sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Ciências Morais, Martin Kohan

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A cena mais forte é, sem dúvida, a do estupro sofrido pela protagonista María Teresa dentro do banheiro masculino, no Colégio Nacional, em Buenos Aires. Impressiona porque é abrupto, e quebra o ritmo lento da narrativa até aquele ponto. Ciências morais é um livro lento, que constrói a história aos poucos, emulando a rotina enfadonha da inspetora María Teresa. O curioso e irônico da história é que o inspetor-chefe, responsável pelo estupro, o realiza com o dedo médio, e não com o instrumento que imaginaríamos para a cena. Em passagem anterior, quando o inspetor-chefe leva María Teresa para tomar um café nas proximidades do colégio, ela faz menção ao valoroso trabalho que ele teria realizado pela pátria, anos antes - Ciências morais se passa em 1982, e acompanha as últimas palavras da Guerra das Malvinas. Ou seja, o inspetor-chefe do Colégio Nacional foi torturador durante a ditadura - apenas não fica claro se a impotência é decorrência dessa atividade (como um fantasma psicossomático que Kohan fotografa em ação) ou se já estava lá antes, como um pré-requisito (como uma calúnia coletiva empregada por Kohan).
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É um livro sobre a ditadura, mas um livro sobre a ditadura completamente diferente de A história do pranto, de Alan Pauls, por exemplo, no qual a narrativa é oscilante e internalizada - acompanhamos os fatos históricos mais pelas gravuras e revistinhas do menino que era o narrador do que pelos regulamentos da biopolítica educacional portenha, mostrados por Kohan. É uma ditadura da distância, enquanto a ditadura de Roberto Bolaño, por exemplo, é uma ditadura do contato. O contato, quando acontece em Kohan, é desproporcional, hediondo, absurdo. O dedo médio guia a história do contato reprimido em Ciências morais: o livro começa com a inspetora María Teresa observando o dedo médio da mão de um menino que se demora demais no ombro da menina à sua frente - os estudantes estão em formação, e é preciso assegurar a distância a partir de um contato que é regulamentado. Páginas e páginas se vão com essa fantasia da inspetora: estariam os meninos se aproximando demais das meninas? Por fim, o inspetor-chefe (autoridade máxima sobre o regulamento da distância) utiliza seu dedo em María Teresa, entorpecendo toda fantasia sobre o contato.
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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O grau de parentesco como crítica literária

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Todos sabem que Richard Melville Hall (1965), também conhecido como o cantor Moby, é descendente do famoso escritor norte-americano Herman Melville, autor do clássico Moby Dick, e que daí decorre o nome do artista. Todos sabem que André Sant'Anna é filho de Sérgio Sant'Anna e que Luis Fernando Verissimo é filho de Erico Verissimo. Contudo, há muito mais do que supõe nossa vã filosofia. Abaixo, algumas verdades não muito conhecidas do universo das filiações:


1) Taylor Swift (1989): a cantora norte-americana de apenas 20 anos, que desbancou Beyonce no VMA deste ano, é a filha mais nova de Scott Swift, empresário estabelecido na Pensilvânia, que por sua vez é irmão caçula de Graham Swift (1949), escritor britânico vencedor do Booker Prize de 1996. Consta, inclusive, que Taylor Swift teria escrito, ao longo de um verão, um romance de 350 páginas, ainda não publicado.


2) Penélope Cruz (1974): a atriz vencedora do Oscar é descendente de Julio Casares Sánchez (1877-1964), famoso filólogo, diplomata e crítico literário espanhol, autor de dicionários e de dois volumes de ensaios, Crítica profana e Crítica efímera, publicados na época em que Miguel de Unamuno lançava Abel Sánchez. Una história de pasión, cujo protagonista é livremente baseado na figura de Julio. Encarnación Sánchez (1940-1996), mãe de Penélope Cruz, é neta de Julio Casares Sánchez.


3) Kate Beckinsale (1973): todos sabem que Kate venceu, por duas vezes, o prêmio W.H. Smith para jovens escritores - uma vez com contos, a segunda com poemas. Mas poucos sabem que a estrela de Van Helsing, Pearl Harbor e O aviador cresceu brincando com seu primo mais velho, Blake Bailey, filho mais velho da irmã de Judy Loe Bailey, mãe de Kate. Blake, o primo de Kate, é responsável pela mais recente biografia de John Cheever, além de já ter publicado uma biografia de Richard Yates, autor de Revolutionary Road, recentemente transformado em filme por Sam Mendes.

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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Animais III

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1) A biopolítica é antiga, já tem uns duzentos anos. Nasceu quando a disciplina dos corpos transformou-se em controle da vida e produção de subjetividades. A biopolítica não trabalha com a contenção e sim com a determinação de um percurso.
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2) Nas ações biopolíticas contemporâneas, existiriam vidas mais produtivas, que desfrutariam dos avanços da ciência, e vidas consideradas de menor valor, que serviriam de cobaias para experimentos científicos? É só pensar nos testes farmacêuticos mostrados em O jardineiro fiel.
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3) Os corpos estão expostos, excluídos do estado de direito, para usar os termos de Agamben. A geopolítica, ramo da biopolítica, determina zonas de indeterminação nas quais a liberdade é relativizada. Uma coisa é dizer, outra coisa é fazer: é só pensar no abismo entre Russell Crowe e Leonardo DiCaprio em Rede de mentiras, de Ridley Scott.
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4) Zoé: vida pura, biológica. Bios: vida cultivada, comunidade. Homo sacer: aquele que é separado pelo soberano, cuja morte não é homicídio e que não pode fazer parte dos rituais de sacrifício – está na lei como um exilado. O homo sacer existe biologicamente mas não politicamente, ainda que a manipulação de seu corpo fortaleça a potência política do soberano. O homo sacer é vida nua porque está à mercê da soberania biopolítica. É o marido de Reese Whiterspoon em O suspeito, de Gavin Hood, capturado no aeroporto e enviado para uma sala de tortura no Oriente Médio.
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5) Se o estado de exceção é a regra, como quer Benjamin, como quer Agamben, toda vida é nua e está disponível para edição e cerceamento. Paradoxalmente, a vida menos nua talvez seja daquele sujeito que vive no interior do Pará, sem luz elétrica.
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6) Agamben afirma que “o ingresso da zoé na esfera da polis, a politização da vida nua como tal, constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico” (p. 12).
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7) E diz mais: “o corpo do homo sacer e a vida nua constituem a força e, ao mesmo tempo, a íntima contradição da democracia moderna: ela não faz abolir a vida sacra, mas a despedaça e dissemina em cada corpo individual, fazendo dela a aposta em jogo do conflito político. (p.130). Os agentes de 20 milhões de dólares do projeto Treadstone, em A identidade Bourne, que sofriam de dores de cabeça e uma série de problemas físicos e mentais, decorrentes das intervenções realizadas artificialmente, são bom exemplo. Seu corpo é a aposta da soberania no jogo do conflito político, e sua morte é apenas uma baixa.
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8) O poder soberano clássico fazia morrer. A biopolítica moderna fazia viver. O estado de exceção contemporâneo faz sobreviver. Trata-se de um mecanismo de manutenção controlada das vidas – deixar a vida exposta ao puro exercício da técnica.
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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Animais II

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Alguns desdobramentos possíveis dentro da articulação do homem com sua animalidade, sem pretensão de resposta, até porque as hipóteses, como se verá, são por vezes contraditórias.

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1) O Holocausto: humanos subjugados por um Estado totalitário (o nacional-socialismo como uma máquina antropológica muito específica em sua política racial e biológica (o alemão é a terra e o sangue)), exterminados em matadouros - e a analogia talvez não seria com gado, como queria Paul Singer e Elizabeth Costello, mas com uma infestação de insetos: baratas, cupins, formigas. Está no termo usado por Hitler - Ungeziefer - que Ricardo Piglia observa, em Respiração artificial, ser o mesmo utilizado por Kafka para denominar o inseto no qual Gregor Samsa havia se transformado.

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2) A categoria do inumano e toda a discussão sobre as próteses teletecnológicas, implantes cibernéticos e enxertos robóticos sobre o corpo, grande parte com fins terapêuticos ou de manutenção do corpo - ou seja, biopolítica, intervenção e controle sobre os corpos. Ou ainda: expandir a produtividade do corpo, gerenciar sua potencialidade com maior eficácia. A biopolítica se apropria, portanto, da indistinção de limites entre humano e inumano - indistinção que não foi devidamente absorvida na animalidade.

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3) O Juízo Final: quando o homem, no paraíso, senta ao lado do leão e do cordeiro, suplanta a morte e abraça uma ignorância completa e eterna - Agamben inicia seu livro com uma imagem encontrada em uma Bíblia hebraica do século XIII, que mostra os justos salvos em um banquete, todos portando magníficas cabeças animais. O fim da história leva a uma reconciliação do homem com sua animalidade, diz Agamben.

