quinta-feira, 30 de junho de 2016

O nome de Shakespeare, 1

conde de Oxford
1) No mesmo parágrafo, ainda falando do nome de Shakespeare dentro da biblioteca - no capítulo 9 do Ulisses -, Stephen Dedalus comenta: Like John O'Gaunt his name is dear to him, as dear as the coat of arms he toadied for, on a bend sable a spear or steeled argent, honorificabilitudinitatibus, dearer than his glory of greatest shakescene in the country. What's in a name? That is what we ask ourselves in childhood when we write the name that we are told is ours
2) O que há, portanto, nesse nome que vem desde a infância e que frequentemente precede até mesmo o nascimento, pergunta Dedalus (no contexto complexo da identidade de um poeta que ao longo dos séculos foi confundido com tantos outros - e Joyce, no mesmo capítulo 9, faz uma palavra-valise com algumas das identidades de Shakespeare: When Rutlandbaconsouthamptonshakespeare or another poet of the same name in the comedy of errors wrote Hamlet...). Freud era um que acreditava que a obra de Shakespeare tinha sido escrita pelo conde de Oxford. 
3) A escrita do nome é a progressiva assimilação de algo que é, ao mesmo tempo, o mais íntimo e o mais estranho - signo simultâneo de uma coerção (a imposição de uma identidade) e de uma libertação (começar a vida, começar a escrita). Lembro de Elias Canetti, o primogênito Elias de três irmãos, que no primeiro volume das suas memórias conta que tem o nome do avô paterno, o mesmo avô que amaldiçoou seu filho (o pai de Canetti) quando ele quis sair da Bulgária e partir para Londres - um ano depois, ele - o pai de Canetti, esse jovem que passou pelo mundo para unir esses dois Elias Canetti - morria de um ataque súbito do coração.  

domingo, 26 de junho de 2016

O nome de Shakespeare

1) Ainda no capítulo nove do Ulisses de Joyce, o capítulo das teorias de Stephen Dedalus sobre a identidade de Shakespeare dentro da peça Hamlet (ele próprio, Stephen, um dos elementos principais da identidade do próprio Joyce dentro de seu romance), Stephen diz: He has hidden his own name, a fair name, William, in the plays, a super here, a clown there, as a painter of old Italy set his face in a dark corner of his canvas. A ideia, portanto, de que Shakespeare espalhou autorretratos seus em suas peças, como um pintor da "velha Itália" que bota seu rosto "num canto escuro de sua tela". Joyce, cindido em seu autorretrato entre Bloom e Dedalus, comenta Shakespeare em Hamlet, cindido entre o filho e o fantasma do pai.
2) A junção do nome com o autorretrato na citação de Joyce me fez pensar na mesma junção operando em Nach der Natur, o poema de Sebald, poema em três partes: a primeira sobre o pintor Matthias Grünewald (1470-1528), a segunda sobre o explorador Georg Wilhelm Steller (1709-1746), a terceira sobre o próprio Sebald. Sebald descobre Steller em uma nota de rodapé do romance de Konrad Bayer, A cabeça de Vitus Bering, e de imediato nota a coincidência das iniciais - Winfried Georg Sebald, WGS, GWS. Grünewald chama a atenção de Sebald - além do detalhismo cruel de seus painéis - por conta de sua insistência nos autorretratos - Grünewald coloca-se em suas pinturas, e muitas vezes de forma central, não apenas no "canto escuro" da tela.
3) Nos textos que escreve e nos textos que lê, Sebald está interessado no intervalo tenso e declarado entre o ponto de onde se parte e o ponto no qual se chega - não a "imaginação criadora", o romance com diálogos, a suspensão da descrença, mas o narrador com consciência de sua parcialidade, com consciência da visão comprometida de todo relato. Por isso seu interesse pelo Kafka que transita entre os relatos, as cartas, os diários; por Thomas Bernhard e sua relação ambivalente, de ódio/amor, com a pátria e seus compatriotas (sempre que Sebald, em entrevistas, fala sobre o nazismo, o extermínio e a guerra, ele fala daquilo que fizeram "meus compatriotas"). No poema, Sebald fala de Grünewald: Das Antlitz des unbekannten Grünewald taucht stets wieder auf in seinem Werk als das eines Zeugen, ou seja, o rosto desse artista desconhecido repetidamente surge como testemunha de algo que ele não viu diretamente, mas que tenta, a partir do relato, reapresentar, reconstruir.     

