quinta-feira, 26 de novembro de 2009

El tilo

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Minha ideia era ler El tilo, de César Aira, no Google Books. Quando encontrei, fiquei feliz. Sabia, claro, que algumas partes não estariam disponíveis, mas sabia, também, que, como afirma o próprio Aira, sua narrativa é contínua e feita de lampejos heterogêneos, que ele tenta, na labuta diária, costurar. Encarei como uma tarefa de "leitor macho", como dizia Cortázar antes do feminismo. Ou seja, completar as lacunas, as lacunas forçosamente impostas pelo novo suporte, um suporte que estimula e censura ao mesmo tempo, um paradoxo que é guiado pela lógica do mercado. Só poderia ver o suficiente para depois ir comprar o livro.

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Os cortes do Google começaram na página 12, depois na 20, logo em seguida na 27 e o último na 34. O livro some na 42. Até aí muito de biográfico: um menino que cresce em Pringles na década de 50, um pai eletricista e uma árvore no meio do povoado, justamente el tilo, que é a árvore da tília. Não sei, só li até a página 42, como já disse, mas imagino que Aira faça referência ao chá de tília que Marcel toma na Recherche, esse livro tão exigente que Aira lê aos quinze anos e lhe faz descobrir que a vida simplesmente não tem clímax, que se trata de uma sucessão de acontecimentos sem desenlace. Curioso, porque as 42 páginas iniciais de El tilo são sobre a infância - enquanto Marcel utiliza chá e biscoitos para acessar a memória, César utiliza a matéria bruta, a árvore que gera o chá, como "desinibidor" da memória. A literatura de Aira é cheia desses "desinibidores", como um carrapato cego que se lança sobre o animal de sangue quente, quando fareja sua aproximação - a literatura de Aira salta de suporte em suporte atrás de sangue quente, temas, histórias. Aliás, El congreso de literatura é justamente sobre um cientista (Aira) que cria uma mosca que tem como missão capturar o código genético de Carlos Fuentes em um congresso de literatura, mas que acaba pousando em sua gravata.
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Há o sujeito que escreve sobre como falar dos livros que não lemos. Mas como falar dos livros que só lemos até a página 42? Minha leitura emula a própria construção da novelita de Aira, e em certa medida é a leitura mais fiel que se pode obter, diante das circunstâncias: os cortes na memória do protagonista são erráticos, as lacunas são desconfortáveis e a história parece não ir a lugar algum. E lendo El tilo, lembrei de outra árvore, essa das minhas leituras de adolescência, ou seja, Aira pode ter lido Proust, mas eu li Erico Verissimo. Em O tempo e o vento há uma árvore no centro da praça central de Santa Fé, ali onde aparece o negro enforcado, que voltará para assombrar Bolívar, e também onde aparece outro enforcado, lá no fim do romance, Arão Stein, o judeu comunista, que assombrará Floriano Cambará, que está escrevendo o livro. As 42 páginas de El tilo bastaram para iluminar retrospectivamente as 2.000 páginas de O tempo e o vento. "A modernidade entrava em mim como uma torrente selvagem e eu mesclava tudo", escreve Aira na página 36.
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Curioso isso do personagem que lemos estar escrevendo o livro que lemos, como acontece com Floriano Cambará, o que permite ao Erico Verissimo transformar o primeiro parágrafo também em último, quando Floriano decide finalmente sentar à máquina e começar seu livro. Aira, nas 42 páginas de El tilo às quais tive acesso, faz o mesmo. O narrador está escrevendo na máquina de um vizinho qualquer: "Se inclinó sobre mi hombro a mirar, vio mi coma, y observó otra cosa: - Ojo! Antes de la y griega no se pone coma, nunca. No era lo que yo había preguntado, aunque la advertencia era pertinente porque había puesto la coma antes de una "y".", página 39. Está ali, viram?: "...vio mi coma, y observó..." - justamente o 'y' depois de uma vírgula, como foi advertido lá na infância, e como continua fazendo, unindo as duas pontas da vida, talvez, como se El tilo já estivesse escrito, desde antes.
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A página 42 começa com "novelita de homenaje justamente sobre la coma." - trata-se do fim de uma das partes cortadas, o que me deixou à deriva, imaginando uma novelita, escrita sobre Aira, que trata justamente da vírgula. Desconheço, até hoje.
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terça-feira, 24 de novembro de 2009

Parmênides


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- Escreve Octavio Paz, no livro El arco y la lira: "Desde Parmênides nosso mundo tem sido o da distinção clara entre o que é e o que não é. O ser não é o não-ser."

- Essa demarcação é uma possível chave de leitura para o livro de César Aira, Parménides.

