"Entro e saio da história argentina. Agora as origens do teatro."
Ricardo Piglia, Los diarios de Emilio Renzi, tomo II, Los años felices, Anagrama, 2016, p. 416.
1) Essa é uma anotação de Piglia/Renzi do dia 02 de dezembro de 1975. Um de seus desenvolvimentos possíveis está em uma das seções de O último leitor, que Piglia publica em 2006. No capítulo de O último leitor sobre Anna Kariênina há uma seção intitulada "Uma atriz no deserto". Piglia cita Estanislao Zeballos e seu livro Callvulcurá e a dinastia dos Piedra. Seleciona o trecho no qual Zeballos menciona o coronel Baigorria, "que se enfia terra adentro para viver com os índios e lê o Facundo no deserto". Zeballos, cita Piglia, conta a história de uma mulher prisioneira, "uma atriz prisioneira no deserto aí por meados do século XIX, no rio da Prata. Uma figura enigmática. Ela tem, em seu silêncio, a lembrança dos livros que leu e que carrega na memória. Podemos imaginar sua história, os teatros em que atuou e os textos que leu e que ecoam, como uma música, no silêncio do deserto. A história de uma atriz prisioneira. A atriz como leitora".
2) Piglia entra e sai da história argentina, portanto, pela oscilação entre o geral e o particular. Depois de citar Zeballos, Piglia contextualiza: "Correm os tempos de Rosas. Naqueles anos, várias companhias atuam em Buenos Aires. Apresentam espetáculos no teatro Vitória e no teatro Argentino de Buenos Aires, fazem turnês pelo interior do país, se apresentam também em Montevidéu, Santiago do Chile e Rio de Janeiro. Pequenas companhias percorrem, na época, as províncias e os países vizinhos. Entre elas - como registra Raúl Castagnino em O teatro na época de Rosas - se destaca a de Telémaco González, que viajava para o Chile frequentemente e que era formada por Trinidad Guevara e Juan Casacuberta, fundadores do teatro nacional".
3) No início do parágrafo seguinte, Piglia retorna ao detalhe, aproximando o foco, e escreve: "Mas o que nos interessa é um pequeno incidente narrador por Beatriz Seibel em História do teatro argentino. Nesse livro ela relata uma das turnês da companhia de Telémaco González pelas províncias, possivelmente com o objetivo de voltar ao Chile, onde era muito conhecido". A partir de duas fontes distintas (Seibel e Castagnino), Piglia rastreia detalhes da companhia de González. É o próprio González quem mais tarde relata o ataque "de índios selvagens" sofrido pela companhia, durante o qual tiveram que abandonar, "deixando para trás, prisioneiras, a mãe e o resto da família".
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A hipótese de Piglia, portanto, é a de que a atriz sem nome de Baigorria seja parte dessa comitiva de González atacada pelos índios. Essas companhias foram as primeiras a encenar Shakespeare (e Sarmiento escreveu a crítica de Otelo, informa Piglia entre parênteses). "Podemos imaginar nossa prisioneira atuando em Hamlet ou quem sabe em Otelo. E as tragédias de Shakespeare ecoando na memória daquela mulher no deserto" (Piglia talvez aí faça referência ao conto de Borges, "A memória de Shakespeare", incluindo mais um elemento na equação borgeana). "Sempre há um livro no deserto", finaliza Piglia, "sempre aparece a ideia de um livro que sobrevive no deserto e que, como no Facundo lido por Baigorria, encerra a verdade deste mundo e prediz seu fim".
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