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4) Há o sacrifício do filho Isaque pelo Pai Abraão - filho que é imediatamente substituído pelo cordeiro assim que o teatro se realiza, no momento mesmo que se finaliza. Há a transfiguração de Cristo no alto do monte das Oliveiras, cuja luz cegou os apóstolos - é possível que Cristo tenha ali adquirido feições animais? Cristo é o Cordeiro de Deus, aquele que se oferece como sacrifício, que derrama o próprio sangue etc., para que o povo nunca mais precise fazer sacrifícios materiais, ou seja, efetivamente cortar a garganta de animais (o bode expiatório, que era abandonado no deserto levando os pecados dos israelitas). O fim da história leva a uma reconciliação do homem com sua animalidade, diz Jesus Cristo.

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5) Alcança-se a animalidade no extremo da passividade (o prisioneiro que se submete como uma ovelha que vai ao sacrifício) e no extremo da atividade (o soldado que se empapa no sangue durante as execuções, como uma besta). Um homem de 220 quilos pastando McDonald's e Burger King em frente à TV, uma "tia" de creche que queima o tornozelo de uma criança com a ponta de um cigarro aceso.

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6) A atividade política da contemporaneidade, segundo Agamben, é a profanação. Recolocar em uso aquilo que foi separado, coberto de infâmia, retirado da ordem comum dos homens. O bode expiatório, por exemplo, está separado - não pode ser morto, não pode ser reintegrado. Havia uma cidade dos condenados, no reino de Israel, para onde os transgressores podiam fugir da vingança dos familiares de suas vítimas. Zona de indeterminação e suspensão de direitos - o homem sem natureza específica, arrojado na franja de um hiato, como a França nos dias posteriores à capitulação da Alemanha, a única brecha para a formação de um Estado com outra face (como apresenta Coetzee no Diário de um ano ruim), como Guantánamo.

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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Animais

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Uma das coisas mais engraçadas que vi recentemente foi no ônibus, um daqueles equipados com televisores. Passaram, entre o horóscopo (capricórnio, vida amorosa) e a previsão do tempo (vento sudoeste), algumas cenas envolvendo animais. Eram videocassetadas, para ser mais exato. A primeira mostrava um avestruz tentando alcançar alguma coisa com a boca. Pisava em falso, porque estava distraído, e caía no pequeno lago dentro de seu viveiro. O segundo vídeo mostrava um urso polar, mergulhando e voltando à tona com um prato equilibrado na cabeça. O terceiro e último vídeo mostrava o interior de um estábulo, e de uma das baias saía a cabeça de um cavalo, que parecia estar brincando de fort, da: indo e voltando, como num relógio-cuco.

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Ri bastante. O sujeito ao meu lado também riu. Desenvolveu-se uma cumplicidade intensa, mas que durou segundos. Não esqueci o cavalo, nem o avestruz. Principalmente porque estava lendo, já terminei mas continuo lendo, Lo abierto: el hombre y el animal, de Giorgio Agamben. Cheguei até este livro, ainda que já conhecesse Agamben por outras vias, por conta de uma declaração do Silviano Santiago, em entrevista à revista Outra travessia. Ele dizia que era o livro mais interessante que tinha lido nos últimos tempos. Lo abierto trata, grosso modo, sobre a animalidade no homem e a divisão criada pela filosofia entre um e outro. O contexto biopolítico e pós-histórico leva a um questionamento ético acerca da arbitrariedade dessa cisão - trata-se, por fim, de uma reconciliação por parte do pensamento com sua potência inoperante, com a possibilidade de não tomar para si projetos, obras e missões históricas. Fazer a máquina antropológica girar no vazio, como diz Agamben. Abarcar o impossível.

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O avestruz não quis ser engraçado. O cavalo não estava interpretando. Muito provavelmente estava espantando moscas. Ainda não entendo muito bem por qual razão eu achei tão engraçado. Tem a ver com a ingenuidade, com a gratuidade do ato, mas é também uma intervenção sobre o desconhecido absoluto - sem mais nem menos, dentro de um ônibus, eu contemplei o vazio de um aberto que leva a uma clausura, ou seja, o outro radical no animal. Fazer daquilo uma videocassetada é uma tentativa desesperada de se apropriar do impossível. O animal não conhece nada, está além de qualquer aberto ou de qualquer clausura. O homem gerencia o corpo através da técnica.
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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pirandello e a medalha

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Descobri que Luigi Pirandello deu sua medalha do Prêmio Nobel para o esforço fascista de guerra, promovido pelo Mussolini. Pirandello, gênio da meta-ficção, proto-pós-moderno, autor de monumentos como Seis personagens à procura de autor, Um, nenhum, cem mil e o maior de todos, Henrique IV, herói das máscaras e dos questionamentos à subjetividade, pouco tempo depois de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1934, doou sua medalha de ouro para o fascismo. Imagine: a medalha do Nobel de Pirandello pode ter virado um morteiro, ou um pente de balas, quem sabe tenha até matado um pracinha em Monte Castelo, ou executado algum cigano, judeu ou quem sabe uma mulher grávida.

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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

El tilo

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Minha ideia era ler El tilo, de César Aira, no Google Books. Quando encontrei, fiquei feliz. Sabia, claro, que algumas partes não estariam disponíveis, mas sabia, também, que, como afirma o próprio Aira, sua narrativa é contínua e feita de lampejos heterogêneos, que ele tenta, na labuta diária, costurar. Encarei como uma tarefa de "leitor macho", como dizia Cortázar antes do feminismo. Ou seja, completar as lacunas, as lacunas forçosamente impostas pelo novo suporte, um suporte que estimula e censura ao mesmo tempo, um paradoxo que é guiado pela lógica do mercado. Só poderia ver o suficiente para depois ir comprar o livro.

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Os cortes do Google começaram na página 12, depois na 20, logo em seguida na 27 e o último na 34. O livro some na 42. Até aí muito de biográfico: um menino que cresce em Pringles na década de 50, um pai eletricista e uma árvore no meio do povoado, justamente el tilo, que é a árvore da tília. Não sei, só li até a página 42, como já disse, mas imagino que Aira faça referência ao chá de tília que Marcel toma na Recherche, esse livro tão exigente que Aira lê aos quinze anos e lhe faz descobrir que a vida simplesmente não tem clímax, que se trata de uma sucessão de acontecimentos sem desenlace. Curioso, porque as 42 páginas iniciais de El tilo são sobre a infância - enquanto Marcel utiliza chá e biscoitos para acessar a memória, César utiliza a matéria bruta, a árvore que gera o chá, como "desinibidor" da memória. A literatura de Aira é cheia desses "desinibidores", como um carrapato cego que se lança sobre o animal de sangue quente, quando fareja sua aproximação - a literatura de Aira salta de suporte em suporte atrás de sangue quente, temas, histórias. Aliás, El congreso de literatura é justamente sobre um cientista (Aira) que cria uma mosca que tem como missão capturar o código genético de Carlos Fuentes em um congresso de literatura, mas que acaba pousando em sua gravata.
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Há o sujeito que escreve sobre como falar dos livros que não lemos. Mas como falar dos livros que só lemos até a página 42? Minha leitura emula a própria construção da novelita de Aira, e em certa medida é a leitura mais fiel que se pode obter, diante das circunstâncias: os cortes na memória do protagonista são erráticos, as lacunas são desconfortáveis e a história parece não ir a lugar algum. E lendo El tilo, lembrei de outra árvore, essa das minhas leituras de adolescência, ou seja, Aira pode ter lido Proust, mas eu li Erico Verissimo. Em O tempo e o vento há uma árvore no centro da praça central de Santa Fé, ali onde aparece o negro enforcado, que voltará para assombrar Bolívar, e também onde aparece outro enforcado, lá no fim do romance, Arão Stein, o judeu comunista, que assombrará Floriano Cambará, que está escrevendo o livro. As 42 páginas de El tilo bastaram para iluminar retrospectivamente as 2.000 páginas de O tempo e o vento. "A modernidade entrava em mim como uma torrente selvagem e eu mesclava tudo", escreve Aira na página 36.
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Curioso isso do personagem que lemos estar escrevendo o livro que lemos, como acontece com Floriano Cambará, o que permite ao Erico Verissimo transformar o primeiro parágrafo também em último, quando Floriano decide finalmente sentar à máquina e começar seu livro. Aira, nas 42 páginas de El tilo às quais tive acesso, faz o mesmo. O narrador está escrevendo na máquina de um vizinho qualquer: "Se inclinó sobre mi hombro a mirar, vio mi coma, y observó otra cosa: - Ojo! Antes de la y griega no se pone coma, nunca. No era lo que yo había preguntado, aunque la advertencia era pertinente porque había puesto la coma antes de una "y".", página 39. Está ali, viram?: "...vio mi coma, y observó..." - justamente o 'y' depois de uma vírgula, como foi advertido lá na infância, e como continua fazendo, unindo as duas pontas da vida, talvez, como se El tilo já estivesse escrito, desde antes.
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A página 42 começa com "novelita de homenaje justamente sobre la coma." - trata-se do fim de uma das partes cortadas, o que me deixou à deriva, imaginando uma novelita, escrita sobre Aira, que trata justamente da vírgula. Desconheço, até hoje.
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terça-feira, 24 de novembro de 2009

Parmênides


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- Escreve Octavio Paz, no livro El arco y la lira: "Desde Parmênides nosso mundo tem sido o da distinção clara entre o que é e o que não é. O ser não é o não-ser."

