segunda-feira, 29 de maio de 2023

Os dois registros


Em um texto de 1965 intitulado "A vontade de Dante de ser poeta", Pasolini comenta expressões utilizadas na Comédia que "pertencem a um círculo linguístico de periferia ou de bairro de má fama", de "gente simples e plebeia", talvez "até entregue a uma vida bandida", utilizadas por Dante para "reviver psicológica e socialmente a realidade de suas personagens de baixa extração e sem cultura", como, por exemplo, a expressão

ed elli avea del cul fatto trombetta. (Inferno, XXI, 139)

traduzida por Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise (Cia das Letras, 2021, p. 303) da seguinte forma:

e este ali mesmo fez do cu trombeta.

E na tradução de Italo Eugenio Mauro (ed. 34):

do seu traseiro o som de uma trombeta.

Outra coisa interessante que aponta Pasolini é o modo como o relato de Dante se desenvolve em dois registros, um rápido, o outro lentíssimo. Ele dá o exemplo do episódio de Pia dei Tolomei (Purgatório, V, 130-136), que mal começa já termina, "talvez a pessoa nem perceba que o leu", como um fragmento de libreto de ópera, "mais sugere do que expõe os sentimentos e os fatos". Contudo, com a releitura, continua Pasolini, o "ritmo é o do outro registro": o ritmo lentíssimo, "atemporal", que "se inscreve num tempo que não é o da leitura e tampouco o dos fatos, mas sim o tempo meta-histórico da poesia: seu ralenti de epígrafe sublime, seu interminável dó de peito casto e quase murmurado", "fora do tempo das coisas".

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Chamados suplicantes




1) Em seu livro sobre Dante (Dante como poeta do mundo terreno), Erich Auerbach escreve que o recurso artístico preferido de Dante é a "apóstrofe", ou seja, a interrupção súbita do discurso que o orador ou o escritor faz, dirigindo-se a alguém ou a algo, real ou fictício (como a voz que fala com Auxilio Lacouture em Amuleto, de Roberto Bolaño: che, Auxilio, qué ves?); ou ainda, palavra ou sintagma nominal que iniciam um enunciado, para indicar o destinatário da mensagem (como na frase inicial do conto "Biografia de Matviéi Rodiónytch Pávlitchenko", de Isaac Babel, em O Exército de Cavalaria: "Conterrâneos, camaradas, meus irmãos de sangue!").

2) Para Auerbach, a apóstrofe em Dante não é mero artifício técnico, mas expressão natural da força do seu espírito. Esse dispositivo diz respeito à súplica e à evocação, buscando um salto abrupto da posição da escrita em direção à posição da leitura, como uma abreviação do tempo e do espaço; Auerbach diz que nos versos de Dante que fazem uso da apóstrofe é possível reconhecer uma "convocação enfática", às vezes uma "evocação clamorosa" ou um "chamado suplicante". Nesse sentido, é possível relembrar a frase de Herman Melville em Bartleby, the Scrivener: "Ah Bartleby! Ah Humanity!"; ou Paulo em sua primeira epístola aos Coríntios (15:55): Onde está, ó morte, a tua vitória?.

3) Mas é só na Divina Comédia que essa forma encontraria plena expressão, escreve Auerbach: "Seria preciso transcrever cem versos da Divina comédia, ou quem sabe mais, se quiséssemos dar uma ideia do quão rico é seu grande poema em termos de apóstrofes (...) Fazem parte dessa longa lista ordens imperiosas e pedidos ternos, súplicas em face da mais profunda dor e demandas altivas, apelos patéticos e exortações pedagógicas, saudações amigáveis e reencontros doces; algumas dessas apóstrofes são preparadas com grande antecedência, espalhando-se, após toda uma progressão de períodos, por vários versos impressionantes" (Dante como poeta do mundo terreno, trad. Lenin Bárbara, ed. 34, 2022, p. 64-65).

sexta-feira, 19 de maio de 2023

O noviço tuberculoso



1) É impressionante a presença que Thomas Bernhard conseguiu estabelecer na literatura posterior a sua obra, o modo como ele conseguiu se fazer presente em uma série de livros e autores tão diferentes entre si e que, ainda assim, compartilham Bernhard como elemento constitutivo (na linha do que escreve Borges sobre Kafka e seus precursores: é porque existe Kafka que reconhecemos certos pontos de contato em textos que, sem Kafka, não seriam aproximáveis; no caso de Bernhard, isso se dá com os textos que o sucedem). É o que aproxima W. G. Sebald, Bernardo Carvalho, Horacio Castellanos Moya e Hervé Guibert.

