "asiático". White inclusive aponta que essa é uma característica não apenas de Foucault, mas de uma "geração" (Deleuze, Barthes, Derrida, Lyotard?). A questão é central também para Derrida, especialmente em sua leitura cruzada de Hegel e Kant: Kant ocupa a posição do judeu no sistema de Hegel, diz Derrida, assim como Levinas no sistema de Heidegger. Mais além, é um tema que Derrida resgata também de James Joyce: no ensaio "Violência e metafísica", de A escritura e a diferença, sobre Levinas, Derrida resgata a frase do Ulisses de Joyce:
Woman's reason. Jewgreek is greekjew. Extremes meet.  

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O tema circula: está na leitura que faz Edward Said de Freud, quando propõe um eixo oblíquo, asiático, em Freud e os não-europeus; ou ainda Peter Sloterdijk quando fala de Derrida como um egípcio (retomando também Hegel e a leitura de Hegel feita por Derrida no ensaio "O poço e a pirâmide"); Guy Davenport, por sua vez, escreve que “a intuição mais produtiva de Oswald Spengler foi a de dividir as culturas do mundo em três grandes estilos: o apolíneo, ou greco-romano; o fáustico, ou norte-europeu; e o magiar, ou asiático e islâmico”, o que nos interessa, conclui ele, “é que as categorias de Spengler são exatamente aquelas de Edgar Allan Poe [em seus Tales of the Grotesque and Arabesque]”  

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Homero, Sófocles

1) Em determinado ponto de seu livro Antígonas - "a travessia de um mito universal pela história do Ocidente" -, George Steiner escreve que a Hélade, o mundo grego, tem suas raízes firmemente fincadas no canto XXIV da Ilíada de Homero. Tudo decorre dessa cena que coloca Aquiles e Príamo lado a lado, dialogando acerca do destino do cadáver de Heitor, assassinado pelo primeiro, filho do segundo. 
2) Muito daquilo que atravessava a sensibilidade grega nos temas da relação entre vida e morte, juventude e velhice, mortal e imortal, misericórdia, perdão e destino, intenções e reconhecimento mútuo, escreve Steiner, "está exposto nessa parte decisiva, a mais perfeita da poesia épica" (mais perfeita? graus na perfeição? pode-se aqui relembrar a resenha de Jonathan Barnes, que ressalta uma série de "descuidos" na prosa de Steiner - e já que estamos no tema, vale relembrar que o ensaio que Foucault dedicou à leitura que Steiner fez de As palavras e as coisas chama-se "A monstruosidade da crítica").
3) O ponto principal de Steiner é que também a Antígona de Sófocles é um desdobramento do canto XXIV da Ilíada - uma vez que Antígona, assim como Príamo, se manifesta em favor dos direitos de um morto (seu irmão Polinices). Steiner fala do "cunho homérico" do estilo de Sófocles. Mais do que isso: a peça de Sófocles expande também o tema do confronto entre juventude (Aquiles) e velhice (Príamo), com Antígona em choque com Creonte e seu coro de anciãos. É nesse choque, contudo, que está a diferença de Homero para Sófocles. Aquiles e Príamos chegam a um instável acordo, mas Antígona e Creonte falam sempre de lugares distintos, irredutíveis: ele fala da lei, ela do desvio; ele fala do tempo imediato da governabilidade, ela fala da eternidade dos direitos; ele fala do coletivo, ela da individualidade.    