- Essa demarcação é uma possível chave de leitura para o livro de César Aira, Parménides.

- O livro de Aira, da mesma forma que Bartleby & companhia, de Vila-Matas, é uma reflexão sobre a potência do Não e da negatividade na escritura, ou ainda, seu duplo, o silêncio.

- Já dizia Kafka: pior que o canto da sereia é seu silêncio.

- A ficção torna-se um relatório da impossibilidade de dizer. O narrador de Aira, um escritor profissional contratado por Parmenides, nos conta como essa relação com o filósofo alongou-se por anos sem gerar qualquer obra material.

- Beckett: o único que pode não fazer é o artista, ao contrário do louco ou da criança.

- O Parmênides de Paz é diferente do Parmênides de Aira, creio eu. Afinal de contas, Paz é aquele guardião bem fornido do saber que o real-visceralista persegue em um parque público, enquanto o professor faz seu exercício matinal, andando em círculos (isso está nos Detetives selvagens).

- Em que ponto o surrealismo reivindicado por Paz começou a dar em nada? Onde exatamente a an-arquia (sem arquivo, fora do arquivo, da instituição, da lei) foi assimilada?

- Que anacronismo bonito faz Aira em Parménides: o local inusitado, no tempo e no espaço, é como um fiapo de carne entre os dentes depois de um almoço farto, principalmente por conta dos diálogos e das questões que ele levanta, tão contemporâneos.

- Mas é isso, no fim das contas: sobreposição de temporalidades, com-tempos, gerar faísca criativa com o contato bizarro das togas gregas com a negatividade pós-estruturalista.

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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Mulheres/Loucura

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Dediquei certo tempo, por conta de algo que escrevi, às relações da loucura com a literatura - ou ainda, da contingência com a expressão. E mais: a modificação que sofre a arte por conta da loucura ou da contingência, seja qual for. Exemplo: os microgramas que Walser inventa no manicômio.

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Nos últimos dias encontrei muitas referências à loucura das companheiras de escritores, que terminei por agregar ao material que já tinha. A mulher de Pirandello, por exemplo, que, a exemplo da mulher de Joyce, Nora Barnacle, nunca encostou em nada escrito pelo marido, tinha acessos de depressão, de desespero e de raiva, alucinações e visões, principalmente depois que um dos filhos do casal alistou-se para lutar na I Guerra. Em 1919, foi internada num sanatório. Em 1921, era a vez da primeira esposa de T.S. Eliot ser internada, num período em que Eliot enfrentava dificuldades econômicas, escassez e falta de perspectivas. Anos depois foi a vez de Zelda Fitzgerald, mulher de Francis Scott Fitzgerald, ser internada. A mulher de Horacio Quiroga agonizou oito dias até morrer, depois de ter ingerido veneno em 1915.

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Georges Didi-Huberman publicou, na década de 80, um livro que tenho muita vontade de ler: Invention de l'hysterie, sobre Charcot, o hospital de la Salpêtrière e a iconografia, raríssima e acumulada ao longo de anos, que retrata a histeria. Trata-se das possibilidades de ouvir das imagens outra história. A histeria como uma teatralização delirante do corpo, a imagem como reforço de uma loucura encenada, fabricada. O histérico sente-se constantemente observado, dobra o corpo como performance. O médico, a partir da hipnose, re-dobra o corpo segundo a sua vontade: teatro do teatro, performance do performático, espelho diante do espelho. Charcot inventa uma máquina do olhar, uma audiência (Freud está lá).

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Charcot examinou os olhos, os pulmões e os corações das mais de 4 mil mulheres que encontrou no hospital, tirou a temperatura vaginal e retal, testou reflexos, sensibilidade à dor, realizou hipnose, banhos, recolhimento e análise de todas as secreções, dispondo tudo isso diante dos fotógrafos que arregimentou.

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A torção dos corpos, durante os acessos, era variada e expressiva: ira, deboche, preguiça, desejo, religiosidade, paixão, carinho - as mulheres levantavam os braços aos céus, botavam as línguas para fora, movimentavam os quadris de forma repetitiva, abraçavam o próprio corpo, serpenteavam os corpos sem dar nenhum sinal de cansaço. Mais do que solucionar, Charcot queria reproduzir, apropriar-se da loucura.

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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Camadas


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Há sempre uma história por trás da história. Um exemplo entre tantos outros possíveis: o sujeito desavisado lê as duas partes de Don Quixote (quantas pessoas ao redor do globo estão lendo Don Quixote neste exato momento? 4 mil, 60 mil? Em quantas línguas? 8, 9, 30?) sem saber do plágio que motivou a segunda metade, nascida 10 anos depois da primeira (em 1615). Imagine só o despeito e a indignação de nosso gênio maneta! (viu?, outra história por trás da história...).

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No prefácio de Nostromo (preste atenção: um livro sobre a América Latina), Joseph Conrad conta que, depois de escrever o último conto de Tufão, se deu conta de que não havia nada mais a dizer (por pouco um bartleby – aliás, essa história poderia estar em Bartleby & companhia – aliás, na melhor parte de Desde la ciudad nerviosa, livro que reúne alguns artigos esparsos de Vila-Matas, o autor revela que já podia ter escrito um segundo volume de Bartleby, dada a quantidade de casos de artistas do Não que os amigos e conhecidos enviam regularmente a ele), ou seja, que tudo já estava esgotado. E não é que Conrad, ao passar por uma loja de livros usados (sempre os sebos!), descobre um volume, o relato autobiográfico de um marujo americano (auxiliado, na escrita, por um jornalista), que conta, ao longo de três sucintas páginas no meio de tudo, uma história que ele, Conrad, havia ouvido quase trinta anos antes, quando trabalhava no México. O marujo havia trabalhado com um falastrão que dizia ter roubado, sozinho, uma barcaça cheia de prata – e Conrad reconheceu a história e o personagem, décadas depois. O ladrão de prata, cuja proeza nunca ficou provada, já que ele alardeava o fato, mas mantinha os negócios modestos como estavam, virou Nostromo.

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Tudo isso para chegar nessa imagem que me deixou em suspensão, por vários motivos: 1) Stanley Kubrick aparecendo; 2) Aparecendo em uma imagem, pelo menos para mim, completamente inédita; 3) Kubrick em silêncio, diante de Malcolm McDowell, o protagonista de Laranja Mecânica, que gesticula, exaltado; 4) Ou seja, o diretor calado enquanto o protagonista (ainda com o chapéu do personagem, mas com um casaco “real”, se é que você me entende) parece empolgado com a cena que acabou de ser realizada ou com a cena que será em breve realizada; 4) Como se McDowell dissesse, depois da cena em que o grupo percorre as margens de um canal (há, ao fundo nessas cenas, um caminho de lâmpadas que é muito semelhante ao local em que Kubrick está escorado), cena na qual ele empunha um taco, como se dissesse “Aí eu bati assim e assim, empurrando o corpo para longe de mim, incrível!”, e Kubrick, com sua cara de alheamento e enfado, soprando displicentemente seu café, “Eu sei, eu sei, eu que bolei essa cena, rapaz”; 5) O ator olha fixo para o diretor, como se envolvido em um intenso exercício de convencimento, de explanação criteriosa de um ponto de vista, de teatralização, enfim, ator do ator, pensando naquilo que poderia ser a cena, eternamente cristalizada nessa potência interminável. Kubrick divaga, ou pondera as alternativas; 6) Estão vestindo casacos iguais, como um uniforme, como um time, como um espelho, como dois boxeadores antes de entrar no ringue, como membros de uma expedição secreta, até então desconhecida; 7) A imagem nunca se fecha, porque há sempre uma história por trás da história. Eu gosto disso.
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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Bolaño

