segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Fato, evento


1) Em seu livro Narrar a San Martín (Adriana Hidalgo, 2005), Martín Kohan declara que não está interessado nas perguntas que a história dirige ao passado, acerca do que passou e suas razões; também não está interessado nas perguntas que a historiografia dirige à história, "acerca de seus enfoques ou critérios metodológicos"; está interessado nas perguntas que a crítica literária pode fazer a "qualquer texto narrativo" (p. 40), independente de sua localização disciplinar (por isso a ênfase em "narrar" San Martín, em encontrar o personagem histórico nas narrativas e não na "realidade").

2) Acionando, sem mencioná-los (eles aparecerão nas notas, no fim do volume), as ideias tensionadas de Hayden White e Carlo Ginzburg, Kohan fala do heroísmo das figuras nacionais como uma construção feita a partir de representações - não é preciso reforçar "a difundida banalidade de que a história é uma ficção como qualquer outra, ou de que os fatos não existem além de suas representações" para advertir que "a significação dos acontecimentos históricos vem de seu ordenamento narrativo e não dos próprios acontecimentos"; os "fatos reais" existem "objetivamente", escreve Kohan, "concretos" como a "própria realidade", mas é "a narração que neles imprime um sentido", no modo como os seleciona e como os conecta: "os fatos da história existem na realidade, mas os fatos na história existem como narração" (p. 39).

3) Transformar a questão em uma "banalidade" não a resolve, especialmente porque o próprio Hayden White disseca o problema ao diferenciar "evento" e "fato": o "fato" é um fenômeno linguístico, uma decorrência discursiva do "evento" - o fato é um statement sobre o evento (como diz White em entrevista de 1995). O fato é a representação, uma vez que na "realidade" não há fatos, só "eventos" (cuja natureza é desconhecida em si; é preciso a intervenção discursiva para que ocorra a passagem do "evento" para o "fator", uma intervenção que é sempre uma "ficcionalização", na medida em que oferece uma descrição que transforma um evento em objeto possível de análise).   

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Nomes, delitos


1) "No Moreira de César Aira o popular 'mau', a violência, é o signo da vanguarda literária e da revolução, e a morte no prostíbulo, o momento socrático do texto: o momento da verdade literária, política e psicanalítica. Na contracapa, o livro tem esta inscrição: 'Volta neste romance o mais célebre dos sujeitos maus. Rodeado por seus discípulos, Juan Moreira aguarda a chegada da morte; enquanto isso, discutem sobre a imortalidade da produção (Moreira diz sempre a verdade). O romance desliza e se transfigura sobre cenas multiplicadas, mas os panos de fundo da Mãe Natureza impedem que se veja seu desenlace'. No texto, Moreira cita Freud e exorta: 'Sejam marxistas' (p. 61) e vence quatrocentos soldados, enquanto Felisa, a prostituta, fala do telefone em alemão: '- Wo es war, soll Ich werden (Se ela vai, eu não vou)' (p. 76). Os soldados dispersam-se, primeiro em 'bandos', depois em 'hordas'. E a história encerra-se sem narrar a morte" (p. 252)

2) "Boquitas pintadas não somente é 'o folhetim dos anos 60' pela ideologia da transgressão (a equivalência metafórica entre a violação dos tabus sexuais e a violação das normas discursivas que hoje associamos à teoria da textualidade), mas também, e sobretudo, porque exibe a passagem de uma 'cultura da biblioteca' a uma 'cultura dos meios' audiovisuais (essa passagem é o que Manuel Puig representa nitidamente na literatura argentina). Um texto sobre os signos e a circulação; sobre a circulação das cartas e dos corpos e seu fim na equivalência cremar/queimar: as cartas se queimam e os corpos mortos 'se queimam em contato com o muro'. E também é um texto fortemente marcado, que se auto-representa constantemente em seu interior. É também um folhetim dos anos 60 pelo questionamento da categoria de 'autor' e pela proliferação de narradores e cronistas que desmentem a existência de uma posição fixa de onde emanaria o discurso" (p. 366-367)

