quarta-feira, 24 de junho de 2015

Absalão, Absalão!

1) Três dos maiores escritores da primeira metade do século XX partem de uma premissa bastante semelhante, uma espécie de "poética da repetição", mas com resultados incrivelmente diversos: Borges (que repete Cervantes, que repete a tradição medieval de comentário e glosa), Joyce (que repete Homero, Vico) e Faulkner, que parece organizar sua poética da repetição em torno de outras três referências: Homero, a Bíblia e Shakespeare.
2) No caso de Light in August, romance que Faulkner publica em 1932, o título viria, segundo o próprio autor em entrevista, de uma ideia literal de "luz em agosto", ou certa "luz de agosto" (não tanto "leve em agosto", por exemplo) que surge lá pelo meio do mês, como que uma suspensão, uma ambiência específica (a Stimmung de Spitzer), que surge "dos velhos tempos clássicos", da Grécia e do Olimpo, "uma luminosidade mais antiga que nossa civilização cristã", propícia para o surgimento de faunos e deuses. Note-se, a propósito, que a primeira publicação de Faulkner, aos 21 anos, foi um poema intitulado "L'Après-midi d'un Faune" (repetição de Mallarmé) e que o título de seu romance de 1930, As I Lay Dying, vem direto da Odisseia de Homero, em referência à morte de Agamenon. 
3) A Bíblia e Shakespeare frequentemente se encontram, em Faulkner, na ocasião da morte (que é também a ocasião da passagem, do legado, da herança, da repetição das gerações passadas em direção ao futuro - o peso do nome da família, do nome do pai ou do nome da mãe). Rei Lear, quando enlouquece, grita "matar, matar, matar, matar" e diante do cadáver da filha Cordélia, "nunca, nunca, nunca". O romance de Faulkner de 1936, Absalão, Absalão!, repete outra cena de desespero paterno: 2 Samuel 19, 1-5, quando Davi está diante do cadáver de seu filho e grita: "Absalão, Absalão! Meu filho, meu filho, meu filho". Quentin Compson, que já apareceu em 1929 em O som e a fúria, narra a história de Absalão, Absalão!, e sua narração é uma espécie de repetição daquilo que lhe foi contado por seu pai (assim como a história da queda da família Sutpen, de Absalão, é uma espécie de repetição da história da queda da família Compson).  

domingo, 21 de junho de 2015

Jones, Mannion, Martin Guerre

Edward G. Robinson como Arthur Ferguson Jones
Ainda pensando na predileção de Montaigne pelas "mímicas" e pelos "tiques" - que Compagnon comenta como "gestos não controlados", que "escapam da vontade", e que agradam a Montaigne porque "dizem mais sobre um homem do que as façanhas de sua lenda". Pensando no ensaio "Da experiência", quando Montaigne fala de suas fotografias, de como não se reconhece aos vinte e cinco, aos trinta e cinco anos (como no "auto-espanto" de Cioran comentado por Milan Kundera); ou no ensaio "Dos coxos", quando comenta o caso Martin Guerre no século XVI, ou ainda, o encontro dos dois Martin Guerre, o "impostor" e o "real", que retorna (e suas inúmeras repetições ao longo da história, como em Il teatro della memoria, de Leonardo Sciascia, sobre um caso de personificação/loucura na Itália de 1927, ou Impostura, de Vila-Matas, sobre um caso espanhol semelhante - livro que Vila-Matas afirma ter sido inspirado tanto por Sciascia quanto por Pirandello). 
Jones no restaurante, prestes a ser identificado como Mannion
O contato dos "gestos não controlados" com o tema da impostura leva a um filme de John Ford de 1935, The Whole Town's Talking. Edward G. Robinson interpreta dois personagens: Jones, um pacato e apagado funcionário de escritório, e "Killer" Mannion, assaltante de bancos e assassino que acaba de fugir da prisão. A notícia da fuga no jornal é acompanhada de uma foto de Mannion: descobre-se que o funcionário e o matador são idênticos. Jones é preso no lugar de Mannion e a polícia não aceita sua insistente e desesperada defesa - "Meu nome é Arthur Ferguson Jones! Eu sou membro da ACM!". Depois de horas, ele acaba sendo solto, tendo consigo uma carta assinada pelas autoridades, que assegura que ele não é Mannion, e sim Jones. 
 É claro que Mannion vai à casa de Jones atrás da carta, para que ele, Mannion, possa ser Jones durante a noite (cometendo crimes com a ajuda da carta). A dinâmica segue mais ou menos essa até o confronto final, e a performance de Robinson é impecável na diferenciação que faz entre Jones e Mannion, com exceção de um mínimo detalhe, de um "gesto não controlado", de um "tique" como aqueles de Montaigne: várias vezes Jones aparece molhando o dedo na língua para manipular papeis, cartas, jornais, cardápios; mas já para o final do filme, quando Mannion está convencendo Jones a cair na última armadilha, é ele quem molha o dedo com a língua, Mannion e não Jones - ou ainda, Mannion repete um gesto que é de Jones, um gesto que, aparentemente, não é de nenhum dos dois, mas de Robinson, o ator (um curto-circuito na impostura de uma impostura).
Mannion pressiona Jones, repete seu gesto e trai a impostura

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Odores, tiques, mímicas


Nos livros, Montaigne se interessa por detalhes que podem parecer-nos muito acessórios, como este, no pequeno capítulo "Sobre os cheiros", do primeiro livro: "Diz-se de alguns, como de Alexandre, o Grande, que seu suor exalava um odor suave, por alguma rara e extraordinária compleição". Montaigne leu esse dado minúsculo nas Vidas paralelas dos homens ilustres, de Plutarco, seu livro de cabeceira, um best-seller do Renascimento. 