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Melancolia


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Um amigo me procura para comentar a melancolia que experimentou ao ler, de cabo a rabo, o blog de um jornalista de São Paulo – suas idas ao teatro, as estréias que acompanha nos cinemas, os muitos livros recém-lançados que o sujeito recebe sem levantar da cadeira. Eu também tenho problemas com pessoas que recebem livros sem sair da cadeira, eu disse a ele. São momentos que nos fazem questionar a razão de continuar realizando determinadas coisas. Foi o que eu também disse a ele, aproveitando o embalo: lendo How Fiction Works é impossível não pensar na quantidade de elementos que podem dar errado na construção de um livro, e de como é fútil e vazia a intenção de ainda escrever, diante disso, questão que fica evidente se acompanharmos a quantidade de frentes que o jornalista de São Paulo parece impelido a suprir. Indiquei ao amigo a última resenha da Copa de Literatura brasileira, que arrebenta Dias de Faulkner – excelente exemplo, se seguirmos a argumentação da resenha, de um livro que não precisaria ter existido, pelo menos não agora, que poderia ter sido mais bem gestado, melhor cultivado, e não simplesmente jogado no mercado (porque é disso que se trata: mercado). É evidente que falta leitura, como aponta o próprio James Wood: a literatura faz de nós melhores observadores da vida, se nós praticarmos enquanto vivemos; isso, em contrapartida, nos faz melhores leitores dos detalhes na literatura, o que, como reflexo, nos faz melhores leitores da literatura. E assim por diante. A maioria dos jovens leitores são observadores medíocres. Vejo pelos meus próprios livros antigos, anotados vinte anos atrás, quando eu era estudante. Assinalei cuidadosamente, salientando minha aprovação, detalhes, imagens e metáforas que hoje me parecem o mais raso senso-comum, enquanto deixava de lado coisas que hoje me parecem maravilhosas. Nós crescemos como leitores, e jovens de vinte e poucos anos parecem relativamente virgens. Por não terem lido o suficiente, não aprenderam com a própria ficção como lê-la. Lembro de uma passagem hilária de Pnin, do Nabokov (texto, aliás, que Wood cita algumas vezes), em que o professor do título fica também melancólico ao encontrar, em um livro da biblioteca, uma anotação à margem que diz: “ironia”, e outra, mais adiante, que diz: “descrição da natureza” – Pnin fica quase constrangido, mas o narrador (que Wood diz que pode ser identificado com Nabokov, blábláblá, óbvio que é Nabokov! (Nabokov estava no bosque, caçando borboletas ao lado de outro louco; este segundo diz: “Eu sou Jesus”, e Nabokov responde: “Não creio”, o segundo louco retruca: “Foi Deus quem me disse!”, e Nabokov encerra a discussão: “Nunca disse tal coisa, seu asno”)) espezinha a ignorância e superficialidade do estudante anônimo, cristalizado para sempre naquele comentário estúpido à margem de um livro qualquer. Faltam leitores, é evidente, foi o que eu disse ao meu amigo. Falta leitura detida, pausada, reiterada. Sejamos leitores, portanto. Tiago A., responsável pela resenha da Copa que eu mencionei, em determinada passagem de seu blog, nos mostra como encontrou em David Foster Wallace a repetição de uma metáfora, o sol que se põe como um ioiô, em um romance e no final de um conto. Leitura psicótica, de varar madrugada, rabiscando por cima dos rabiscos que já estavam lá desde a primeira leitura, garimpando a porra toda, como se fosse o primeiro leitor a chegar lá (e digo isso de propósito, foi o que eu disse a meu amigo, porque todo leitor é efetivamente o primeiro a chegar). Ou seja, Tiago A. revira Foster Wallace de pernas pro ar e pega o sujeito pelas bolas, ali na duplicação do estilo, naquilo que o Wood chama de self-plagiarism (p. 52). Sensacional. Leitura, na sua mais simples e potente resolução. Qualquer dia desses vou fazer a mesma coisa com aquela palavrinha safada que percorre todo o’S Detetives Selvagens: simonel. É claro que eu adoraria receber os últimos lançamentos literários em casa, com uma sacola ecológica da Companhia das Letras de brinde, eu disse a meu amigo (ainda melancólico, mas já não tão cabisbaixo), mas como carregar de afetos e biografemas, como está carregado aquele envelope grosso que recebo de meu Tio Toni lá da Bahia, esse pacote inerte? Cada post jornalístico é um retorno do mesmo-enfadonho, enchendo a tela com aquilo que já vimos na vitrine e que continuaremos vendo nas resenhas e ainda veremos novamente, até a próxima novidade, em uma cronologia fixa como uma linha de montagem. Talvez meus critérios sejam outros, pensa meu amigo, em voz alta. Como diz Zygmunt Bauman: depois de viver o fetichismo da mercadoria, lá no início do capitalismo, entramos no fetichismo da subjetividade – que brota, assim, como se fosse um clique de mouse. E talvez seja também um pouco por isso que tantas gavetas, ao invés de permanecer fechadas, estão sendo tão veementemente abertas, eu disse a meu amigo, já um pouco atordoado pelo rumo que a conversa tomava. James Wood, por seus próprios caminhos, também alcança o fetiche da subjetividade quando propõe a linha: Rei Davi, MacBeth e Raskolnikov, ou seja, o primeiro só existe para Deus, o segundo só existe para a audiência (solilóquios) e o terceiro só existe para si. Na era da informação, já disse alguém, a invisibilidade é quase a morte. De modo que o sujeito do blog, o primeiro (e essas já foram as conclusões do meu amigo), está engessado pela pauta, pelo cronograma jornalístico, pelos lançamentos editoriais, pela demanda do mercado, pelo agenda-setting e pela espiral de silêncio, e talvez aí esteja um pouco da diferença entre a aproximação jornalística da literatura e a aproximação, digamos, acadêmica – e que eu resumiria, ainda que isso não tenha me ocorrido durante a conversa, como uma consciência do arquivo, ou ainda, uma problematização do arquivo, do que está disponível e das razões para esta disponibilidade. Arquivo como origem vazia, lacuna auto-reflexiva, vertigem da temporalidade atravessada de anacronismos que fabricam, por sua vez, a história.

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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Filiações

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Li por aí, no blog de algum jovem pesquisador, a menção a um rol seleto de maiores amores de leitura: Agamben e Lacan. Ou seja, essa pessoa cultiva, como preferência extrema de leitura (tudo incluído, pelo que eu entendi: ficção, teoria, listas de supermercado), Agamben e Lacan. Estranhei, achei falso. Aí pensei: "Espera um pouquinho: por que não? - cada um com seu cada qual". Comecei a questionar, evidentemente, minhas próprias escolhas - voláteis, volúveis, viscosas ("Estou mudando de opinião com relação à vida", diz um sábio baiano ao agonizar, virtualmente, no leito de morte). Isso ficou na minha cabeça, nos últimos dias. Por conta da contingência imposta pela falta de tempo, tenho operado da seguinte forma: ao invés de atacar problemas distintos a cada brecha de tempo que surge, ataco o mesmo problema diversas vezes, escandindo, desta forma, a reflexão no tempo. Ou seja, bobagem. O fato é que: Agamben efetivamente possui belas páginas sobre teologia, digamos, mas o meu percurso atravessa muito mais as memórias do Jonathan Franzen ou da Karen Armstrong, ou ainda o recente Retalhos, do Craig Thompson. Outra coisa: me dei conta (isso faz tempo) que, quando visito os sebos, olho as estantes de literatura brasileira somente contando com o fato de que, às vezes, os funcionários fazem a catalogação de forma equivocada, botando, sei lá, Italo Calvino ao lado de, sei lá, Antonio Caloni.

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Essa é uma falsa polêmica, claro. Não se trata de escolher entre crítica e ficção, principalmente pelo fato de que eu escrevi uma dissertação sobre Enrique Vila-Matas - e, diante disso, estabelecer uma barreira ou uma divisória seria absurdo. Enfim, o fato é que o texto ficcional me faz mais _______, justamente por conta de certa _________ que a teoria deixa de lado. Nisso estou com James Wood - comecei hoje de manhã a ler How fiction works, que é iluminador em sua simplicidade. No prefácio explicativo, Wood faz referência a dois críticos, Victor Sklovski e Roland Barthes, que estariam por trás de sua concepção dos mecanismos da ficção, mas que logo são abandonados. Wood quer explicar ficção com ficção, e vai ao básico: imagens, como usar aspas, discurso indireto, narrador, dando exemplos de Henry James, Sebald, Ishiguro, zilhões. Às vezes o óbvio tem um fascínio inesperado.