domingo, 5 de novembro de 2017

Às cegas

1) O romance de Claudio Magris, Às cegas, originalmente de 2005, é por vezes confuso e excessivo, ainda que parta de uma premissa interessante: uma investigação ficcional do destino dos italianos na região da Ístria sob Tito, logo após o fim da II Guerra Mundial. Um ex-combatente comunista conta sua história naquilo que parece ser um interrogatório (uma confissão no leito de morte), e assim se desenrola o romance em primeira pessoa. Essa identidade que confessa, contudo, surge mesclada com outra, anterior, e uma segunda ainda mais antiga, arcaica: o combatente do século XX declara ser também um aventureiro dinamarquês que combateu durante as guerras napoleônicas e, por vezes, aproxima a si próprio de Jasão e dos argonautas e da busca pelo velocino de ouro.
2) Em determinado ponto do romance, a versão napoleônica do narrador conta uma de suas incontáveis viagens em direção à Austrália nos primeiros anos do século XIX, especificamente à colônia penal da Terra de Van Diemen - "logo entendi que o cirurgião Rodmell não sabia como se virar e lhe sugeri aqueles emplastros aplicados à nuca e umas pílulas diaforéticas, boas para fazer suar e reduzir a febre, que aprendi como assistente no Lady Nelson", diz o narrador, e continua com algumas observações dignas de nota: "Rodmell se preocupava com os forçados, desde que o governo estabelecera que daria ao cirurgião dos navios meio guinéu para cada prisioneiro que desembarcasse saudável - visto que os navios, entre febres, disenterias, infecções e comandantes que enriqueciam poupando o alimento dos prisioneiros até fazê-los morrer de fome, aportavam no destino com metade da carga humana, e mesmo os que chegavam vinham devastados pelo escorbuto e pela desnutrição, prestando-se pouco aos trabalhos forçados" (Claudio Magris, Às cegas, trad. Maurício Santana Dias, Cia das Letras, 2009, p. 258).
3) Esse breve detalhe histórico que Magris encaixa em sua história (por vezes tão exasperante em seus excessos) descortina um amplo conjunto de problemas, desde o imperialismo europeu do século XIX (Goethe, Marx, Edward Said) até a emergência do paradigma biopolítico no século XX (Foucault, Agamben, Deleuze, Arendt). Nessa instrução do Império ao médico - "fazer viver" os corpos ao invés de "deixar morrer", que é precisamente a passagem decisiva do político ao biopolítico - está toda a contradição de uma soberania que deve se construir sobre o duplo registro da punição e da recompensa. Essa oscilação contraditória entre punição e uso da força de trabalho que determina a atuação do médico e do imperialismo no século XIX prepara o terreno para os grandes projetos totalitários do século XX, com Stálin e Hitler (sendo justamente essa conexão um dos eixos subterrâneos do romance de Magris, ligando Napoleão a Tito, por exemplo). 

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O casaco de Renzi

O tema do confronto do escritor maduro com o jovem escritor, o mesmo escritor em duas distintas versões da vida. O período que Paul Auster chama "da mão para a boca" - vivendo com pouco, incerto com relação ao futuro. Há quase um sentimento de culpa do escritor maduro ao revisitar esse período da vida e, da parte do leitor, uma espécie de desapontamento diante do sucesso posterior (a visão sombria do jovem escritor frequentemente não se sustenta).
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Os diários de Emilio Renzi/Ricardo Piglia, especialmente o primeiro volume ("Os anos de formação"), estão repletos de situações que expandem e comentam essa lógica. Por isso é fundamental ter em mente que os diários de Renzi são reelaborações tardias de um Piglia maduro, bem-sucedido, à beira da morte. Escreve Renzi em 24 de março de 1967: “Olho criticamente certas decisões da minha vida que foram tomadas em razão do futuro da minha literatura. Por exemplo, viver sem nada, sem propriedades, sem nada material que me prenda e crie obrigações. Para mim, escolher é descartar, deixar de lado. Esse tipo de vida define meu estilo, despojado, veloz. É preciso ser rápido e estar sempre disposto a abandonar tudo e escapar” (Anos de formação - os diários de Emilio Renzi, trad. Sergio Molina, Todavia, 2017, p. 315).
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E Renzi volta ao tema no dia 29 de março de 1967: "O medo tomou conta de mim desde que deixei a universidade, logo depois do golpe de Onganía, e me somei aos professores que pediram exoneração, cortando assim a possibilidade de um emprego estável. Não faz muito sentido e é absurdo eu me apavorar com um futuro que se estenda além de seis meses. Tenho que viver com uma economia que garanta alguns meses seguros, não a vida toda, isso seria ridículo. Agora tenho pronto o livro de contos e duzentos mil pesos reservados (como adiantamento pela edição). Essas ideias surgem porque gastei 22.500 pesos num casaco italiano que comprei ontem" (p. 317).
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Eis um enigma econômico investigado por Marx que é também uma questão narratológica: é impossível dar conta do todo abstrato social sem o recurso à experiência singular. Nesse sentido, é digno de nota que o que tenha motivado o comentário de Renzi/Piglia tenha sido justamente um casaco, caso lembrarmos toda a narrativa ensaística de Peter Stallybrass ao redor do "casaco de Marx". Ao contrário da experiência de Auster, contudo, o confronto de Piglia com sua versão jovem sem futuro (a ironia intrínseca do dilema: o diário se faz na confiança de um futuro, de uma leitura póstuma) passa pela ditadura, pelo estado de exceção, marca decisiva na literatura do século XX em geral (de Nabokov a Imre Kertész).   