O melhor que se pode esperar é que os homens não tenham cheiro algum. Ora, Alexandre - de suor suave - não só não cheirava mal como cheirava bem por natureza. Segundo Plutarco, ele tinha um temperamento ardente, semelhante ao fogo, que cozia e dissipava a umidade do corpo. Montaigne é apaixonado por esse tipo de observações que coleta nos historiadores. Interessa-se não pelos grandes acontecimentos, pelas batalhas, pelas conquistas, e sim pelas anedotas, pelos tiques, pelas mímicas: Alexandre inclinava a cabeça para o lado, César coçava a cabeça com um dedo, Cícero cutucava o nariz. Esses gestos não controlados, que escapam da vontade, dizem mais sobre um homem do que as façanhas de sua lenda.

(Antoine Compagnon, Uma temporada com Montaigne. Trad. Rosemary Abilio. WMF Martins Fontes, 2015, p. 145-146).
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Duas frentes se abrem a partir do comentário de Compagnon sobre Montaigne: a reflexão sobre as vidas, célebres ou infames, e a dispersão de seus detalhes (seja em Giorgio Vasari, ou em Michon e Foucault); e o desenvolvimento do "paradigma indiciário" de Carlo Ginzburg, que se desdobra a partir da intuição de Aby Warburg ("Deus está nos detalhes") e a partir da sintomatologia de Freud. Nada mais freudiano do que esses "tiques" e "gestos não controlados" de que fala Montaigne, e de que falará Agamben em Signatura rerum a partir da "teoria" e da "filosofia das assinaturas" (e sobretudo a partir da arqueologia de Foucault, fazendo com que as "vidas" e os "gestos" se juntem novamente; Montaigne como mais um elo de uma cadeia que leva dos homens das cavernas até o homem da multidão de Edgar Allan Poe). 
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"Uma disciplina como a psicanálise constitui-se", escreve Ginzburg, "em torno da hipótese de que pormenores aparentemente negligenciáveis pudessem revelar fenômenos profundos de notável alcance. A decadência do pensamento sistemático veio acompanhada pelo destino do pensamento aforismático - de Nietzsche a Adorno. O próprio termo 'aforismático' é revelador. A literatura aforismática é, por definição, uma tentativa de formular juízos sobre o homem e a sociedade a partir de sintomas, de indícios: um homem e uma sociedade que estão doentes, em crise. E também 'crise' é um termo médico, hipocrático. Pode-se demonstrar facilmente que o maior romance da nossa época - a Recherche de Proust - é constituído segundo um rigoroso paradigma indiciário" (Carlo Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais. "Sinais: raízes de um paradigma indiciário". Trad. Federico Carotti. Cia das Letras, 1989, p. 178).

sábado, 13 de junho de 2015

A perda de um dente

A morte é um dos grandes temas sobre os quais Montaigne medita e está sempre retomando. Não se pode ensaiar a morte, que só acontece uma vez, mas Montaigne aproveita toda experiência que possa dar-lhe uma ideia antecipada dela; por exemplo, uma queda de cavalo, seguida de um desmaio que lhe pareceu uma morte suave, tranquila. Aqui, a perda de um dente dá motivo para um pequena fábula sobre a morte.

Envelhecer apresenta pelo menos uma vantagem: não se morrerá de uma vez só, mas pouco a pouco, parte por parte. De modo que a "derradeira morte", como ele a chama, não deverá ser tão absoluta como se ocorresse durante a juventude e na flor da idade. O dente que cai - tormento banal, não catastrófico, que Montaigne deve ter conhecido ("Eis que um dente acaba de cair-me, sem dor, sem esforço; era o fim natural de seu tempo. É assim que me vou dissolvendo e escapando de mim") - torna-se um indício de envelhecimento e uma antecipação da morte. Ele o compara com outras falhas que estão afetando seu corpo, uma das quais, como dá a entender, atinge seu ardor viril. Montaigne, antes de Freud, associa o dente e o sexo como sinais de potência - ou de impotência, quando vem a faltar. 

"A morte mistura-se e confunde-se com tudo em nossa vida; o declínio adianta a hora dela e se intromete até mesmo no curso de nosso desenvolvimento. Tenho retratos de minha figura de vinte e cinco e de trinta e cinco anos; comparo-os com o de agora. Quantas vezes esse não é mais eu; quanto minha imagem atual está mais distante dessas do que da imagem de minha morte!" (III, 13 - Da experiência).

Montaige escuta a voz da razão: sua mente instrui sua imaginação. Possuímos fotos de nós nas diversas idades da vida; sabemos que não somos mais nós nessas imagens amareladas. Ele insiste na diferença que há entre mim agora e mim outrora. Isso não impede que algo em mim permaneça inteiro: "Esse não é mais eu", diz de um antigo retrato. Portanto, é porque permanece um eu, uma vida intacta, e é esse eu que desaparecerá. 

(Antoine Compagnon, Uma temporada com Montaigne. Trad. Rosemary Abilio. WMF Martins Fontes, 2015, p. 37-40).