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História sucinta para terminar e ilustrar: uma passeata de jovens, todos carregando cartazes onde vai escrito: "253" - e todos gritam, enquanto passam pelas ruas: "253!, 253!". Um velhinho pára e olha, curioso. Puxa um dos manifestantes e pergunta: "que diabo de número é isso?". O jovem responde: "Essa é uma passeata pelo amor livre. 253 é o número de posições sexuais que nossa comunidade conhece e pratica." O senhor curioso arregala os olhos, surpreso. "Veja você... eu que passei a vida toda achando que era só uma...", o jovem pergunta, também curioso: "E qual é a posição que o senhor conhece?". O velho: "Ora, meu jovem, aquela normal, a mulher deitada, o homem por cima... papai-mamãe..." - o jovem, agora ele de olhos arregalados, mal espera o homem terminar de falar e sai gritando em direção aos outros: "254!, 254!!, 254!!!"

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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O corte vertical

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Muitos anos atrás, encontrei um pequeno livro de capa preta que sobreviveu quieto e hoje volta à tona. Me chamou a atenção o autor, conhecido, e o desenho na capa: uma cobra dobrada sobre si, com uma segunda cabeça no lugar do rabo. Levei para casa e li em dois toques – minhas aulas (geralmente superficiais e insípidas) eram de manhã, o que me deixava o resto do dia livre para fazer coisas como debulhar um livro de antropologia e depois ir comer uma tigela de açaí na esquina. A quantidade de pessoas tão desocupadas quanto eu pelas ruas era assombrosa. O livro era Mito e significado, de Claude Lévi-Strauss, em uma edição já esgotada, de uma coleção célebre, das Edições 70, de Portugal.
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O livro é a compilação de algumas palestras que Lévi-Strauss transmitiu por rádio em 1977. A terceira palestra foi intitulada Lábios rachados e Gêmeos: a análise de um mito, é dela que eu melhor me lembro, que mais me ficou na cabeça. Grosso modo, informa que a ferida do lábio rachado (o lábio leporino) é o indício de uma separação que não foi completa, ou seja, nasceriam gêmeos e o processo ficou incompleto. O sujeito que carrega essa marca é perigoso, habita um entre-lugar: nem sagrado, nem profano, bem e mal, simultaneamente. Uma metamorfose perpétua, de certa forma. Além de ser anatomicamente diferente, e já por isso separado, há um parentesco assustador, para o grupo, com a divindade maior dessas tribos: a lebre.

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Há uma categoria que se anuncia e que monta essas imagens: simetria. Dentro disso, uma diferenciação que se impõe: verticalidade e horizontalidade. Se lembrarmos a crítica que Silviano Santiago faz, em “A ameaça do lobisomem”, ao Manual de zoologia fantástica de Borges, aparece bem claro a omissão para com as metamorfoses que invadem o homem – sobretudo aquelas que envolvem a cisão sobre a carne, sobretudo aquelas que não estão apaziguadas, que não foram intensamente buriladas pela tradição, pela biblioteca. O monstro mitológico é sempre cortado na horizontal: do pescoço para cima é touro, da cintura para baixo é bode, da cintura para cima é homem etc. O corte vertical marca a bestialidade produtiva, assustadora, estranha, do mesmo que se torna outro.
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Vida e época de Michael K., de J.M. Coetzee, é sobre um negro pobre, com um desvio mental que nunca fica bem claro (não sabemos se ele é esquizofrênico, autista ou se sofre de alguma espécie de retardo mental) vivendo em uma África do Sul deslocada no tempo, transportando o cadáver de sua mãe em um carrinho de mão, rumando para um lugar que nunca chega. A cena de abertura do livro é forte como poucas: a parteira retira Michael pela vagina de sua mãe e observa o lábio fendido; sem hesitar, coloca um dos dedos dentro da boca da criança e pensa, aliviada, “dos males, o menor”: a criança nasceu com o palato fechado.
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Michael K. é uma batalha contra K., o Agrimensor, o Tuberculoso, quem quer que seja, Kafka. Coetzee oscila permanentemente entre Beckett e Kafka. Quais são os livros que a amante encontra na estante de John, lá na década de 70, lá nos interstícios mais escondidos de Summertime, ali onde o autor imaginou que estaríamos distraídos, para então colocar, sub-repticiamente, algumas balizas de influência? Ela encontra, além de alguns dicionários, Kafka e Beckett, é evidente. Michael K. está marcado de infâmia, como Joseph K., e nunca chega na cidade onde sua mãe quer ser enterrada, nunca chega ao Castelo.
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Em seu último livro, Nudità, de 2009, Giorgio Agamben publica um ensaio sobre Kafka intitulado justamente K. – Roberto Calasso tem um livro sobre Kafka com o mesmo título. Agamben revisa O processo e Na colônia penal sob a ótica do Direito Romano clássico – que prescrevia como pena àqueles culpados de calúnia uma marca no rosto, uma letra K a ferro quente, K de Kalumniator. Marcado na fronte, separado, monstruoso como também o é Michael K. com seu lábio fendido.
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Essas marcas levam a uma história, silenciada, mas presente. Diante dessas imagens armam-se relatos. Para fechar o percurso, trago as manchas de tinta simétricas de Rorschach, aquelas do Teste de Rorschach – borrões cortados na vertical, imagens dobradas sobre si, que solicitam leitura e intervenção, manchas na história, como Joseph K., Michael K., carnes feridas, alteridades radicais, oscilando na vertigem, na elipse crepuscular do presente.
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terça-feira, 20 de outubro de 2009

Outro dia de poesia

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Explicação


A epifania, hoje, é
um pouco de ruído branco
misturado com um ensaio
de Gilda, Mello e Franco

Explora a vida e a matéria
como na primeira peça
de Beckett:
Eleotéria

Que quer dizer liberdade,
em grego,
sem pretender,
com isso,
desgastar a boutade

Do verbo bouter, empurrar.
No seu Lattes não tem francês:
É por isso que eu preciso
explicar

Mas não leve a mal:
no meu não tem italiano,
ainda que eu seja fã
do velho Mastroiano

Não o ator, não:
me refiro ao livreiro,
dono daquele sebo na Liberdade.
Um pardieiro.

Lugar de gente encurvada,
cinza e manchada,
mas todos conscientes
de que ler
é maçada.

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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Imaginários bélicos

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Tomemos La Literatura Nazi en América, de Roberto Bolaño. Um inventário, uma enciclopédia manca, um almanaque do absurdo. A premissa é a seguinte: proliferaram nas Américas escritores de feições estéticas nazi-fascistas. Não que tenham efetivamente matado pessoas e/ou incinerado seus corpos (ainda que alguns tenham cometido, sim, coisas semelhantes). Não: cultivam posicionamentos ideológicos nazi-fascistas, que aparecem, junto com temas rascistas e/ou eugenistas, por exemplo, em suas ficções. Um delicado arranjo entre ética e estética.
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Em 2666, há uma cena na qual os críticos literários, retratados na primeira parte do romance (que são, os quatro, especialistas em Arcimboldi, o escritor alemão que motiva as 1.200 páginas do romance), estão em um táxi, que é dirigido por um paquistanês. O motorista, em determinado momento, é ríspido ou não entende o que eles querem. O táxi pára e os críticos literários começam a espancar violentamente o motorista (que usava um turbante, inclusive). Uma cena cômica e brutal, da mesma forma que certas figuras da Literatura Nazi. Indecidibilidade entre ironia e denúncia. Ser um esteta não salva você de ser um monstro. Uma coisa não anula a outra. Em certos momentos da história, parece anunciar Bolaño, uma coisa pressupõe a outra.
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O tom é outro, por exemplo, na cena do Noturno do Chile que mostra um sujeito torturado em um quartinho subterrâneo, enquanto, no andar de cima, o casal dono da casa organiza encontros literários (para identificar os subversivos de maneira mais cirúrgica). A ironia não toma parte nesse contexto, mas o debate e o anúncio persistem: para cada tertúlia no andar de cima, há uma tortura no andar de baixo. Ética e estética estão irremediavelmente ligadas, não se pensa a possibilidade de dizer sem pensar a obrigatoriedade de calar, em algum ponto. Walter Benjamin: todo documento de cultura é também um documento de barbárie. Isso condensa todo o percurso.
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Na frase final de 2666, Bolaño une (se já não estava claro o suficiente) definitivamente o imaginário bélico nazi-fascista com a América Latina. Esse é o projeto da Literatura Nazi, que atinge o ápice em 2666. A parte dos crimes em Ciudad Juarez, centenas e centenas de mulheres mortas ao longo de 10, 15 anos, é a versão latino-americana dos campos de concentração. O deslocamento de Arcimboldi para o México (que não acompanhamos, porque o romance acabou) é o nó final de uma trama minuciosamente arquitetada para mostrar que o Extermínio ainda está acontecendo, ainda está passando, reconfigurado em uma matriz hispano-hablante. Este é o local ideal, Bolaño segue anunciando, para que a barbárie floresça - amalgamada com a cultura, com o beletrismo, com a ignorância cultivada, com o senso comum travestido de europeísmos.
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Estrella distante, novela que amplia justamente uma das biografias de La Literatura Nazi, é a reescritura ficcional dos livros de Hannah Arendt, por exemplo. Especialmente a reportagem que ela faz para a New Yorker sobre o julgamento de Eichmann, que tornou-se, entre nós, Eichmann em Jerusalém. Bolaño conta a busca, anos a fio, por um assassino que nasceu nas letras chilenas e ascendeu ao poder junto com Pinochet. Foge, e seu rastro é seguido, ao longo dos anos, em revistas de literatura e filmes pornográficos. É o relato de uma busca detetivesca, que se desenrola a partir dos detalhes da mescla que Carlos Wieder faz de cultura e barbárie, ficção e psicopatia. Porém, na psicopatia latino-americana não há um Estado por trás, como ocorre na execução de Eichmann. Somente um investigador velho e enfastiado e um escritor obscuro atrás de uma história que, um dia, tocou sua juventude.
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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Conficção