quarta-feira, 22 de junho de 2016

A cama de Shakespeare

Relendo recentemente o capítulo nove do Ulisses de Joyce - o capítulo da biblioteca, Cila e Caribde -, especialmente os comentários de Stephen Dedalus e dos demais sobre Shakespeare, notei uma analogia que não lembrava: ao falarem da cama que Shakespeare legou à esposa em testamento, sua segunda melhor cama, alguém afirma que uma cama era uma propriedade bastante substancial, algo como um carro nos dias de hoje (ou seja, em 16 de junho de 1904). O carro como signo de poder aquisitivo, até como extravagância, surge em Sebald, em Os emigrantes, na família de Paul Bereyter, o professor. A época é a mesma: o pai de Paul estabelece seu empório na cidade de S. em 1900, um "empório maravilhoso", onde vendia de tudo, de café a botão de colarinho, de camisola a relógio cuco. Nos anos 20, o pai Bereyter dirigia um Dürkopp, o que causava sensação por onde passava (tal status, tal "extravagância" serve para ressaltar a infâmia que atingiu a família poucos anos depois, levando à morte do patriarca, de "raiva" e "angústia" - e cabe lembrar que foi justamente em seu carro que Sebald perdeu a vida). 

quarta-feira, 15 de junho de 2016

História policial

1) História policial, de Imre Kertész, foi finalizado em 1975 e publicado na Hungria em 1977, sob o regime totalitário comunista. Por conta disso, a trama - a confissão de um ex-torturador, agora preso, que revisita sua "carreira" a partir de sua cela e com o auxílio dos diários de uma de duas vítimas - foi transferida da Hungria para um país sem nome da América Latina. Nesse momento, vale lembrar a célebre frase de Roberto Bolaño sobre a América Latina, espelho viciado da Europa:
Latinoamérica fue el manicomio de Europa así como Estados Unidos fue su fábrica. La fábrica está ahora en poder de los capataces y locos huidos son su mano de obra. El manicomio, desde hace más de sesenta años, se está quemando en su propio aceite, en su propia grasa. (El gaucho insufrible, p. 168).
2) Há muito a ser dito sobre o tema dos relatos nas celas de prisão, retrospectivas de vida sob o signo da morte (Sócrates no Fédon, Casanova, Dostoiévski no instante de sua morte), sobre a natureza de ficção radical do totalitarismo, que Kertész tão bem capta com suas narrativas em abismo, seus jogos de espelhos, seus personagens de identidades postiças (e "postiço" aqui serve para relembrar aquela célebre barba postiça de um dos relatos de Danilo Kis), conjunto de procedimentos que ecoa na América Latina em Ricardo Piglia, em seu Respiração artificial.
3) No capítulo de Borges oral dedicado ao conto policial, Borges fala que nosso mundo é caótico, sem regras, e que um dos poucos redutos da ordem é precisamente o conto policial: ele ainda precisa do começo, do meio e do fim e, com isso, nos assegura, nos tranquiliza. Antonio Martens, o policial de Kertész, o detetive que confessa em História policial (ainda resta investigar a ambivalência dos termos, detetive, policial, que deslizam, oscilam um em direção ao outro - o original de Kertész chama-se Detektívtörténet), vive o caos da burocracia totalitária, sua perspectiva é interna (exatamente como faz Patrick Modiano em Ronda da noite). O que organiza o caos é o relato, a confissão, é justamente a História policial, e aí vemos a precisão do título - Martens conta sua história com início, meio e fim, e com direito a uma revelação final, que (esse é o traço genial da novelinha de Kertész) não apenas não corrobora tudo que vinha sendo construído até então como implode a lógica totalitária, seu arremedo de eficácia, arremessando tudo, mais uma vez, ao caos.  

sábado, 11 de junho de 2016

Vida póstuma, 3

Um amigo japonês disse-me que o famoso santuário imperial em Ise se mantém inalterado desde o século VII - idêntico ao que era quando foi construído pela primeira vez. Para os ocidentais, é claro, ele não parece assim tão velho. É que, segundo a tradição corrente, os edifícios em Ise têm sido reconstruídos (em locais alternados) a cada vinte anos, exatamente da mesma maneira - usando-se os mesmos instrumentos antigos e os mesmos materiais -, e cada passo do processo é marcado pelos rituais antigos apropriados. Mas é óbvio que os instrumentos não poderiam ser exatamente os mesmos, poderiam? Eles não teriam durado treze séculos. E o que significa dizer que os materiais são os mesmos, visto que a cada vez se usa madeira nova? E de que modo duas performances rituais poderiam jamais ser "a mesma"?

(Na verdade, o ciclo de reconstrução foi certa feita interrompido por mais de 150 anos, e os edifícios e instrumentos sofreram algumas mudanças. Mas esta não é a tradição ou percepção japonesa dominante. A tradição diz que eles não mudaram, e a percepção é de que são os mesmos).

Um crítico de arte ocidental explica que os edifícios reconstruídos não são "réplicas", mas sim "Ise recriado".