3) "Outros textos de Borges da década de 1940 com nomes no título, além de 'Pierre Menard', mostram delitos da verdade (delações, falsas identidades ou nomes, pactos fraudulentos ou juramentos falsos, e no campo da escritura, plágios e pseudoepigrafismos): 'La búsqueda de Averroes', 'Abenjacán el Bojarí, muerto en su laberinto', 'La forma de la espada' (que é a tradução do nome Moon como delator escrito em seu rosto), 'Funes el memorioso', 'Examen de la obra de Herbert Quain', 'Biografía de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)' e 'Emma Zunz'. Os contos de Borges com títulos de nomes giram ao redor dos delitos da verdade e da legitimidade, e são políticos ou incluem alguma referência política. E sua política é, também, ambivalente. Incluem outras línguas orais ou escritas, estrangeiras, e delitos verbais como nomes falsos, delações e pactos fraudulentos que sustentam e acompanham a ficção. Em todos eles se combinam crônica e confissão, discursos narrativos da verdade (como em Los locos-Los monstruos [de Roberto Arlt])" (p. 398)

(Josefina Ludmer, O corpo do delito: um manual, trad. Maria Antonieta Pereira, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002)

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Conspiração e discurso


1) Quando Roberto Arlt escreve e publica seus romances - fim da década de 1920, início da década de 1930 - cria para si um espaço dentro de uma rede complexa de textos e ficções que lidam com a simulação, os grupos clandestinos, a sabotagem, a falsificação de dinheiro, os gestos extremos do "terrorismo" e assim por diante (algo que reverbera e atinge seu clímax na frase célebre de Brecht, cunhada nessa mesma época: O que é roubar um banco comparado com fundá-lo?): os anarquistas de Dostoiévski (Os demônios, 1871) e de Conrad (O agente secreto, 1907), os conspiradores de André Gide (Os moedeiros falsos, 1925), as quadrilhas em Alfred Döblin (Berlin Alexanderplatz, 1929).

2) Expandindo um pouco a questão é possível aproximar Arlt também de Fernando Pessoa (morto em 1935) e Pirandello (morto em 1936), especialmente pelo viés da "simulação" e do "embuste identitário" (não por acaso os dois também se identificaram com elementos fascistas da época). Relembrando o ensaio de Jameson, comentado dias atrás, sobretudo sua discussão sobre os filmes de máfia (a redução do "perigo" a grupos específicos, impedindo a reflexão sobre o "perigo" maior, englobante, que é justamente - e novamente - o banco, o capitalismo), o insistente ressurgimento dos "anarquistas" e "conspiradores" nessas ficções indica a necessidade estrutural de um contra-discurso, de um conjunto de possibilidades ou vias de escape diante da aparente inexorabilidade do "progresso" ou mesmo da "cronologia" (a atenção se volta aos grupos atípicos para que não se pense na falha sistêmica que requisita sua emergência).

3) Não só pela via dos conspiradores é possível aproximar Arlt e Dostoiévski, mas também pela via da captura e do registro do discurso dos conspiradores na ficção (e o relacionamento conflitivo desse discurso com outros, numa espécie de estratificação ideológica). Quem possibilita a triangulação entre Arlt, Dostoiévski e mescla heterogênea de discursos na ficção é Bakhtin: no mesmo ano de lançamento de Los siete locos, 1929, Bakhtin publica seu primeiro trabalho de fôlego, "Problemas da obra de Dostoiévski" (posteriormente reformulado em 1963 como Problemas da poética de Dostoiévski), no qual introduz o conceito de "dialogismo" (cada personagem, e cada voz implícita no diálogo interno de um personagem, é uma outra consciência que nunca se torna meramente um objeto para o autor ou qualquer outro personagem ou voz).

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Jameson, Auerbach

Em ensaio de 1979 intitulado "Reificação e utopia na cultura de massa" (incluído no livro As marcas do visível), Fredric Jameson opera uma inusitada retomada de Auerbach, especificamente do primeiro capítulo de Mímesis, dedicado à leitura comparada de Homero e do Antigo Testamento. Jameson está interessado no comentário que faz Auerbach à construção da Odisseia no formato de cenas "imanentes", sem vínculos "necessários ou indispensáveis" com o que vem antes ou depois (o modo como a escrita de Homero se intensifica verticalmente e não horizontalmente; o poema é "vertical em relação a si mesmo", escreve Jameson, seguindo Auerbach). 