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Sua apresentação estava marcada para as 17h10. Quando chegou, atrasado, um anônimo ainda falava sobre o lunfardo, o galego e palavras emprestadas. O trabalho sobre Wilcock, que levava debaixo do braço, teria de esperar: adiantaram uma das palestras (quando ele ainda não estava lá) porque o avião não podia esperar. O que estava marcado para 17h10 aconteceria uma hora depois. Depois do lunfardo, surgiu um professor macilento (nunca a palavra se aplicou tão bem, ele pensa, o sujeito era inteiro da mesma cor, pele, cabelos, roupas, um aspecto tísico, se possível) para falar de Benítez Rojo. Após, uma mulher insegura, de unhas roídas e cabelo lustroso, viajou de Belo Horizonte até Florianópolis para repetir conceitos de trinta anos atrás sobre o romance histórico. Chega, finalmente, a vez dele. A audiência é composta de quatro pessoas. O trabalho é cuspido, simplesmente. O único trecho que o satisfaz, durante a leitura, é a referência feita ao Evangelho segundo São Mateus, filme de Pasolini, do qual participaram, como figurantes, Giorgio Agamben, Natalia Ginzburg e Juan Rodolfo Wilcock. São Filipe, Maria de Betânia (irmã de Lázaro, o ressuscitado) e Caifás, o Sumo Sacerdote, respectivamente. Fora isso, tudo foi lido de um chofre, insensivelmente.

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A surpresa ficou para depois, na entrega dos certificados de apresentação. A moça sorridente e um pouco acima do peso, que entregava os papéis, disse a ele que a professora Denise, que finalizava uma palestra na sala ao lado, pediu que fossem apresentados. Havia uma espécie de presente para ele. Entrando na sala, desconfia do que lê projetado na parede: um trecho narrativo que fala sobre a guerra do Vietnã (no ônibus, atrasado, ele lia justamente a passagem de Summertime que menciona a fuga de Coetzee do serviço militar na África do Sul e sua expulsão dos Estados Unidos por participar de uma manifestação contra a guerra no Vietnã). "A narrativa é cindida", diz a palestrante. "A voz da personagem oitocentista é dúbia, oscilante", ela continua. O tema da apresentação é J. M. Coetzee e seu primeiro livro, Dusklands. Termina em seguida.

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Segue a rotina ridícula de praxe: leitura dramática de poemas no palco. Sem titubear (esperam por ele em casa), vai falar com a palestrante, já sentada nas cadeiras da platéia. Ele precisa mostrar a ela o trecho do livro (Summertime) no qual Coetzee afirma que o prefácio de Dusklands, assinado pelo pai do autor, é pura invenção. A cópia que ele tem do livro (e que agradece, sem palavras, cada vez que a manipula), diante de tal novidade, gera outra cópia, que seguirá viajando. Contudo, é a palestrante a responsável pelas novidades principais: Coetzee perdeu um filho, em um desastre de carro (e, depois disso, escreve O Mestre de Petesburgo, sobre Dostoievski perdendo um filho); foi casado durante muitos anos, teve dois filhos, e agora vive com uma mulher, que chama, quando a apresenta, de partner. O presente era uma sacola de papel com algumas revistas acadêmicas, oferecimento da Universidade que a professora representa a um de seus colaboradores. "Preciso reler Dusklands", ele pensa, no caminho para casa.

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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Vestimenta

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"Duchamp, que certa vez dissera a William Copley 'ter conseguido desenvolver seu parasitismo à perfeição', continuou vivendo com pouquíssimos recursos. O aluguel de seu estúdio na rua 14 custava ainda 35 dólares por mês. Tinha um único terno, que ele mesmo escovava e limpava. Quando ia passar o fim de semana com Teeny em Lebanon ou em Gardie Helm, na casa de uma amiga de infância de Teeny, em Easthampton, aonde eram frequentemente convidados durante os meses de verão, ele nunca levava uma valise. Costumava usar duas camisas, uma em cima da outra, e carregar uma escova de dentes no bolso do paletó."

Calvin Tomkins. Duchamp: uma biografia. p. 426.
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"Encontrar-se com Beckett é só um pouco menos difícil do que se encontrar com Godot, que, na peça, não aparece, ainda que todos esperem por ele. O endereço de Beckett em Paris é um segredo bem guardado e não mais do que uma dúzia de pessoas conhecem a localização de sua casa de campo. O dramaturgo é uma figura esguia, impressinante, que lembra um apóstolo inflamado. Mas ele não se importa com a aparência e, se parece que dormiu com as roupas que está vestindo (como, de fato, parece), não dá mostras de prestar maior atenção ao caso."

Israel Shenker. Entrevista com Samuel Beckett, New York Times, 1956.

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"John wasn't exactly a snappy dresser himself. One pair of good trousers, three plain white shirts, one pair of shoes: a real child of the Depression. But let me get back to the story."

Julia Kis
. In: Coetzee, Summertime, p. 34.
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"Otra persona sobria es mi amigo Juan Rodolfo Wilcock, que lleva años viviendo en el campo, en una casita sencilla, con pocos muebles, escasos cacharros y un estante de libros. Creo que en su guardarropa sólo hay dos viejas chaquetas, tres o cuatro camisas desgastadas, algún pullover agujereado y unos cuantos pantalones de pana: todo ello ropa comprada en mercados de segunda mano."

Ruggero Guarini. In: Wilcock, La sinagoga de los iconoclastas, p. 7.

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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Coetzee

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Leio o último livro de J.M. Coetzee, Summertime: um biógrafo vai atrás de figuras importantes na vida de um escritor chamado John Coetzee, que está morto. O que primeiro me assombra: a vastidão da consciência de Coetzee, que até de sua morte, e os desdobramentos ficcionais possíveis, cuida em vida (e obra). O jogo com as informações que foram dadas ao longo de anos e anos em outros livros, a reconstrução póstuma da obra, operada em vida e pelo autor, sem metaficção preguiçosa ou ironia pós-moderna. Uma verdadeira reflexão sobre o legado. Escrevendo sobre ele mesmo, no passado: why then does he persist in inscribing marks on paper, in the faint hope that people not yet born will take trouble decipher them?. A anotação data de 1972. Eu não era nascido em 1972.
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Vou precisar de muitas vidas dentro dessa que eu vivo para decifrar essa obra. O que intriga é o jogo suplementar entre forma e conteúdo que o Coetzee opera como ninguém mais faz. Diário de um ano ruim e agora Summertime: capítulos fragmentados, continuidade comprometida, sem afetação, com foco no relato, sem excesso, sem dispêndio gratuito de energia. A vida dos animais e Elizabeth Costello, mesma coisa: problematização das formas visuais de se organizar um relato, de se organizar os significantes, que, no fim das contas, potencializam o que ele efetivamente escreve. Não há dialética ou resolução possível dentro desse horizonte de contato entre forma e conteúdo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Dublinesca


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E não é que Beckett também está no próximo livro de Enrique Vila-Matas? Como se adivinhasse minhas atuais preocupações, o catalão, muito gentilmente, resolve escrever um romance que se passa em Dublin e articula a amizade de James Joyce e Beckett. O livro, Dublinesca, sai em março de 2010.


