sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Retrato, 1

O filme Portrait de la jeune fille en feu pode ser encarado também como uma sorte de relato bakhtiniano - e isso a partir de, pelo menos, dois caminhos: em primeiro lugar, o filme faz ver uma camada subterrânea da vida em comum, da vida em sociedade e da vida do discurso (aquilo que Bakhtin chama de carnavalização, a partir de Rabelais - e que, entre outros, Carlo Ginzburg seguirá a partir do moleiro Menocchio); em segundo lugar, o filme coloca em circulação uma sutil sobreposição de vozes, em um contínuo esforço de mesclar diferentes registros de estilo e também de interpretação de textos e discursos alheios (algo em torno àquilo que Bakhtin aponta a partir das noções de dialogismo e polifonia). 

Existe uma estratificação social muito clara operando no contato entre as mulheres do filme: a pintora que chega à ilha é, na medida do possível, independente, pois tem um ofício e um negócio que herdará do pai (e está firmemente ligada à cidade, um dos principais pontos de ancoragem da "burguesia"); a retratada, por sua vez, é filha de uma condessa e está isolada da cidade, vive na ilha distantes dos teatros e das novidades literárias (ainda assim, mesmo com tal privação dos sentidos, mantém a postura aristocrática que se espera); por fim, a empregada da casa, uma menina bem mais jovem, que cuida do fogo, da cozinha e da comida - será ela a responsável pela grande sequência de mistura e carnavalização do relato, quando as três vão juntas à festa popular, noturna e feminina organizada ao redor do fogo.
A mistura dos corpos gera e espelha a mistura dos discursos, exatamente como postula Bakhtin. O filme acrescenta uma camada a esse jogo polifônico precisamente quando entra em questão o livro (o livro que Héloïse pega de Marianne já no início). Trata-se de uma edição das Metamorfoses de Ovídio e adiante na história as três mulheres lerão juntas, na cozinha, diante do fogo (mais uma vez), a história de Orfeu e Eurídice. Cada uma delas apresentará uma leitura diferente do trecho de Ovídio e, além disso, o relato mítico será "citado" ao menos mais duas vezes: na despedida de Héloïse e Marianne e, alguns anos depois, no quadro que Marianne apresentará em uma exposição. 

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Retrato

O filme Portrait de la jeune fille en feu é uma sorte de mergulho muito concentrado na sensibilidade da segunda metade do século XVIII (a sensibilidade que vai até 1789, ao menos). É a sensibilidade do Werther de Goethe, por exemplo (que é de 1774): uma palavra (deslocada ou bem-colocada) pode decidir o amor, a devoção, o ódio ou a morte. 

É também a sensibilidade de Rousseau, morto em 1778, especialmente o Rousseau que tão bem expressa a pulsão do conhecimento, o desejo de abarcar todo o mundo a partir da observação devota de uma mente independente. Essa pulsão - em paralelo à tensão afetiva, erótica - organiza muitos dos encontros das duas personagens principais de Portrait de la jeune fille en feu, aquela que retrata (Marianne) e aquela que é retratada (Héloïse): logo no início, em uma das primeiras trocas de palavras entre elas, a mulher que vive isolada em uma ilha e que recebe, sem saber, aquela que fará seu retrato, pergunta: Você trouxe algum livro? Pode me emprestar?

O tom de Héloïse denuncia ao mesmo tempo uma urgência e uma distância: seu pedido vem do fundo de uma privação terrível dos sentidos (ela já esgotou todos os poucos livros que tem à disposição na casa da família, isolada em uma ilha) e, ao mesmo tempo, guarda uma distância, uma tentativa de não mostrar a Marianne justamente o tamanho de sua privação. Esse primeiro contato, esse primeiro pedido (que é também o primeiro dom, o primeiro oferecimento), reverberá ao longo de todo filme, costurando a tal "sensibilidade da segunda metade do século XVIII" a situações concretas - primeiro de tudo as seções de pintura, mas também as conversas à beira do mar, as leituras em voz alta diante do fogo da cozinha e a estupenda cena na qual Marianne "conta", "relata" uma sinfonia de Vivaldi à sedenta Héloïse.   

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Contra a interpretação?

O estilo moderno de interpretação escava e, ao escavar, destrói; ele cava “por baixo” do texto para encontrar um subtexto que é o verdadeiro. As doutrinas modernas mais importantes e celebradas, as de Marx e Freud, consistem de fato em elaborados sistemas de hermenêutica, em ímpias e agressivas teorias da interpretação. 

Todos os fenômenos observáveis são agrupados, na expressão de Freud, como conteúdo manifesto. Esse conteúdo manifesto precisa ser sondado e removido para encontrar o sentido verdadeiro — o conteúdo latente — por debaixo ou por detrás dele. Para Marx, acontecimentos sociais como revoluções e guerras; para Freud, acontecimentos da vida individual (como sintomas neuróticos e lapsos de fala) e também dos textos (como sonhos ou obras de arte) — todos eles são trata- dos como ocasiões de interpretação. 