2) Escreve Guibert em Ao amigo que não me salvou a vida: "...incapaz de fazer o que quer que fosse, até mesmo continuar a leitura de Perturbação, de Thomas Bernhard. Eu odiava aquele Thomas Bernhard, ele era inegavelmente muito melhor escritor do que eu, no entanto não passava de um aporrinhador, um fuxiqueiro, um enchedor de linguiça, um criador de truísmos silogísticos, um noviço tuberculoso, um tergiversador evasivo, um diatribador enchedor de sacos salzburguenses, um gabarola que fazia tudo melhor que todo mundo, andar de bicicleta, escrever livros, pregar pregos, tocar violino, cantar, filosofar e odiar cotidianamente" (p. 175).

3) Um pouco mais adiante, Guibert já não se ocupa da emulação do estilo de Bernhard, mas da inserção da vida/morte do autor dentro do registro de sua própria vida/morte, como se o dispositivo de contágio tivesse ultrapassado a "literatura" e alcançado o "vivido": "Em 1º de fevereiro, Thomas Bernhard tinha apenas onze dias de vida pela frente. No dia 10 de fevereiro, peguei na farmácia do hospital Rothschild minhas cartelas de AZT, que escondi dentro do casaco ao sair, porque contrabandistas na calçada me olhavam como se quisessem roubá-las para amigos africanos, mas até hoje, 20 de março, em que faço a revisão deste livro, continuo sem ter tomado nenhuma cápsula de AZT" (p. 183).

terça-feira, 16 de maio de 2023

Muzil



1) Michel Foucault aparece como personagem no livro de Hervé Guibert, Ao amigo que não me salvou a vida (trad. Julia da Rosa Simões, Todavia, 2023), lançado em 1990 (um ano antes da morte do autor). Foucault, no entanto, aparece sob pseudônimo: Muzil, uma curiosa homenagem ao autor de O homem sem qualidades (por essa linha, é preciso ter em mente também a homenagem que Guibert faz no mesmo livro a outro autor de língua alemã: Thomas Bernhard). Foucault/Muzil, aliás, aparece no livro de Guibert como um leitor, inclusive como um leitor que declara ao narrador dois de seus livros favoritos: Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, e as Meditações, de Marco Aurélio. 

2) O narrador de Guibert fala que seu primeiro livro, La Mort propagande, lançado em janeiro de 1977, foi o que permitiu sua entrada no "pequeno círculo de amigos" de Muzil, que já havia "lançado o primeiro volume" de sua "monumental história dos comportamentos". Originalmente uma "introdução ao primeiro tomo", se torna um livro, "adiando a publicação do verdadeiro primeiro volume", "ultrapassado pelo bólide introdutório" (p. 27). "O livro mais potente e mais frágil do mundo", é como o narrador de Guibert fala do projeto de Muzil (a História da sexualidade de Foucault), "um tesouro em andamento", um "sonho" encerrado com "a certeza de sua morte iminente"; com os dias contados, "Muzil começou a reorganizar seu livro, com limpidez" (p. 29).