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Não posso pensar em outra coisa que não a amizade, ou ainda, a amizade mesclada de admiração: Joyce e Beckett ("nunca fui seu secretário; o ajudava por conta de sua vista, mas nunca escrevi suas cartas, por exemplo"), Vila-Matas e Paul Auster (Siri Hustvedt, esposa e escritora, também está na foto), e seus criativos contatos com Sophie Calle, a artista plástica, seja em Leviatã (dedicado a outro Amigo, Don DeLillo), seja em Exploradores del abismo - artista que englobou outros escritores em suas "ficções de parede": Ray Loriga, Jean Echenoz (que atualiza Perec de forma tão interessante em L'occupation des sols) - Vila-Matas e Sergio Pitol, essa amizade sim, mais parecida com a de Joyce e Beckett: Pitol mais velho, recebendo a visita de um Vila-Matas muito jovem em sua casa de Varsóvia - Pitol que é um grande Tio mais velho dos escritores mexicanos, seja Juan Villoro ou Ignacio Padilla (poucos livros são tão inteligentes quando Amphitryon), ou o melhor deles (que era, também, chileno): Roberto Bolaño. Os laços se multiplicam e não resta alternativa: é preciso embarcar na vertigem das filiações: Mario Bellatin leva a Joseph Roth; Edgardo Cozarinsky leva a Juan Rodolfo Wilcock; Ricardo Piglia leva a Luis Gusman; César Aira leva a David Toscana.

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São outros tempos, definitivamente: observe as lâmpadas de camarim, atrás de Vila-Matas, as cores vivas, a nitidez. Agora observe o casaco puído de Beckett, lá em cima, a granulação da imagem no sobretudo de Nathalie Sarraute ou os sapatos desbotados de Claude Simon. Dois futuros Nobel de Literatura em uma editora tão pequena: Editions de Minuit. Trata-se, como se houvesse qualquer dúvida, do tempo da montagem, da edulcoração, do espetáculo, da pose, da maquiagem, dos bastidores de talk-show, das transações milionárias - não que eu tenha qualquer coisa a dizer contra isso, só é curioso o abismo semiótico que se abre quando confrontamos duas imagens que teriam muito em comum (a amizade literária), mas cuja aproximação se detém, desconfiada, quase com repulsa.

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terça-feira, 29 de setembro de 2009

Perseguindo um significante

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1a) Em 1934, Samuel Beckett publica o conto Dante e a Lagosta. Está incluído na coletânea More Pricks than Kicks. Os contos desse livro são os melhores momentos do primeiro romance de Beckett, longo e verborrágico, que ele desmembrou e silenciou. O protagonista do conto chama-se Belacqua, vive em Dublin e estuda no Trinity College, como o jovem Beckett da época (28 anos). Perde-se em digressões eruditas sobre filosofia, patrística e literatura - está especialmente interessado, como Wittgenstein na mesma época, nos diferentes usos de um mesmo significante quando migra de contexto.
1b) Belacqua é um leitor, a Divina Comédia inicia o conto. Prepara uma lagosta para o jantar: ela está aí como um proto-signo da agonia, da espera, do vazio, da impossibilidade, da angústia e do silêncio. Este é o primeiro Beckett, Beckett antes de ser Beckett, e aparece uma lagosta, que será morta lentamente na água fervente, For hours, in the midst of its enemies, it had breathed secretly, a lagosta lutou na água, é o que ele diz no fim do conto, para morrer em agonia, em outra água: um familiar que é monstruoso.
1c) O pior está no fim (respiro fundo, essa é forte): Well, thought Belacqua, it's a quick death, God help us all. Uma morte rápida, esse é o consolo possível, se não pensamos muito na questão. As últimas palavras do conto aparecem, em seguida: It is not. Não, nada disso, você está enganado, a lagosta morre, você morre, não há nada, não há ninguém. Implosão de toda uma ontologia enganosa através de uma lagosta. Uma lagosta!
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2) O capítulo 10 de Alice no país das maravilhas é dedicado a uma dança da lagosta.
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3) David Foster Wallace retira a sutileza da alegoria de Beckett e transforma a lagosta em debate ético, quando questiona a naturalidade de se ferver um animal vivo: como foi possível socializar um gesto tão brutal? A pergunta é feita por conta do Festival da Lagosta do Maine, e integra um artigo que Wallace publica em agosto de 2004 na revista Gourmet. Mais tarde, o artigo nomeia seu livro de ensaios, Consider the Lobster. Sobrevive de Beckett esse embate contra a ignorância na qual chafurda a sociedade: é sempre mais fácil evitar pensar em certas coisas. It is not.
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4) Está tudo lá, em J.M. Coetzee, A vida dos animais, e também em toda argumentação e exemplo e ficção da velha ranzinza Elizabeth Costello. Lembrando que Coetzee ocupa um lugar central na apreciação crítica que acompanha as obras completas de Beckett (Paul Auster também está lá).
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5) Há uma cena do filme Simplesmente Amor na qual a mãe, Emma Thompson, dá os retoques finais na fantasia que a filha vai usar em uma apresentação de teatro na escola. É uma fantasia de lagosta. Pouco depois ela vai descobrir que o marido comprou uma jóia para a secretária, etc. Uma imagem terna e eficiente do cotidiano, como acontece nas últimas palavras daquele conto de Cortázar, Deshoras, que o narrador relembra um amor da infância, revive e repensa até que é atropelado pelo pato Donald: oía la voz de Felisa que entraba con los chicos y venía a decirme que la cena estaba pronta, que fuéramos enseguida a comer porque ya era tarde y los chicos querían ver al pato Donald en la televisión de las diez y veinte.
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segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Minima Moralia




1) Roberto Calasso observa (49 degraus), sobre a situação de Adorno quando escreve Minima Moralia, que "seu momento de máxima força criativa coincide com a situação de máxima vulnerabilidade" - pois Adorno recém havia chegado aos Estados Unidos, como milhares de outros, fugindo da Guerra. Sem dinheiro, e sem ter onde cair morto, teve que assimilar uma quantidade brutal de novidades sem poder pensar muito em suas limitações, sofrimentos ou preferências.
2) O método escolhido foi o aforístico - breve, conciso, de um só fôlego (quase como um blog que se escreve durante o trabalho), que já contava com larga tradição na língua alemã. Movimentos de dissecação muito precisos, que Adorno ensaia para abarcar a cultura em sua face monstruosa, midiática, multisensível, atabalhoada, que ainda nascia.
3) Isso foi em 1944. Ao longo de 1940, Walter Benjamin experimentou algo semelhante, porque fugia do nazismo, havia sido preso, e também lutava cognitivamente para apreender um estado de coisas delirante. Também com o gênero aforístico, às pressas: as teses que formam o ensaio Sobre o conceito de história foram escritas em pedaços de papel encontrados ao acaso, escritas sobre a coxa, escritas na penumbra, dentro de um trem, até que se juntaram em uma sucessão de iluminações.
4) Essa é a costura indissolúvel entre contingência e expressão (como os microgramas de Walser), e tanto Minima Moralia quanto as teses sobre a história (e o contexto que possibilitou...) sobrevivem ainda hoje, subterraneamente, como um capítulo em potência de uma história abreviada do pensamento portátil, talvez.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Ronald Firbank

1) Me persegue uma frase de Bartleby & companhia, em que alguém comenta: “entre meus autores preferidos estão Robert Walser e Ronald Firbank, e todos os autores preferidos por Walser e por Firbank, e todos os autores que estes, por sua vez, preferiam” (p.28). Ronald Firbank nasceu em Londres, 17 de janeiro de 1886. Morreu em Roma, 21 de maio de 1926 (ano em que Marinetti passeava pelo Brasil) - com 40 anos, portanto. Filho de lorde, viveu de herança. Viajou muito: Espanha, Itália, Oriente Médio, Norte da África.
2) Resta saber se foi ao sujo, como Flaubert ou Sir Richard Francis Burton, ou se foi ao turístico típico, como, sei lá, Cees Nooteboom (ou se viajou sem sair da cabine, como fez outro milionário, Raymond Roussel). Escreveu um livro que talvez esteja relacionado a isso: Sorrow in Sunlight, de 1925, rebatizado pelo editor como Prancing Nigger, ou seja, Nêgo saltitante - a trama transcorre em um país semelhante a Cuba ou o Haiti. Estudou em Cambridge, que abandonou antes de se formar. Escreveu contos, romances e peças de teatro. Virou católico com pouco mais de 20 anos de idade.
3) E nesse ponto aparece um livro que me faz pensar muito mais em Rodolfo Wilcock do que em Robert Walser para acompanhar Firbank nas preferências de Bartleby & companhia. Trata-se de Concerning the eccentricities of Cardinal Pirelli, de 1926, o único título de Firbank traduzido ao espanhol: De las excentricidades del Cardenal Pirelli. O religioso do título inicia o livro batizando um cachorro e finaliza-o correndo nu atrás de um coroinha. Um humor irlandês, talvez, à maneira de Flann O'Brien e Joyce e Beckett (um humor delirante como o de Hrabal), mas com um toque homossexual (há um artigo sobre Firbank intitulado o escritor de unhas vermelhas (Alan Hollinghurst o compara a Proust, inclusive)). Enfim, ainda muito a descobrir de Firbank.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Espaços em branco