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Harmonia e o desejo

Já no final de As núpcias de Cadmo e Harmonia, seu livro sobre a mitologia grega, Roberto Calasso chega finalmente a uma das versões da história de Harmonia. Quando Cadmo chega ao reino de seu pai, já sabendo que Harmonia lhe está destinada, a menina não se impressiona. Não foi fácil persuadir Harmonia, escreve Calasso. Fechada em seu quarto de moça, esbravejava entre lágrimas, tocando os objetos mais queridos, que não queria deixar. Por que a mãe decidira entregá-la àquele homem desconhecido, que contava histórias pouco confiáveis, que não tinha nada para oferecer, exceto os equipamentos do navio, um vagabundo, um fugitivo, um marinheiro, um homem sem eira nem beira?
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Não foi Electra, a mãe, quem persuadiu Harmonia, mas a amiga Peisínoe, que se fechou com ela no quarto. Queria confessar-lhe que o "belo estrangeiro" não lhe saía do pensamento. Falava num "delírio de adolescente", descrevia o corpo de Cadmo, sonhava que a mão dele lhe acariciasse os seios redondos sem escrúpulos, sonhava "mostrar-lhe a nuca". Harmonia a escutava e se dava conta de que algo estava mudando nela: "enamorava-se pelo desejo da amiga, continuando a olhar ao redor desesperada, pois sabia que, se partisse, nunca mais havia de rever aquele quarto" (p. 263).
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Harmonia desejava o desejo da amiga e nesse percurso aceita Cadmo. É exatamente o que vai dizer Alexandre Kojève em sua Introdução à leitura de Hegel: "o desejo é o desejo do outro". Kojève deixa a Alemanha durante a ascensão do nazismo e sucede Koyré na École Pratique des Hautes Études, em Paris. Ali, de janeiro de 1933 a maio de 1939, apresenta seu curso sobre Hegel, pelo qual passaram Raymond Aron, Georges Bataille, Pierre Klossowski, Jacques Lacan, Maurice Merleau-Ponty, Raymond Queneau, Eric Weil, e esporadicamente, André Breton. 

"Queneau, que coligiu as suas notas de curso e fixou o que conhecemos desse ensinamento essencialmente oral, em 1947, diz que Bataille aproveitou profundamente as lições do mestre, embora frequentemente dormitasse durante a aula."

terça-feira, 31 de outubro de 2017

O escândalo de Homero


Entre Homero e toda teologia sucessiva, incluída a de Hesíodo, subsiste uma divergência radical, que provoca escândalo. 

Homero, como é referido em Plutarco, recusa-se a distinguir entre deuses e daímones: "parece usar os dois termos indiferentemente e fala dos deuses como daímones". Isso impede de descarregar sobre os daímones as ações tenebrosas dos deuses e veta qualquer concepção de uma escala do ser em que, através de purificações sucessivas, seja possível ascender até o divino e este possa ordenadamente descer até o homem. 

Tal concepção, que é o fundamento iniciático de todo platonismo, já se tornara possível graças à subdivisão que Hesíodo fizera dos seres em quatro categorias: homens, heróis, daímones, deuses.

Homero, ao contrário, ignora a mediação. Para ele, dizer herói é como dizer genericamente homem, não sente falta de provocar a intervenção de uma classe autônoma de daímones. Aqui, os extremos são adjacentes: nada suaviza a violência do contato. Porém, é possível ler, sempre em Plutarco [O crepúsculo dos oráculos]: "aqueles que não admitem a estirpe dos daímones tornam estranhas entre eles e sem condições de serem misturadas as coisas dos homens e as dos deuses, eliminando, como disse Platão, 'a natureza interpretante e administradora', ou então nos obrigam a uma mistura geral e intrometem o deus entre as paixões e os negócios humanos, arrastando-o para baixo segundo as necessidades do momento, como se costuma dizer das mulheres de Tessália, capazes de trazer a luz para a terra". 

Talvez em nenhuma outra como nesta passagem do tardio e sábio Plutarco tenha sido enunciado o irremovível escândalo de Homero, o inimigo da mediação. Quando os padres cristãos praguejam contra as torpezas homéricas, não fazem outra coisa a não ser renovar, na essência, o escândalo de Platão e de seus descendentes, lucidamente organizados nas palavras de Plutarco. 

O curso da civilização grega surge então como o processo no qual se torna progressivamente intolerável a autoridade fundadora: o próprio Homero. 