- O livro de Aira, da mesma forma que Bartleby & companhia, de Vila-Matas, é uma reflexão sobre a potência do Não e da negatividade na escritura, ou ainda, seu duplo, o silêncio.

- Já dizia Kafka: pior que o canto da sereia é seu silêncio.

- A ficção torna-se um relatório da impossibilidade de dizer. O narrador de Aira, um escritor profissional contratado por Parmenides, nos conta como essa relação com o filósofo alongou-se por anos sem gerar qualquer obra material.

- Beckett: o único que pode não fazer é o artista, ao contrário do louco ou da criança.

- O Parmênides de Paz é diferente do Parmênides de Aira, creio eu. Afinal de contas, Paz é aquele guardião bem fornido do saber que o real-visceralista persegue em um parque público, enquanto o professor faz seu exercício matinal, andando em círculos (isso está nos Detetives selvagens).

- Em que ponto o surrealismo reivindicado por Paz começou a dar em nada? Onde exatamente a an-arquia (sem arquivo, fora do arquivo, da instituição, da lei) foi assimilada?

- Que anacronismo bonito faz Aira em Parménides: o local inusitado, no tempo e no espaço, é como um fiapo de carne entre os dentes depois de um almoço farto, principalmente por conta dos diálogos e das questões que ele levanta, tão contemporâneos.

- Mas é isso, no fim das contas: sobreposição de temporalidades, com-tempos, gerar faísca criativa com o contato bizarro das togas gregas com a negatividade pós-estruturalista.

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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Mulheres/Loucura

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Dediquei certo tempo, por conta de algo que escrevi, às relações da loucura com a literatura - ou ainda, da contingência com a expressão. E mais: a modificação que sofre a arte por conta da loucura ou da contingência, seja qual for. Exemplo: os microgramas que Walser inventa no manicômio.

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Nos últimos dias encontrei muitas referências à loucura das companheiras de escritores, que terminei por agregar ao material que já tinha. A mulher de Pirandello, por exemplo, que, a exemplo da mulher de Joyce, Nora Barnacle, nunca encostou em nada escrito pelo marido, tinha acessos de depressão, de desespero e de raiva, alucinações e visões, principalmente depois que um dos filhos do casal alistou-se para lutar na I Guerra. Em 1919, foi internada num sanatório. Em 1921, era a vez da primeira esposa de T.S. Eliot ser internada, num período em que Eliot enfrentava dificuldades econômicas, escassez e falta de perspectivas. Anos depois foi a vez de Zelda Fitzgerald, mulher de Francis Scott Fitzgerald, ser internada. A mulher de Horacio Quiroga agonizou oito dias até morrer, depois de ter ingerido veneno em 1915.

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Georges Didi-Huberman publicou, na década de 80, um livro que tenho muita vontade de ler: Invention de l'hysterie, sobre Charcot, o hospital de la Salpêtrière e a iconografia, raríssima e acumulada ao longo de anos, que retrata a histeria. Trata-se das possibilidades de ouvir das imagens outra história. A histeria como uma teatralização delirante do corpo, a imagem como reforço de uma loucura encenada, fabricada. O histérico sente-se constantemente observado, dobra o corpo como performance. O médico, a partir da hipnose, re-dobra o corpo segundo a sua vontade: teatro do teatro, performance do performático, espelho diante do espelho. Charcot inventa uma máquina do olhar, uma audiência (Freud está lá).

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Charcot examinou os olhos, os pulmões e os corações das mais de 4 mil mulheres que encontrou no hospital, tirou a temperatura vaginal e retal, testou reflexos, sensibilidade à dor, realizou hipnose, banhos, recolhimento e análise de todas as secreções, dispondo tudo isso diante dos fotógrafos que arregimentou.

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A torção dos corpos, durante os acessos, era variada e expressiva: ira, deboche, preguiça, desejo, religiosidade, paixão, carinho - as mulheres levantavam os braços aos céus, botavam as línguas para fora, movimentavam os quadris de forma repetitiva, abraçavam o próprio corpo, serpenteavam os corpos sem dar nenhum sinal de cansaço. Mais do que solucionar, Charcot queria reproduzir, apropriar-se da loucura.

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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Camadas


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Há sempre uma história por trás da história. Um exemplo entre tantos outros possíveis: o sujeito desavisado lê as duas partes de Don Quixote (quantas pessoas ao redor do globo estão lendo Don Quixote neste exato momento? 4 mil, 60 mil? Em quantas línguas? 8, 9, 30?) sem saber do plágio que motivou a segunda metade, nascida 10 anos depois da primeira (em 1615). Imagine só o despeito e a indignação de nosso gênio maneta! (viu?, outra história por trás da história...).