1) Sou levado a pensar sobre o espaço físico ocupado pela escritura, ou seja, o pedaço de papel. Vila-Matas, em Doctor Pasavento, experimenta mini-ensaios, tendo como base os microgramas de Robert Walser - os 526 pedaços de papel, preenchidos com uma escrita microscópica, encontrados no sanatório onde ele ficou até morrer no dia de Natal de 1956. A plataforma influencia diretamente sobre aquilo que é escrito, por conta de seu espaço controlado: contigência e expressão.  
2) Mínimos, múltiplos, comuns (João Gilberto Noll) funciona assim. As fichas de Barthes, sempre idênticas, sempre pautadas, preenchidas só em uma face (reunidas em caixas e caixas). O poeta de Pale Fire, de Nabokov, também metódico quanto a quantidade de fichas que abarcariam cada um dos trechos de seu poema. Walser escrevia em folhas de rascunho, notas fiscais, folhetos publicitários. Philip Roth diz: "Procuro escrever ao menos uma página por dia; na pior das hipóteses, tenho 365 páginas escritas em um ano - o que me parece excelente".
3) A quantidade imensa de reflexão e trabalho que se faz necessário para preencher uma única página, mas uma única página perfeita em si, um lampejo que se auto-consome, tanto mais breve quanto mais intensa. A energia criativa que nasce do restolho, do papel irregular para embrulho, do rascunho. Alheio a categorias pretensamente universais (moral, gosto, estética) o pontapé criativo inicial é sempre de ordem particular - irrelevante para essa universalização, portanto, constituindo um desvio e uma negação, que é sempre camuflada, obliterada e silenciada.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Os lados do círculo



A situação que inicia e encerra Os lados do círculo, de Amílcar Bettega Barbosa: um grupo de pessoas se encontra durante a noite em Porto Alegre, cada uma descendo em silêncio de uma rua diferente, cada uma segurando um objeto diferente, caminham juntas em silêncio. Na beira do rio Guaíba, na areia, depositam seus objetos, fazendo arranjos que são sempre diferentes e que permanecem ali, até o dia seguinte, até o sol nascer, até que alguém os retire dali. As pessoas abandonam seus objetos e voltam para suas casas. Esse é um culto surrealista do objeto anacronizado e ressignificado: a) Remete a Lautréamont (que está na epígrafe) e seu verso sobre a máquina de costura e o guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação (apropriado mais tarde por Breton) b) Remete ao acaso proliferante de Duchamp e dos ready-mades c) O lance de dados de Mallarmé d) Cortázar no conto “O outro céu” – que usa Lautréamont como personagem e materializa, com a imagem das Passagens (Arcadas, Galerias) urbanas, o trânsito geográfico, cultural e temporal e) Cortázar é, inclusive, “autor” de um dos contos de Os lados do círculo, deixado em um envelope, capturado por Amaro Barros, que também tem seu conto (e participa do arranjo no rio Guaíba...), onde explica tudo. Um arranjo de objetos na beira de um rio em Porto Alegre é o suficiente para lembrar que o tempo, mais do que um ilusão, é uma ferramenta ficcional que o senso comum tende a sacralizar. O tempo, portanto, é profanado em Os lados do círculo (e em muitos outros, evidentemente).


quarta-feira, 20 de maio de 2009

A cruzada das crianças.




Paul Valéry, poeta-crítico francês (1871-1945), muito apreciado por Borges & outros, principalmente por seu apuro na linguagem & sofisticação nos juízos críticos (dono de frases como "o leão é o carneiro assimilado" e "nunca se termina um livro; ele é abandonado" - a primeira utilizada por Silviano Santiago, a segunda por Vila-Matas), dedicou aquele que parece ser seu principal ensaio, ''Introdução ao método de Leonardo Da Vinci'', a Marcel Schwob -

__________________________outro francês, (1867-1905), autor de ''Vidas imaginárias'', traduzido pela 34, com prefácio de Borges, que também gostava muito deste outro francês - utilizado também por Vila-Matas, pela ficcionalização que Schwob fez de vidas reais, como faz Tabucchi, "Sonhos de sonhos" - E Valéry muito poetizou as crianças, como serpentes que se enrolam, ou ainda ouriços, que andam e falam ao mesmo tempo ("Poesia e pensamento abstrato"), próximas da vida plena e da morte plena (o inanimado, o não-ser) AO MESMO TEMPO: a criança sobrepõe os dois momentos, morte e vida. E Schwob escreve esse livro, A CRUZADA DAS CRIANÇAS - missões católicas de vários países na época das Cruzadas, que enviaram centenas e centenas de crianças, em uma procissão absurda rumo à Terra Santa, para que esta fosse reconquistada, para que Deus olhasse seus pequenos e -

__________________________ libertasse Jerusalém dos árabes malvados. Nenhuma criança chegou em Jerusalém, nenhuma criança voltou para casa.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Hoje é dia de poesia.


Um homem lento inominável
Escorrendo pelos dedos
Fora deste mundo, claro enigma imundo.

Conjurado na ilusão perdida
do banquete das almas mortas
saindo todas da mesma ferida.

De onde vem essa chaga?
Ele olha sempre pro outro
E essa resposta ainda é vaga.
Me oferece um cigarro
E entre um e outro pigarro
Me conta a saga de um perdedor:

"Sepultei a infância no fundo do abismo
Alimentei um monstro mole e indeciso
Com carne, capricho, esse ente arisco
Espécie de espaço do acaso
Minha vida era o último passo
Uma coisa é o que digo,
outra coisa é o que faço."

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Cães.


O que diz o cão?
Um cachorro sempre olha para o lugar certo.
Ele diz: "Tira essa coisa da cara"
Ele pensa que é curioso uma fotografia e uma pintura ocuparem o mesmo lugar.
"Não chega perto do meu pai"
A coleira e a cordinha são antigas, olha ali.
De couro.
O dono dá as costas para a foto e o cão faz pose.
Como se dividisse um segredo com o fotógrafo.
"Esse ângulo me favorece"

terça-feira, 14 de abril de 2009

Um rancho de palha e barro



"Não existe nada simultaneamente mais real

e mais ilusório do que o ato de ler"

Ricardo Piglia





Era um velho encarquilhado, de muitas posses, que decidira, após um sonho perturbador, livrar-se dos livros. Começou pela própria biblioteca: lotou o carro com os volumes de seu apartamento na cidade e seguiu para o campo, onde estava a casa que abrigava sua biblioteca. No amanhecer do terceiro dia, com a ajuda de dois empregados, ergueu uma fogueira e lá queimou papel até a madrugada.

Entretanto, os sonhos voltaram ainda mais opressivos. Por vezes sonhava com memórias reais, de sua juventude, ainda estudante, formando sua biblioteca com os parcos recursos de que dispunha. Na última semana de cada mês, com sua mochila e suas reservas financeiras mensais, percorria a cidade, andando atrás de livros, nas lojas de usados. No sonho tratava-se de um dia interminável, em que ele refazia o percurso centenas de vezes, e sempre que passava pelos mesmos lugares, novos livros surgiam, e sua mochila abarrotava-se e tornava-se cada vez maior, ao passo que ele diminuía e era, por fim, esmagado.

Tratou de comprar bibliotecas de velhas viúvas e jovens herdeiros, em tudo ateando fogo. Em seu esforço biblioclasta fez com que o mercado de raridades se valorizasse e desse modo gastou grande parte de sua fortuna comprando lotes e estoques inteiros, em tudo ateando fogo. Os negociantes tomavam-no como um colecionador excêntrico, de nada sabiam.

Perdia a razão progressivamente, para a história de sua lucidez restavam poucas linhas vazias. Sua consciência ardia como a fogueira no pátio, inexorável, e o conteúdo dos sonhos crescia em malícia e perdição.

Alguns meses depois do primeiro sonho, diante da fogueira, abriu um volume prestes a ser queimado. Chamou-lhe a atenção a capa verde e as letras douradas no frontispício. Abriu numa página qualquer, ao acaso, e leu o breve relato de uma família queimada viva dentro de uma cabana de palha, de onde saíram os gritos que acordaram o narrador daquela história, um velho professor que procurara conforto e descanso para si e seus livros naquela aldeia afastada. No fim do relato, recorda-se do dia que ensinara as primeiras palavras em latim ao filho de seus vizinhos. Um aluno promissor, transformado em cinzas junto com seus pais e sua irmã recém-nascida.

Transtornado pela potencial queima daquela família, já mortalmente envolta pelas chamas uma vez, o velho mandou apagarem a fogueira e recolheu-se em seu quarto com o resto dos livros, de onde, segundo consta, nunca mais saiu.