(Roberto Calasso, As núpcias de Cadmo e Harmonia, trad. Nilson Moulin, Cia das Letras, 1990, p. 190-191).

domingo, 22 de outubro de 2017

Aos trancos

A evocação que Rachel Bespaloff faz da guerra em Homero e Tolstói lembra aquele capítulo de Mimesis no qual Auerbach fala da Canção de Rolando, da passagem do século XI ao XII. Nesse capítulo, o quinto, Auerbach fala que a guerra na Canção de Rolando funciona como a cópula, com idas e vindas, arremetidas e retornos. Ele faz referência à parte final do relato, quando Rolando, já emboscado pelos inimigos, recusa por três vezes tocar a corneta para pedir auxílio; quando ele finalmente decide tocar, a decisão é recusada três vezes por aquele a quem o pedido inicial foi recusado, Oliveiros. Escreve Auerbach:

Os três efeitos também dão, contudo, no seu conjunto, uma evolução, isto é, da primeira estupefação até a compreensão total da situação, mas esta evolução não é uniformemente progressiva, senão que avança aos trancos, com embates para frente e para trás, como o ato da procriação ou do parto. A repetição variante do mesmo tema é uma técnica que provém da poética médio-latina, a qual, por sua vez, a toma da velha retórica (Mimesis, p. 90).

Auerbach aproxima o movimento da guerra ao nascimento do ser humano. Já na Ilíada a aproximação é feita, além de ser toda construída a partir desse procedimento "não uniformemente progressivo", desde o contexto mais amplo (os embates para frente e para trás que levam os troianos até a beira das naus dos aqueus, e que levam os aqueus até a beira das muralhas de Troia, e assim por diante), até as situações mais específicas, que replicam essa oscilação mais ampla (no contexto dos aqueus, os "trancos" e tensões na lida com Aquiles; ou ainda o climático confronto deste com Heitor).

      

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O mito sob o totalitarismo

"O resgate do mito sob o totalitarismo", resumo da atividade de uma geração, resumo de toda uma deriva da história da literatura na primeira metade do século XX ("sob" o totalitarismo tanto no sentido de uma atividade que continua ocorrendo em clandestinidade quanto no sentido de uma atividade que sustenta o totalitarismo, como base e apoio). Roger Caillois publica em 1938 O mito e o homem, em 1939 O homem e o sagrado, e, em 1963, Bellone ou La pente de la guerre, uma espécie de suma de suas ideias sobre a relação entre corpo, guerra e mito (polémologie que se inicia já na década de 1930 em seu contato com Georges Bataille).
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Um ponto de partida possível pode ser o Ulisses de Joyce, de 1922, relato da metempsicose do herói grego e do insípido Bloom irlandês (que é também Italo Svevo, seu modelo na vida real). Essa é a leitura de cabeceira de Hermann Broch, a leitura que transforma sua poética e o leva em direção à Morte de Virgílio (iniciado em 1936, retrabalhado em 1938 e finalizado no exílio nos Estados Unidos de 1940 a 1945, ano em que foi publicado).
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A primeira edição de A morte de Virgílio foi feita nos Estados Unidos - a tradução para o inglês feita por Jean Starr Untermeyer (colaboradora de Broch do quilate que foi Beckett para Joyce). A editora responsável foi a Pantheon Books, fundada em 1942 por Kurt Wolff (editor da Metamorfose de Kafka em 1916) e Helen Wolff, em conjunto com Jacques Schiffrin (como já apontei aqui, criador da Bibliothèque de la Pléiade e responsável pelo jantar que reuniu Hannah Arendt, Broch, Rachel Bespaloff e Mary McCarthy).
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Finnegans Wake leva parte do procedimento adiante: mito da origem da linguagem e também uma linguagem que possa dar conta do mito da origem (todas as línguas misturadas numa espécie de sincronia artificial, ou seja, sem hierarquia essencialista nos moldes totalitários). Joyce trabalhou 17 anos no Wake, publicando-o em 1939. Beckett pesquisava, coletava e registrava em cartões de papel palavras estranhas dos mais diversos idiomas, posicionando o material para uso de Joyce (e quando sua visão piorou, foi o próprio Beckett quem escreveu).     

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

O estilo da era mítica

O livrinho de Rachel Bespaloff sobre a Ilíada chama a atenção pela insistência no paralelo entre Homero e Tolstói: a guerra, a grandiosidade dos feitos e dos sentimentos, a brutalidade, o conjunto etéreo de sentimentos que se ligam ao mais material e direto da morte em combate, etc. Mais do que os elementos que Bespaloff escolhe para corroborar sua aproximação, salta aos olhos a perseverança na aproximação mesma, por si, uma criação da crítica ardorosamente defendida.
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O livro de Bespaloff foi escrito durante a II Guerra Mundial, no exílio. Isso não é mencionado em nenhum momento, mas é dado fundamental para se pensar a razão da escrita, a razão da crítica nesse momento - tanto aproximação quanto distanciamento, ambos radicais, do contexto imediato (nada mais distante de Hitler do que Homero; nada mais próximo da guerra do hoje do que a Ilíada de ontem).  
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Faz sentido, portanto, que a introdução à tradução para o inglês seja de Hermann Broch, exilado, também ele profundamente envolvido com o resgate do mito sob o totalitarismo ("O estilo da era mítica" é o título do texto que Broch escreve como introdução ao livro de Bespaloff). Broch e Bespaloff se encontraram em um jantar oferecido por Jacques Schiffrin (criador da Bibliothèque de la Pléiade) em sua casa em South Hadley, Massachusetts, no qual também estava Hannah Arendt. 
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Broch morre em Princeton, em 1951; Bespaloff se suicida em 1949, em Nova York - sua angústia era semelhante àquela que Adorno apresenta em Minima moralia: a vergonhosa abundância dos Estados Unidos, diante da ruína da Europa, se torna ainda mais escandalosa por ser tão ingênua e espontânea. É digno de nota que o livro de Adorno tenha sido escrito sob as mesmas condições e no mesmo período que a última produção tanto de Broch quanto de Bespaloff: Minima moralia é iniciado no exílio estadounidense em 1944, finalizado em 1949 e publicado em 1951. 