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No prefácio de Nostromo (preste atenção: um livro sobre a América Latina), Joseph Conrad conta que, depois de escrever o último conto de Tufão, se deu conta de que não havia nada mais a dizer (por pouco um bartleby – aliás, essa história poderia estar em Bartleby & companhia – aliás, na melhor parte de Desde la ciudad nerviosa, livro que reúne alguns artigos esparsos de Vila-Matas, o autor revela que já podia ter escrito um segundo volume de Bartleby, dada a quantidade de casos de artistas do Não que os amigos e conhecidos enviam regularmente a ele), ou seja, que tudo já estava esgotado. E não é que Conrad, ao passar por uma loja de livros usados (sempre os sebos!), descobre um volume, o relato autobiográfico de um marujo americano (auxiliado, na escrita, por um jornalista), que conta, ao longo de três sucintas páginas no meio de tudo, uma história que ele, Conrad, havia ouvido quase trinta anos antes, quando trabalhava no México. O marujo havia trabalhado com um falastrão que dizia ter roubado, sozinho, uma barcaça cheia de prata – e Conrad reconheceu a história e o personagem, décadas depois. O ladrão de prata, cuja proeza nunca ficou provada, já que ele alardeava o fato, mas mantinha os negócios modestos como estavam, virou Nostromo.

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Tudo isso para chegar nessa imagem que me deixou em suspensão, por vários motivos: 1) Stanley Kubrick aparecendo; 2) Aparecendo em uma imagem, pelo menos para mim, completamente inédita; 3) Kubrick em silêncio, diante de Malcolm McDowell, o protagonista de Laranja Mecânica, que gesticula, exaltado; 4) Ou seja, o diretor calado enquanto o protagonista (ainda com o chapéu do personagem, mas com um casaco “real”, se é que você me entende) parece empolgado com a cena que acabou de ser realizada ou com a cena que será em breve realizada; 4) Como se McDowell dissesse, depois da cena em que o grupo percorre as margens de um canal (há, ao fundo nessas cenas, um caminho de lâmpadas que é muito semelhante ao local em que Kubrick está escorado), cena na qual ele empunha um taco, como se dissesse “Aí eu bati assim e assim, empurrando o corpo para longe de mim, incrível!”, e Kubrick, com sua cara de alheamento e enfado, soprando displicentemente seu café, “Eu sei, eu sei, eu que bolei essa cena, rapaz”; 5) O ator olha fixo para o diretor, como se envolvido em um intenso exercício de convencimento, de explanação criteriosa de um ponto de vista, de teatralização, enfim, ator do ator, pensando naquilo que poderia ser a cena, eternamente cristalizada nessa potência interminável. Kubrick divaga, ou pondera as alternativas; 6) Estão vestindo casacos iguais, como um uniforme, como um time, como um espelho, como dois boxeadores antes de entrar no ringue, como membros de uma expedição secreta, até então desconhecida; 7) A imagem nunca se fecha, porque há sempre uma história por trás da história. Eu gosto disso.
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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Bolaño