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De certa forma, Jameson retoma o gesto de Adorno e Horkheimer de retornar aos gregos (e a Ulisses e Homero) para discutir o capitalismo e a cultura do presente, acrescentando ao gesto, contudo, as intuições de Auerbach, que foi seu orientador em fins da década de 1950 (a reflexão de Auerbach sobre o caráter intensivo e "a-histórico" do poema homérico serve a Jameson para pensar o consumo superficializado de artefatos artísticos na cultura de massa, dentro da qual a lógica da mercadoria faz com que essas "cenas imanentes" sejam transformadas em procedimento de obsolescência programa, transformando a experiência de fruição estética em experiência de transposição desenfreada e a-crítica de um artefato a outro - Jameson fala das "histórias de detetives" e de como manipulam os "fins reificados" dentro de um processo de "consumo de si mesmo").

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Corpo e política


1) No epílogo de Los lanzallamas, o "cronista" responsável pela narração (ou seja, o jornalista que recebe Remo Erdosain em sua casa e ouve sua confissão ao longo de três dias) conta o que aconteceu com Erdosain depois de seu suicídio no trem. Chama a atenção a reivindicação do cadáver do "feroz assassino", como dizem as manchetes: "foi fotografado cento e cinquenta e três vezes no espaço de seis horas"; na delegacia, um "ancião respeitável", "pai do Chefe Político do distrito", cospe no rosto do cadáver e diz: Anarquista, hijo de puta. Tanto coraje mal empleado.

2) O destino dos cadáveres tem sido um tema recorrente na literatura argentina: em 1998, Paola Cortés Rocca e Martín Kohan publicam Imágenes de vida, relatos de muerte: Eva Perón: cuerpo y política, um livro sobre o mais famoso desses cadáveres, comentando uma série de textos que dele se ocuparam - os dois romances de Tomás Eloy Martínez; a peça de Copi de 1969, Eva Perón; o conto de Borges, "El simulacro", publicado originalmente em 1956 (hoje no livro El hacedor); "Esa mujer", conto de Rodolfo Walsh (do livro Los oficios terrestres, de 1965); "Eva Perón en la hoguera", poema de Leónidas Lamborghini; "El cadáver de la Nación", poema de Néstor Perlongher; "La señora muerta", conto de David Viñas publicado no livro Las malas costumbres, de 1963, e assim por diante.

3) "Uma tarde Juan C. Martini Real me mostrou uma série de fotos do velório de Roberto Arlt. A mais impressionante era uma tomada do caixão pendurado no ar por cabos e suspenso sobre a cidade. Haviam armado o caixão no quarto dele, mas tiveram de retirá-lo pela janela com aparelhos e roldanas porque Arlt era grande demais para passar pelo corredor. Aquele caixão suspenso sobre Buenos Aires é uma boa imagem do lugar de Arlt na literatura Argentina. Morreu aos quarenta e dois anos e sempre será jovem e sempre estaremos tirando seu cadáver pela janela" (Ricardo Piglia, Formas breves, trad. José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 33).

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Simic / Kiš


1) Em ensaio de 2013 para a New York Review of Books (resenhando vários livros de Danilo Kiš e a biografia de Mark Thompson), Charles Simic afirma que Clepsidra é o melhor livro de Kiš: o "mais ricamente concebido" e "mais belamente escrito", "o mais emocionante", atentando para o modo como o autor posiciona a narrativa em uma única noite, mais precisamente do fim da tarde até o amanhecer do dia seguinte (com recuos pontuais em direção ao passado próximo e distante). Simic ainda escreve (citando uma declaração de Kiš que infelizmente não é especificada ou referenciada) que o romance não existiria sem o Ulisses de Joyce, que funciona como uma espécie de ferramenta que permite a expansão vertiginosa da carta do pai à tia. 