Segundo Marx e Freud, esses acontecimentos apenas parecem ser inteligíveis. Na verdade, não têm sentido sem a interpretação. Entender é interpretar. E interpretar é reformular o fenômeno; é, com efeito, encontrar um equivalente para ele.

(Susan Sontag, Contra a interpretação, trad. Denise Bottmann, Cia das Letras, 2020, p. 20)

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Prisioneiros

Charles Simic escreveu um ensaio cujo título e conteúdo resumem (ao mesmo tempo em que expandem) aquela que parece ser a experiência compartilhada por tantos artistas que em algum momento tiveram que fugir: Prisioneiro da História. No século XX, um dos casos paradigmáticos é sem dúvida o de Nabokov: todos nós imaginamos com fervor as várias possibilidades da vida no futuro, um futuro que vai pouco a pouco se afastando, mas só o artista parece ter a capacidade de reivindicar tais possibilidades no âmbito de sua produção, ao mesmo tempo em que atualiza constantemente a tensão entre a infância e aquilo que se tornou.

A partir de Nabokov, Simic compõe com Aleksandar Hemon uma sorte de tríade dos prisioneiros da História providos de um demoníaco domínio das línguas - ou melhor, um domínio da capacidade de passar de uma língua a outra (do russo para o inglês em Nabokov; do sérvio para o inglês em Simic; do bósnio para o inglês em Hemon). Hemon, por exemplo, se declara "patologicamente bilíngue", marcado pelo abandono abrupto de seu país por conta do cerco de Sarajevo em 1992. "Novas palavras e locuções em bósnio nasciam da experiência da guerra", escreve ele, "e eu senti que não tinha o direito de usar essas palavras duramente conquistadas. Eu não podia mais escrever em bósnio". 

A troca da língua - o espetáculo da troca da língua tal como mostrado pela incrível capacidade de Nabokov, Simic e Hemon - é signo tanto de um voo quanto de uma ancoragem: para sempre presos ao evento traumático (revolução, guerra, cerco) e, ao mesmo tempo, forçando cada vez mais a distância entre o evento e aquilo que se pode fazer, artisticamente, a partir dele. Simic fala da foto dele bebê com sua mãe, passeando de carrinho pelas ruas de Belgrado: "eu a tinha finalmente convencido a comprar um brinquedo para mim, embora, sem que soubéssemos, Hitler e Stalin e seus exércitos já tinham feito planos para me transformar em um poeta americano".

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Lendo (Proust)

Em 1972, Paul de Man publica um ensaio sobre Proust, sobre a Recherche, sobre o primeiro livro da Recherche, sobre algumas páginas do primeiro livro da Recherche de Proust. São duas as cenas separadas por de Man: quando o narrador fala da atividade do menino Marcel como leitor e o episódio imediatamente anterior, quando se compara a empregada com uma figura de Giotto.

O objetivo de Paul de Man é mostrar que as contradições internas da obra já indicam, de saída, a impossibilidade de ler a Recherche como um todo coerente. De Man desvia o esforço de sedução estética de Proust em direção a uma leitura que privilegia a sedução retórica, indireta e camuflada e, por isso mesmo, mais "durável". É a disjunção entre "leitura esteticamente sensível" e "leitura retoricamente consciente", escreve de Man, que permite romper a "pseudosíntese" proposta por Proust entre dentro e fora, movimento e repouso, escritor e leitor e assim por diante.

Para exemplificar tanto a "pseudosíntese" quanto a eficácia de um rompimento da "sedução retórica", Paul de Man separa uma expressão recorrente na Recherche, "logo compreendi", plus tarde je compris. A aparição dessa fórmula promete uma satisfação, promete um esclarecimento, uma resolução - mas tal promessa não se cumpre em nenhum momento, ela é sempre postergada a cada nova utilização da fórmula (resta ainda pensar até que ponto a "denúncia" de Paul de Man pode ser lida como uma simples constatação, ou seja, a ideia de que o projeto da Recherche é aquele de uma performatividade em perpétua renovação, e não o desejo de postular um fechamento, uma "pseudosíntese" ou um todo coerente). 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Velhas paredes

Logo no início da segunda parte de seu Discurso do método, de 1637, Descartes escreve que "não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou". E continua: "vê-se que os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos procuraram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins. Assim, essas antigas cidades que, tendo sido no começo pequenos burgos, tornaram-se no decorrer do tempo grandes centros, são ordinariamente tão mal compassadas, em comparação com essas praças regulares, traçadas por um engenheiro à sua fantasia numa planície" (pense, por exemplo, no trabalho de rarefação da linguagem e da subjetividade que Beckett faz a partir de, entre outras referências, Descartes). 