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Doktor Del Mal, 1

"Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê. A ficção também é uma posição do intérprete. Nem tudo é ficção (Borges não é Derrida, não é Paul de Mal), mas tudo pode ser lido como ficção. Ser borgeano (se é que isso existe) é ter a capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no poder da ficção. A ficção como uma teoria da leitura. 

Podemos ler filosofia como literatura fantástica, diz Borges, ou seja, podemos transformar a filosofia em ficção mediante um deslocamento e um erro deliberado, um efeito produzido no ato mesmo de ler.

Podemos ler a Enciclopédia britânica como ficção, e estaremos no mundo de Tlön. A Enciclopédia britânica apócrifa de Tlön é a descrição de um universo alternativo surgido da própria leitura"

(Ricardo Piglia, O último leitor, trad. Heloisa Jahn, Cia das Letras, 2006, p. 28).

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Doktor Del Mal

Era legendário o confronto de Ida com Paul de Man, quando ela fazia sua pós-graduação em Berkeley. Interpelara o professor numa conferência para lhe mostrar, com a precisão de um serial killer, que sua leitura de Conrad era esquemática e suas citações, mal escolhidas. Não há nada mais violento e brutal que o choque entre figuras nascentes e professores estabelecidos: são confrontos sem regras fixas, mas sempre são de morte. De Man nunca mais se recuperou, e foi a debilidade da sua posição que permitiu, algum tempo depois, que um obscuro historiador da Segunda Guerra desencavasse os artigos de um jornal belga dos anos 40 provando que ele tinha sido antissemita.

- Dr. De Man - ela lhe dissera, e sua dicção fazia o nome soar como Doktor Del Mal -, sua hipótese sobre a ironia no romance é despolitizadora e anacrônica.

Tudo com um sorriso e, segundo alguns, com um sári indiano que deixava ver que não usava nada por baixo. A escuridão do púbis, suave, aveludada e incrivelmente densa, provocava a imediata associação com o título do romance de Conrad que suscitara a discussão. 

Ela o humilhou, e o grupo de esnobes e jovens scholars que adoravam De Man e Derrida passaram a detestá-la mais que tudo na vida, nunca a perdoaram. De fato, seu primeiro emprego depois de se doutorar foi no gueto radical da Universidade da Califórnia em San Diego, onde estava Marcuse e lecionavam Joe Sommers e Fredric Jameson.

(Ricardo Piglia, O caminho de Ida, trad. Sérgio Molina, Cia das Letras, 2014, p. 116-117).

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Homero, Tolstói

Não se pode propriamente falar de um mundo homérico ou tolstoiano a propósito da Ilíada e de Guerra e Paz, no sentido em que falamos de um mundo dantesco, balzaquiano, dostoievskiano. O universo de Tolstói, o de Homero, é o nosso em cada instante. Não entramos nele, estamos nele. "Tudo dizer é-me difícil, não sou um Deus". Estas modestas palavras de Homero, Tolstói poderia tê-las subscrito. Nem um nem outro precisa de o dizer para que o Todo se revele. Só eles (Shakespeare por vezes) têm estas pausas planetárias acima do acontecimento onde a história surge na sua perpétua fuga para além dos objetivos humanos, no seu inacabamento criador. 

(Rachel Bespaloff, Sobre a Ilíada, trad. Filipe Jarro, Lisboa: Cotovia, 2005, p. 45). 


Para Tolstói, Napoleão não representa apenas o invasor da sua pátria, mas o rival de Deus; encarna o mito da grande personalidade que impede o regresso ao Ser indestrutível das existências específicas. E Koutouzov também não representa somente o herói libertador da terra natal, mas mais ainda o anti-herói, intérprete modesto de uma necessidade histórica cujo sentido e alcance confundem a razão humana.