2) Simic faz ainda referência à polêmica que surge com o lançamento (em junho de 1976) de Um túmulo para Boris Davidovitch: um crítico proeminente (professor de literatura na Universidade de Belgrado) ataca Kiš e o livro, condenando seu uso das citações e sua manipulação da montagem e do pastiche (Simic comenta que o que está em jogo é também o confronto entre duas concepções da literatura: a do crítico/professor ligada ao ideal nacionalista do século XIX; a de Kiš ligada ao projeto modernista de mescla dos idiomas, das referências e dos pertencimentos - uma discussão que faz pensar, mais uma vez, nas ideias de Hayden White e sua insistência na atualização de modelos para a escrita da História, especialmente no que diz respeito ao momento "modernista" nos anos 1960/1970, em contraste com o legado do século XIX).

3) A polêmica leva Kiš a escrever outro livro em apenas um mês, informa Simic, uma sorte de "filosofia da composição" intitulada Lição de anatomia. A defesa, por parte de Kiš, de uma poética tendo como pano de fundo os "erros" apontados pela crítica fazem pensar em Borges (que ele próprio aponta como modelo para Um túmulo), especificamente na tensão entre Borges e o crítico Ramón Doll: é Alan Pauls quem disseca a situação no sétimo capítulo de El factor Borges, intitulado "Segunda mano" (Borges, segundo Doll - em um livro de 1933 -, escreve Pauls, abusa das "coisas alheias", entre o vício da preguiça e o delito do plágio; é nessa "falha" que Borges arma sua poética: falsear y tergiversar ajenas historias, como escreve na História universal da infâmia). 

sábado, 7 de agosto de 2021

Clepsidra


1) Dias atrás escrevi sobre ficções nas quais os "resíduos textuais" de terceiros são mobilizados (com exemplos de Piglia e Kohan) - hoje me dei conta (depois de ler as entrevistas do livro Homo poeticus) da centralidade desse tema para Danilo Kiš, especialmente em seu romance Clepsidra, de 1972 (título que vem diretamente de Bruno Schulz). Por vezes difícil e truncado, o romance é todo realizado a partir e ao redor de uma carta que Kiš descobre muitos anos depois de enviada, carta escrita por seu pai em 5 de abril de 1942, destinada à irmã Olga, seu último registro escrito antes de ser assassinado pelos nazistas em Auschwitz em 1944

2) O romance "não passa da exegese de uma carta autêntica de meu pai, datada de 5 de abril de 1942", afirma Kiš em entrevista de 1986 (Homo poeticus, p. 210). Cada frase e cada informação que o pai coloca na carta serve ao filho como disparador de um conjunto de cenas, descrições e desenvolvimentos (muito mais carregados de "imaginação" do que faz crer Kiš nas entrevistas, sempre enfatizando a dimensão "documental" como pano de fundo determinante). A carta, contudo, só é transcrita no final do romance - Kiš faz uso de uma série de estratégias para sua "exegese", oscilando o estilo de escrita em seções intituladas, por exemplo, "cenas de viagem", "notas de um louco" e "investigação criminal" (um ritmo de interrogatório semelhante àquele que Bolaño utilizará em contos como "Putas assassinas" e "Detetives").

3) No último parágrafo do romance - antes da transcrição da carta, que é apresentada em itálico -, que faz parte de uma das "notas de um louco", o pai fala em primeira pessoa e faz referência, finalmente, ao filho, o filho que décadas depois se ocupa de seus resíduos textuais: se nada mais sobreviver, escreve o pai já durante a guerra, talvez "minhas anotações e minhas cartas" possam perdurar como "vida materializada" ("patética vitória humana sobre o imenso, eterno e divino nada"). Talvez meu filho um dia publique minhas anotações e meu "herbário de plantas da Panônia", escreve o pai em sua última frase (e essa ênfase no herbário faz pensar em Rousseau, que tinha o mesmo interesse, como Sebald comenta em seu ensaio dedicado ao autor em Logis in einem Landhaus).

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Homo poeticus

"A literatura é somente um fenômeno acessório ao espírito universal de Hegel, e tão sujeita ao comportamento psico-lógico esquizofrênico quanto os demais níveis do espírito humano. Escrever literatura, ainda que bem, não significa atuar sempre na esfera do absoluto, não significa ter sempre razão, mas o contrário. (A literatura, nos últimos cinquenta anos, foi manipulada da mesma forma que outros campos nos quais o espírito humano se manifesta)" (p. 153).