3) Alguns meses antes de sua morte, Muzil dá de presente ao narrador de Guibert seu exemplar das Meditações de Marco Aurélio: "enrolado em um papel de seda", a edição amarela da Garnier-Flammarion: "Marco Aurélio, como me informou Muzil ao me dar o exemplar de suas Meditações, começara seu texto com uma sequência de homenagens dedicadas a seus predecessores, aos diferentes membros de sua família e a seus mestres, agradecendo especificamente a cada um, os mortos primeiros, pelo que lhe tinham ensinado e proporcionado de favorável no restante de sua vida. Muzil, que morreria alguns meses mais tarde, me disse então que em breve pretendia escrever, nesse sentido, um elogio dedicado a mim, a mim que sem dúvida nunca pudera lhe ensinar nada" (p. 62-63). 

terça-feira, 9 de maio de 2023

A morte de Jesus



1) Toda a trilogia de Jesus de J. M. Coetzee se funda sobre a expectativa gerada pela linguagem (um tema recorrente em sua obra, que tem o protagonismo em um livro como Foe, por exemplo): desde o título, anunciando um "Jesus" que nunca se apresenta, que nunca é mencionado, que vive como significante - gerando expectativa no leitor - sem qualquer completude em direção ao factual ou ao histórico. A aposta se intensifica no último volume, A morte de Jesus, já que o título opera em um registro ambivalente no que diz respeito à expectativa: Jesus continua aí, e continua não aparecendo no romance; a morte, contudo, serve de complemento e promessa - uma faceta da expectativa que é levada a termo, que é, de certa forma, "honrada" pelo autor. 

2) De certo modo, Coetzee dá um nó na ideia de Wittgenstein de que "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo", em primeiro lugar porque desfaz essa dicotomia que torna possível a infraestrutura da noção de Wittgenstein (que linguagem e mundo são diferentes, apesar do compartilhamento de limites); em segundo lugar, porque a linguagem - na trilogia de Coetzee - indica um limite enganoso, um limite que é uma espécie de marco-moldura falso, que induz ao erro (o mundo evocado pela palavra "Jesus" não é encontrado no interior dos romances que levam esse nome); em terceiro lugar, porque o limite da linguagem no mundo criado por Coetzee na trilogia é sempre fantasmático, alucinatório: todos os personagens falam espanhol, mas o texto que lemos está escrito em inglês.

3) Julio Fabricante, Las Manos, Maria Prudencia, Las Panteras, Simón, Juan Sebastián Arroyo, Los Gatos, Modas Modernas, Pablo, Bolívar, Joaquín, Damián: os nomes indicam uma realidade que, no entanto, não é corroborada pela linguagem na qual o romance se expressa (assim como o menino David, leitor obsessivo de Don Quijote, lê em espanhol mas reconta em inglês, embora o texto "original" permaneça sempre invisível). A língua inglesa foi abandonada em um mundo prévio, que no romance não existe mais; no entanto, é justamente nessa língua obliterada (todos falam em espanhol na Nova Terra da trilogia) que o romance é escrito (a performance de escrita do romance é o cancelamento de sua premissa central). 

quinta-feira, 4 de maio de 2023

O canhoto


"Naquele momento - e recordo isso de forma tão exata como se a imagem estivesse passando de novo agora na minha frente -, pensei em como, em seus diários, Camus conta uma história dupla que tem a ver com Nietzsche e com Múcio Cévola, um herói romano do século VI a.C. Cévola foi capturado quando tentava matar o rei etrusco Porsena e, para não denunciar seus cúmplices, deu provas de seu destemor colocando a mão direita sobre o fogo e deixando que ela queimasse. De tal gesto proveio seu apelido, Cévola, o canhoto. Segundo Camus, Nietzsche se irritou quando seus colegas de escola disseram que não acreditavam na história de Cévola. E assim, aos quinze anos de idade, Nietzsche apanhou uma brasa na lareira e segurou-a na mão. Queimou-se, é claro. Nietzsche levou a cicatriz consigo durante o resto da vida.

Entrei no apartamento e cumprimentei os que estavam acordando. Cinco minutos depois, fui embora. Só alguns dias mais tarde, ao verificar aquela história em outra fonte, vi que o desprezo de Nietzsche pela dor tinha sido expresso não com uma brasa, mas com um punhado de palitos de fósforo acessos que ele colocou na palma da mão e que, quando começaram a queimar sua pele, um assustado inspetor da escola jogou os fósforos no chão"

(Teju Cole, Cidade aberta, trad. Rubens Figueiredo, Cia das Letras, 2012, p. 297)