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Melancolia


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Um amigo me procura para comentar a melancolia que experimentou ao ler, de cabo a rabo, o blog de um jornalista de São Paulo – suas idas ao teatro, as estréias que acompanha nos cinemas, os muitos livros recém-lançados que o sujeito recebe sem levantar da cadeira. Eu também tenho problemas com pessoas que recebem livros sem sair da cadeira, eu disse a ele. São momentos que nos fazem questionar a razão de continuar realizando determinadas coisas. Foi o que eu também disse a ele, aproveitando o embalo: lendo How Fiction Works é impossível não pensar na quantidade de elementos que podem dar errado na construção de um livro, e de como é fútil e vazia a intenção de ainda escrever, diante disso, questão que fica evidente se acompanharmos a quantidade de frentes que o jornalista de São Paulo parece impelido a suprir. Indiquei ao amigo a última resenha da Copa de Literatura brasileira, que arrebenta Dias de Faulkner – excelente exemplo, se seguirmos a argumentação da resenha, de um livro que não precisaria ter existido, pelo menos não agora, que poderia ter sido mais bem gestado, melhor cultivado, e não simplesmente jogado no mercado (porque é disso que se trata: mercado). É evidente que falta leitura, como aponta o próprio James Wood: a literatura faz de nós melhores observadores da vida, se nós praticarmos enquanto vivemos; isso, em contrapartida, nos faz melhores leitores dos detalhes na literatura, o que, como reflexo, nos faz melhores leitores da literatura. E assim por diante. A maioria dos jovens leitores são observadores medíocres. Vejo pelos meus próprios livros antigos, anotados vinte anos atrás, quando eu era estudante. Assinalei cuidadosamente, salientando minha aprovação, detalhes, imagens e metáforas que hoje me parecem o mais raso senso-comum, enquanto deixava de lado coisas que hoje me parecem maravilhosas. Nós crescemos como leitores, e jovens de vinte e poucos anos parecem relativamente virgens. Por não terem lido o suficiente, não aprenderam com a própria ficção como lê-la. Lembro de uma passagem hilária de Pnin, do Nabokov (texto, aliás, que Wood cita algumas vezes), em que o professor do título fica também melancólico ao encontrar, em um livro da biblioteca, uma anotação à margem que diz: “ironia”, e outra, mais adiante, que diz: “descrição da natureza” – Pnin fica quase constrangido, mas o narrador (que Wood diz que pode ser identificado com Nabokov, blábláblá, óbvio que é Nabokov! (Nabokov estava no bosque, caçando borboletas ao lado de outro louco; este segundo diz: “Eu sou Jesus”, e Nabokov responde: “Não creio”, o segundo louco retruca: “Foi Deus quem me disse!”, e Nabokov encerra a discussão: “Nunca disse tal coisa, seu asno”)) espezinha a ignorância e superficialidade do estudante anônimo, cristalizado para sempre naquele comentário estúpido à margem de um livro qualquer. Faltam leitores, é evidente, foi o que eu disse ao meu amigo. Falta leitura detida, pausada, reiterada. Sejamos leitores, portanto. Tiago A., responsável pela resenha da Copa que eu mencionei, em determinada passagem de seu blog, nos mostra como encontrou em David Foster Wallace a repetição de uma metáfora, o sol que se põe como um ioiô, em um romance e no final de um conto. Leitura psicótica, de varar madrugada, rabiscando por cima dos rabiscos que já estavam lá desde a primeira leitura, garimpando a porra toda, como se fosse o primeiro leitor a chegar lá (e digo isso de propósito, foi o que eu disse a meu amigo, porque todo leitor é efetivamente o primeiro a chegar). Ou seja, Tiago A. revira Foster Wallace de pernas pro ar e pega o sujeito pelas bolas, ali na duplicação do estilo, naquilo que o Wood chama de self-plagiarism (p. 52). Sensacional. Leitura, na sua mais simples e potente resolução. Qualquer dia desses vou fazer a mesma coisa com aquela palavrinha safada que percorre todo o’S Detetives Selvagens: simonel. É claro que eu adoraria receber os últimos lançamentos literários em casa, com uma sacola ecológica da Companhia das Letras de brinde, eu disse a meu amigo (ainda melancólico, mas já não tão cabisbaixo), mas como carregar de afetos e biografemas, como está carregado aquele envelope grosso que recebo de meu Tio Toni lá da Bahia, esse pacote inerte? Cada post jornalístico é um retorno do mesmo-enfadonho, enchendo a tela com aquilo que já vimos na vitrine e que continuaremos vendo nas resenhas e ainda veremos novamente, até a próxima novidade, em uma cronologia fixa como uma linha de montagem. Talvez meus critérios sejam outros, pensa meu amigo, em voz alta. Como diz Zygmunt Bauman: depois de viver o fetichismo da mercadoria, lá no início do capitalismo, entramos no fetichismo da subjetividade – que brota, assim, como se fosse um clique de mouse. E talvez seja também um pouco por isso que tantas gavetas, ao invés de permanecer fechadas, estão sendo tão veementemente abertas, eu disse a meu amigo, já um pouco atordoado pelo rumo que a conversa tomava. James Wood, por seus próprios caminhos, também alcança o fetiche da subjetividade quando propõe a linha: Rei Davi, MacBeth e Raskolnikov, ou seja, o primeiro só existe para Deus, o segundo só existe para a audiência (solilóquios) e o terceiro só existe para si. Na era da informação, já disse alguém, a invisibilidade é quase a morte. De modo que o sujeito do blog, o primeiro (e essas já foram as conclusões do meu amigo), está engessado pela pauta, pelo cronograma jornalístico, pelos lançamentos editoriais, pela demanda do mercado, pelo agenda-setting e pela espiral de silêncio, e talvez aí esteja um pouco da diferença entre a aproximação jornalística da literatura e a aproximação, digamos, acadêmica – e que eu resumiria, ainda que isso não tenha me ocorrido durante a conversa, como uma consciência do arquivo, ou ainda, uma problematização do arquivo, do que está disponível e das razões para esta disponibilidade. Arquivo como origem vazia, lacuna auto-reflexiva, vertigem da temporalidade atravessada de anacronismos que fabricam, por sua vez, a história.

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