A ideia, mesclada ao registro autobiográfico do Discurso, mascara sutilmente uma vontade iconoclasta: partir do zero, botar abaixo o que já está construído e começar de novo - um só artista, responsável pela construção da base ao teto. Ainda que Descartes não fale diretamente, o tipo de construção que mais se assemelha à sua descrição é a igreja: as mais tradicionais geralmente são construídas sobre outras ainda mais antigas, algumas das quais muitas vezes erigidas onde uma vez havia um altar pagão (em 1663, treze anos após sua morte, o Papa colocou as obras de Descartes no Index librorum prohibitorum).  
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Desde o livro inaugural sobre a interpretação dos sonhos (publicado em 1899 com a data 1900) Freud insiste na reconstrução arqueológica do inconsciente: a memória é feita de camadas, de estratos, de sobrevivências compactadas de diferentes períodos de experiências. No ensaio "Construções na análise", de 1937 (escrito em 1934), Freud fala que o trabalho do analista e o do arqueólogo é "idêntico", embora o primeiro trabalhe em melhores condições, tendo acesso a mais material auxiliar, porque se dirige a algo que está "vivo, não a um objeto destruído". O arqueólogo lida com artefatos com partes perdidas - o objeto psíquico, por sua vez, tem sua pré-história investigada pelo trabalho analítico. Pois, neste caso, "todo o essencial se conservou, embora pareça esquecido por completo; está ainda presente de algum modo e em alguma parte, só que soterrado, inacessível ao indivíduo".

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Versões do sacrifício

"Como mencionei no início, entre os livros dedicados ao escritor polonês e sua obra perdida, está aquele de Cynthia Ozick, intitulado The Messiah of Stockholm. Nesse livro de 1987, a escritora americana imagina que um homem, que se acredita ser o filho natural de Bruno Schulz, entra em contato, numa livraria antiquária de Estocolmo, com um estranho personagem, uma mulher que afirma ter o manuscrito de O Messias. O manuscrito eventualmente desaparecerá de novo (para ser mais exato, será queimado por aqueles que o consideram falso), mas o protagonista continuará a se perguntar se esse livro realmente era O Messias.


Bem, alguns anos depois da queda do império soviético, no início da década de 1990, Bronislaw Geremek, historiador e então ministro das Relações Exteriores polonês, disse a Francesco Cataluccio que fora abordado por um diplomata sueco algum tempo antes. Esse diplomata havia sido contatado em Kiev por um ex-agente da KGB, ou pelo menos por alguém creditado como tal, que afirmara que o manuscrito de O Messias de Bruno Schulz estava nos arquivos da polícia política e que, se o governo sueco estivesse interessado ou pudesse ser mediador junto ao governo polonês, ele estaria disposto a vendê-lo. Geremek conseguira obter uma página desse manuscrito para enviá-lo a especialistas que pudessem atestar sua autenticidade. A opinião fora que poderia realmente se tratar de O Messias. Pagou-se, então, ao diplomata sueco a quantia necessária para resgatar o texto, e ele, com a soma solicitada, partiu para a Ucrânia.


Talvez tenha retirado o manuscrito, talvez não. Não podemos saber, porque, durante sua viagem de regresso, sofreu um acidente: seu carro pegou fogo e ele e o motorista morreram. Como o acidente aconteceu, se foi uma morte provocada ou acidental, não podemos saber. Nem podemos saber se o manuscrito estava no carro, e então, como no romance de Ozick, foi queimado, ou se o próprio diplomata havia retornado com as mãos vazias e o manuscrito ainda exista em algum lugar. Também pode ter sido um quadro montado para conseguir, naqueles anos confusos e terríveis, trazer para casa uma ótima soma de dinheiro em dólares americanos"

(Giorgio van Straten, Histórias de livros perdidos, trad. Silvia Felix, Unesp, 2018, p. 56-58)


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"Há uma outra dimensão muito mais estranha do sacrifício. Permita-me usar outro exemplo do cinema, do filme Enigma (1983), de Jeannot Szwarc, história de um jornalista dissidente que se tornou espião, imigrou para o Ocidente, foi recrutado pela CIA e enviado para a Alemanha Ocidental para se apoderar de um chip de codificação e decodificação cuja posse permite a leitura de todas as comunicações entre a sede da KGB e seus outros postos. Pequenos sinais dizem ao espião que há algo errado com sua missão. À medida que nos aproximamos do final do filme, a solução é ingênua: a CIA já tinha o chip de codificação, mas, infelizmente, os russos suspeitavam desse fato, por isso pararam de usar a rede de computadores temporariamente para suas comunicações secretas. 

O verdadeiro objetivo da operação era convencer os russos de que a CIA não tinha o chip: a CIA manda um agente para consegui-lo e, ao mesmo tempo, deixa intencionalmente que os russos tomem conhecimento de que havia uma operação acontecendo para obter o chip, contando, obviamente, com a possibilidade de que os russos prenderiam o espião. O resultado final será que, ao conseguirem evitar a conclusão da missão, os russos estarão convencidos de que os norte-americanos não têm o chip e que por isso é seguro usar aquela via de comunicação...

O aspecto trágico da história, obviamente, é que a CIA quer que a missão fracasse: o agente dissidente é sacrificado em nome do objetivo maior da CIA, que é convencer o oponente de que ela não detém o segredo deste"

(Slavoj Zizek e Boris Gunjevic, O sofrimento de Deus: inversões do Apocalipse, trad. Rogério Bettoni, Autêntica, 2015, p. 47-48)