"Quero dizer que a minha insistência na forma borgiana em Um túmulo para Boris Davidóvitch era tão evidente para mim que pensei, afirmo, que o primeiro leitor que tomasse aquele livro em mãos compreenderia que de fato eu estava polemizando com Borges (como sempre se polemiza com os nossos modelos). E a polêmica consiste no seguinte: Borges intitulou seu livro mais famoso História universal da infâmia; entretanto, no plano temático, aquilo não é nenhuma «história da infâmia», mas trata-se, repito, no plano temático, de contos infantis sobre bandidos nova-iorquinos, piratas chineses, pequenos vigaristas provincianos etc., completamente irrelevantes do ponto de vista social. Portanto, polemizei em primeiro lugar com o título de Borges, excessivo além de toda a medida (o que ele próprio reconheceu em algum lugar). E sustento que a história universal da infâmia é o século XX, com os seus campos de concentração e os soviéticos, em primeiro lugar. Porque para mim se trata de infâmia quando, em nome da ideia de um mundo melhor, pela qual morreram gerações de pessoas, quando em nome de uma ideia humanística assim você cria campos de concentração e oculta a existência deles, e você aniquila não somente as pessoas, mas também os sonhos mais íntimos delas por esse mundo melhor" (p. 183-184).

"Céline não me marcou muito, eu conheço pouco Céline... Eu não gostaria de entrar nessa discussão. Na verdade, eu sou a favor de uma certa rigidez: nunca dizer diretamente as próprias emoções, mas antes fazer com que sejam sentidas. Céline, pelo pouco que li, que consegui ler, me parece demasiado direto... esse vazamento... emotivo não me interessou... comecei a ler mas realmente não me interessou. Ele urra demais, ele diz os seus sentimentos, ele os expõe. Eu prefiro, como dizia, os sentimentos ditos nas entrelinhas e nos espaços em branco das frases" (p. 250).

Danilo Kiš, Homo poeticus, trad. Aleksandar Jovanovic, Âyiné, 2021

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

O sonho de Descartes


1) Em ensaio dedicado à "historicidade dos sonhos" (publicado originalmente em 1983 na revista Salmagundi com o título "The Historicity Of Dreams (two questions to Freud)", hoje disponível na coletânea Nenhuma paixão desperdiçada), George Steiner analisa, entre outros, um sonho de Descartes (o "famoso Sonho de Descartes", escreve Steiner) datado de novembro de 1619. O biógrafo Adrien Baillet afirma (escreve Steiner) que o próprio Descartes realizou um minucioso relato escrito do sonho, que não sobreviveu (mas que é a base para a reconstrução do sonho feita por Baillet - que é uma das fontes de Steiner, sendo a outra - e principal - o ensaio de Jacques Maritain, Le songe de Descartes, de 1932).

2) O sonho de Descartes é dividido em três partes, separadas por momentos em que acordou: na primeira parte, um redemoinho o joga contra a parede de uma igreja e ele fica sabendo que um conhecido quer dar a ele um melão; na segunda parte, ele é acordado por um ruído de trovão e vê centelhas de fogo em seu quarto de dormir; na terceira parte, Descartes vê um dicionário e uma coletânea poética aberta em uma passagem escrita no século IV d.C por Ausônio, poeta galo-romano (ainda dormindo, Descartes conclui que aquilo é um sonho e que precisa interpretá-lo, chegando à conclusão que as duas primeiras partes são reprimendas pelo modo como desperdiçou parte de sua vida e que a terceira parte é a revelação da necessidade que tem de seguir o caminho da "verdade universal").

3) Steiner diagnostica no sonho de Descartes uma "sensibilidade barroca", composta por um apego às "convenções retóricas" e à "pluralidade linguística" (já que o sonho articula trechos em francês, latim e grego). Steiner identifica em Descartes um dimensão "retoricamente dramática", "coreográfica" e "sentenciosa" (as marcas da "historicidade dos sonhos", portanto, uma vez que Steiner defende uma hermenêutica historicamente situada e não uma "universalidade sincrônica das equivalências simbólicas"), citando ainda, rapidamente, o modo como Freud evita aprofundar qualquer tipo de interpretação para o sonho de Descartes (em resposta de 1929 a uma carta de Maxime Leroy).