Em qualquer caso o estilo da epopeia, quando atinge a grandeza que tem em Homero e em Tolstói, traz consigo a calma do olhar, a capacidade de sobrevoo, a superação das perspectivas mesquinhas, que excluem o arbitrário.

(p. 51-52)

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Danúbio e além

1) Marjorie Perloff abre seu livro mais recente, Edge of Irony: Modernism in the Shadow of the Habsburg Empire, com uma epígrafe retirada de Danúbio, o texto híbrido de romance e história que Claudio Magris publicou em 1986. Faz sentido na medida em que o livro de Perloff é a organização metódica não apenas de Danúbio, mas de boa parte da produção esparsa de Magris - que publicou também trabalhos "tradicionais", acadêmicos, sobre o tema da Mitteleuropa (como Il mito asburgico. Umanità e stile del mondo austroungarico nella letteratura austriaca moderna, de 1963, Lontano da dove. Joseph Roth e la tradizione ebraico-orientale, de 1971, ou L'anello di Clarisse. Grande stile e nichilismo nella letteratura moderna, de 1984). 
2) Abordando a questão por outro lado, é bem possível dizer que o trabalho de Perloff oferece uma condensação de tópicos que Magris já abordou e estabeleceu há décadas. As referências são, em grande medida, as mesmas: Freud, Wittgenstein, Robert Musil, Karl Kraus, Paul Celan e especialmente Canetti, que ocupa espaço central para ambos (junto com Joseph Roth). Perloff, em resumo, resgata e atualiza os temas de Magris, mas enfatizando de maneira muito mais direta seu comprometimento com o campo literário, uma opção que foi também de Magris, mas que Perloff declara já de início ser programática (não tanto Max Scheler, Kelsen ou Spengler, e sim Canetti, Musil, Kraus - e mesmo Wittgenstein considerado como estilista da língua).
3) "Um século depois de sua produção", escreve Perloff sobre a gigantesca peça de Kraus, Os últimos dias da humanidade, "o trabalho hipertextual de Kraus pode ser melhor entendido a partir daquilo que chamei em outro lugar de 'texto diferencial' - um texto nem singular, nem autônomo, mas feito de um conjunto de variantes. Iniciado em 1915, lido em pedaços em várias ocasiões ao longo da guerra, tendo partes publicadas na revista Die Fackel, intensamente revisado em 1918 mas não finalizado até 1922, e então mantido inédito na íntegra até 1926, Os últimos dias ofereceu incontáveis desafios para aqueles - editores, tradutores e diretores teatrais - que o tentaram reproduzir exatamente como o autor escreveu. O próprio Kraus sabia que era impossível. Seu drama tem cinco atos, mais o prólogo e o epílogo, percorrendo mais de 800 páginas" (p. 20).   

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Simone Weil, Benjamin

Comentei dias atrás o resgate que faz Didi-Huberman de Joyce e do Ulisses, algo que se realiza sob o signo da teoria da história de Benjamin. Benjamin escreveu suas Teses sobre o conceito de história em 1940, antes de fugir da França para a Espanha. Ele enviou por carta uma cópia do ensaio para Hannah Arendt, que por sua vez enviou para Adorno que, em 1942, publicou o texto pela primeira vez (um brochura mimeografada nos Estados Unidos, via Instituto de Pesquisa Social - além do ensaio de Benjamin, o volume, Walter Benjamin zum Gedächtnis, trazia dois ensaios de Horkheimer e um de Adorno). Em 1947, sai a tradução do ensaio de Benjamin feita por Pierre Missac para o francês (na revista Temps Modernes). Adorno publica novamente o ensaio em 1950, na Alemanha, na revista Neue Rundschau; e de novo em 1955, quando edita a primeira coletânea de ensaios de Benjamin; e finalmente em 1974, com o início da publicação das obras completas (em 1981, Agamben descobre material inédito de Benjamin nos arquivos de Bataille na Biblioteca Nacional de Paris - material que permite reconfigurar a forma e o conteúdo do ensaio sobre o conceito de história). 
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Num desses acasos de biblioteca, folheando livros próximos ao livro de Benjamin que estava consultando (a estratégia de Warburg da "lei da boa vizinhança", Gesetz der guten Nachbarschaft, ou seja, a organização da biblioteca que não leva em consideração prioritariamente a primeira letra do sobrenome ou mesmo divisões disciplinares, mas certas "afinidades eletivas" entre os livros), mais especificamente o livro Imperium, de Ryszard Kapuscinski (um livro-reportagem sobre a Rússia, que na minha estante vive próximo do Diário de Moscou, de Benjamin, e também de Viagem à Rússia, de Joseph Roth), e abrindo as primeiras páginas do livro de Kapuscinski achei uma frase de Simone Weil, uma das epígrafes do livro:

O presente é algo que nos une. O futuro criamos em nossa imaginação. Somente o passado é pura realidade
Ainda com as palavras de Benjamin na cabeça, a frase de Weil me pareceu benjaminiana, me pareceu compartilhar certa Stimmung dos anos da guerra (Weil morre três anos depois de Benjamin, em 1943). Descobri que a frase vem de seus Cadernos, de suas anotações esparsas justamente do período 1940-1942 - é uma frase contemporânea, portanto, das teses de Benjamin. No original, Weil escreve:

Le présent, nous y sommes attachés. L'avenir, nous le fabriquons dans notre imagination. Seul le passé, quand nous ne le refabriquons pas, est réalité pure. (Cahiers, III (1940-1942), Paris: Plon, 1974, p. 38). 

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Mestre dos que sabem

É bem conhecida a abertura de O que vemos, o que nos olha - nela, Didi-Huberman resgata a "inelutável modalidade do visível" que James Joyce postula no começo de Ulisses. O livro de Didi-Huberman, assim como o de Joyce, é uma reflexão acerca da tentativa de desnaturalização do olhar ("ver" é algo que se aprende, não surge pronto da noite para o dia, como Atena da cabeça de Zeus). O reconhecimento da passagem da naturalização para a desnaturalização não pode acontecer, evidentemente, sem trauma, drama, passagem, desnivelamento do não-saber em direção ao não-saber. Ver é perder, escreve o autor. Por isso Didi-Huberman frisa esse momento do Ulisses de Joyce:

Stephen Dedalus acaba de ver com seus olhos os olhos de sua própria mãe moribunda erguerem-se para ele, implorarem alguma coisa, uma genuflexão ou um prece, algo, em todo caso, ao qual ele terá se recusado, como que petrificado no lugar.
Alinhado que está à fenomenologia de Merleau-Ponty, Didi-Huberman busca atravessar Joyce em direção a uma crítica da experiência estética, sua historicidade e a possibilidade de engendrar um discurso crítico a partir daí (os três momentos interligados, ao longo de O que vemos, o que nos olha e do restante de sua obra). Nos termos da crítica literária, da teoria literária, o que nos vemos, o que nos olha - essa fórmula - pode indicar a possibilidade da tradição (do passado das obras, das referências) permanecer aberta e atuante no presente. É nesse espírito que Didi-Huberman resgata, no mesmo trecho, essas primeiras páginas do livro, a teoria da história de Walter Benjamin: 

Está claro, aliás, que essa modalidade [inelutável, ou seja, "votada a uma questão de ser"] não é nem particularmente arcaica, nem particularmente moderna, ou modernista, ou seja lá o que for. Essa modalidade atravessa simplesmente a longa história das tentativas práticas e teóricas para dar forma ao paradoxo que a constitui (ou seja, essa modalidade tem uma história, mas uma história sempre anacrônica, sempre a "contrapelo", para falar com Walter Benjamin). 

É claro que isso já está posto por Joyce, no resgate/reconfiguração de tudo que faz em Ulisses - e também claramente delineado pelo próprio Didi-Huberman, que ressalta como a passagem de Dedalus diante do mar no romance de Joyce é já uma releitura de Dante e Aristóteles (é no primeiro círculo do Inferno - o Limbo - que Dante - textualmente citado na passagem de Joyce - ergue os olhos para perceber Aristóteles, "o mestre dos que sabem"). Um fragmento de Wittgenstein, do Tractatus (6.522), fecha o capítulo de Didi-Huberman:

Há seguramente o inexprimível. Este se mostra.
(Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha. trad. Paulo Neves, Ed. 34, 1998, p. 29-35).

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Os irmãos Tanner

1) Uma das primeiras sensações que o leitor alcança ao ler Robert Walser é que seus personagens não encaixam no tempo/espaço a eles destinado. Eles vivem vidas fora do compasso cotidiano, tradicional da sociedade - estão out of joint, para usar a nomenclatura de Shakespeare, Marx e Derrida. Isso é verdade também em Os irmãos Tanner, romance com elementos próximos à vivência do próprio Walser (os irmãos, a mãe com problemas mentais, a tensa relação entre a vida no campo e a vida na floresta). O manicômio, a loucura, são elementos que estão tanto no passado quanto no futuro de Walser no momento em que escreve Os irmãos Tanner e finalmente o publica em 1907.  
2) O protagonista do romance é Simon Tanner, o mais novo dos irmãos. Outros dois, o pintor e o acadêmico, surgem também em seguida, sem grandes preâmbulos. O quarto irmão, contudo, Emil, só é apresentado com o romance muito adiantado e de forma visivelmente construída, pensada para gerar surpresa no leitor - a história do irmão é contada a Simon por um estranho, em um bar, até o momento em que ele revela que o protagonista da história é seu irmão, que passou de jovem brilhante a interno de um manicômio. Nas últimas páginas do romance, Emil retorna, quando Simon faz uma espécie de retrospectiva de sua vida e suas relações:

Esse irmão infeliz era sem dúvida, posso dizê-lo com serenidade, o ideal de um homem jovem e belo; e talentos ele tinha, embora fossem antes apropriados ao século XVIII, galante e gracioso, do que a nossa época, com suas exigências mais áridas e duras. Permita que eu silencie sobre sua infelicidade, porque, em primeiro lugar, eu lhe arruinaria o humor. (Walser, Os irmãos Tanner, trad. Sergio Tellaroli, Cia das Letras, 2017, p. 277).
3) O tema da desrazão e o tema do tempo out of joint se articulam rapidamente em Emil Tanner, essa figura que Walser parece deliberadamente reservar para breves aparições, para, com isso, intensificar seu enigma (o enigma que será também o seu, o de Walser, no futuro). A sensação das vidas em descompasso dos personagens de Walser ganha, com Emil, uma especificação rara, bem pouco do feitio de Walser - seus talentos não servem à "nossa época", são apropriados ao "século XVIII, galante e gracioso". Sim, o século de Rousseau, o Rousseau da rêverie, do promeneur solitaire, leitura fundamental para Walser (como será para Sebald), força motriz de sua própria obra.

domingo, 20 de agosto de 2017

Realismo

Simon começou a se instalar no campo. Suas malas chegaram depois, pelo correio, ao que ele, então, desempacotou suas coisas. Já não tinha muitas - dois ou três livros velhos que não quisera vender ou dar, roupa de baixo, um terno preto e um amontoado de miudezas, como barbantes, retalhos de seda, gravatas, cadarços, tocos de vela, botões e pedaços de linha. (Robert Walser, Os irmãos Tanner, trad. Sergio Tellaroli, Cia das Letras, 2017, p. 118). 
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Naturalmente ninguém se ocuparia de estudos como esses se de fato não existisse um ser que se chama Odradek. À primeira vista ele tem o aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela, e com efeito parece também revestido de fios; de qualquer modo devem ser só pedaços de linha rebentados, velhos, atados uns ao outros, além de emaranhados e de tipo e cor os mais diversos. Não é contudo apenas um carretel, pois do centro da estrela sai uma varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. (Kafka, Um médico rural, trad. Modesto Carone, Cia das Letras, 1999, p. 43). 
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Robinson Crusoe, naufragado na praia, procura em torno os companheiros de navio. Mas não há nenhum. “Nunca mais os vi, nem sinal deles”, diz, “a não ser três chapéus, um boné e dois sapatos que não eram parceiros.” Dois sapatos, não parceiros: não sendo parceiros, os sapatos deixaram de ser calçados, passaram a ser prova da morte, arrancados dos pés dos afogados pelos mares espumosos, e atirados à praia. Nenhuma grande palavra, nenhum desespero, apenas chapéus, boné, sapatos. (Coetzee, Elizabeth Costello, trad. José Rubens Siqueira, Cia das Letras, 2004, p. 10-11).

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Não ser, nada ser

Numa dessas suas típicas digressões, que vão em direção à anedota e também ao poético, Nietzsche, em O nascimento da tragédia, fala do rei Midas e do dia em que perseguiu pela floresta Sileno, o companheiro de Dionísio. Quando finalmente o alcançou, o rei perguntou ao "demônio" "qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem". "Obstinado e imóvel, o demônio calava-se", continua Nietzsche, "até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras:
'- Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer'." (Nietzsche, O nascimento da tragédia. trad. Jacó Guinsburg, Cia das Letras, 1992, p. 36). O melhor para ti é logo morrer
A frase de Sileno (que era uma espécie de tópica entre os gregos - está, por exemplo, em Heródoto, na história de Creso - e no Banquete, Alcibíades fala de Sócrates como um "sátiro de nariz de bulbo", um Sileno) retorna em Sófocles que por sua vez retorna em Disgrace, de Coetzee: a frase de Sófocles [do coro de Édipo rei] aparece já no início, na terceira página, décimo parágrafo, como a antecipação de tudo que ainda virá no romance - nenhum homem é feliz, até morrer [a tradução brasileira não coloca a vírgula, deixando a frase, tão densa de significados e tão importante para a totalidade do romance, com uma ambiguidade ridícula - nenhum homem é feliz até morrer? Ou seja, ele tem alguns momentos de infelicidade aqui e ali? É impossível ser feliz o tempo inteiro?].