Nosso conceito da continuidade de uma floresta talvez seja algo de mais próximo da concepção xintoísta, já que ele envolveria de fato a natureza: a floresta amazônica vem existindo há séculos ou milênios, mesmo se todas as árvores originais pereceram e foram substituídas várias vezes. Em todo caso, é óbvio que a identidade é uma construção relativa, baseada em uma valoração seletiva de similaridades e diferenças. Em Ise, é irrelevante que os materiais tenham sido renovados - e assim não sejam os mesmos aos olhos ocidentais -, contanto que permaneçam sendo do mesmo tipo e que sua combinação obedeça ao antigo regime técnico e ritual. Segundo tais critérios, aquilo que chamamos Abadia de Tinturn [Famosas ruínas, situadas no País de Gales, de igreja reconstruída no século XIII, pertencente à abadia fundada no século anterior por monges cisterciences. Inspirou o poema de Wordsworth, "Lines". N.T.] não poderia receber tal nome, a despeito da "autenticidade" ou da idade de suas pedras. Não seria a Abadia de Tinturn, porque é uma ruína.

Em sua Vida de Teseu, Plutarco conta a seguinte história sobre o navio em que o herói retornou a Atenas, após ter vencido o Minotauro: 

A galé de trinta remos na qual Teseu velejou com os jovens e retornou são e salvo foi preservada pelos atenienses até a época de Demétrio de Falera (317-307 a.C.). De tempos em tempos, removiam o madeirame velho e o substituíam por um novo, de modo que o navio tornou-se uma ilustração clássica, para os filósofos, da polêmica sobre o crescimento e a mudança, alguns argumentando que ele continuava o mesmo, outros defendendo que se transformara em uma embarcação distinta.

O que pensar, assim, da observação tão popular segundo a qual "a cultura está sempre em transformação"?

(Marshall Sahlins, Esperando Foucault, ainda. Trad. Marcela Coelho de Souza e Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 13-14).
*
As Vidas de Plutarco são material inesgotável na investigação sobre ecos, repetições, vidas póstumas. A maioria delas é organizada em duplas - um grego e um romano, lado a lado (Teseu, por exemplo, vem com Rômulo). Napoleão, esse estrategista da repetição, foi leitor aplicado de Plutarco. Mas as Vidas - como tentei elaborar algumas vezes - de Plutarco retornam nas Vidas de Marcel Schwob, Giorgio Vasari, na Sinagoga de Wilcock, nas vidas infames de Foucault, nas vidas minúsculas de Pierre Michon, e não apenas em sua história universal da infâmia, mas também no Pierre Menard de Borges, esse outro estrategista da repetição, que não quer copiar o Quixote, e sim fazer coincidir seu texto com aquele de Cervantes (Borges traz a lição textual da vida póstuma: o sentido não é inerente, essencial, substancial; as condições históricas de enunciação modificam todos os enunciados, por isso o estilo de Menard é rebuscado, arcaizante, e o estilo de Cervantes, comum, corrente, não-inventivo).  

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Vida póstuma, 2

Réplica da estátua de Napoleão-Trajano
O coronel Chabert de Balzac, morto-vivo, diz que irá à praça Vendôme, "até o pé da coluna da praça Vendôme", que irá gritar seu nome e seus feitos e que, diante disso, "o bronze me reconhecerá!". É fascinante como Balzac, sutil e rapidamente, conjuga esses dois destinos, essas duas fábulas da vida póstuma - um coronel que retorna como mendigo, os mais de mil canhões de russos e austríacos da Batalha de Austerlitz transformados na Colonne Vendôme. A coluna foi construída em 1810 para comemorar a batalha vencida por Napoleão (e pelo coronel Chabert, e por tantos outros), a Batalha dos Três Imperadores, em 2 de dezembro de 1805. Mas a Colonne Vendôme é também um resgate e uma retomada da Coluna de Trajano, construída de 107 a 113 em Roma para comemorar os feitos do Imperador Trajano, especialmente a vitória sobre os Dácios. A primeira estátua de Napoleão posta no alto da coluna, em 1810 (que foi retirada em 1814 e derretida em 1818), retratava o intrépido corso vestido à romana, à maneira dos Césares
Coluna de Trajano em desenho de 1575
É digno de nota que essa primeira estátua, de Napoleão-Trajano, tenha sido derretida em 1818 e seu material destinado à construção da estátua de Henrique IV, Henri le Grand, rei da França de 1589 a 1610. A primeira estátua de Henrique IV foi inaugurada em 1614, tendo sido destruída durante a Revolução Francesa. Com a queda de Napoleão e o advento da Restauração da Monarquia, uma segunda estátua de Henrique IV é feita em 1814 (ironicamente, o cavalo utilizado como modelo para essa estátua foi retirado por Napoleão do Portão de Bramdenburgo, em Berlim - eram quatro cavalos de bronze, e foram todos enviados a Paris em 1806). A terceira estátua, que ainda está lá, foi feita em 1818 com o bronze do Napoleão-Trajano derretido (relembrando Paul Valéry: le lion est fait de mouton assimilé).
Estátua atual de Henrique IV, feita do bronze de Napoleão-Trajano