sexta-feira, 31 de julho de 2020

Com Borges, 1


1)
Apesar da vasta cultura, Borges conseguia ser também bastante restritivo em suas preferências, por vezes até intransigente. Manguel (em seu livro Com Borges) afirma que se trata de uma fidelidade aos temas da juventude, “que retomava diversas vezes, em décadas de destilação, interpretação e reinterpretação” (mastigando a tradição, ruminando). Acrescenta, no entanto, que é possível construir uma história da literatura “perfeitamente aceitável” com os autores rejeitados por Borges sem grandes explicações (Stendhal, Tolstói e Thomas Mann entre eles). 

2) Nesse aspecto, Borges é muito parecido com outro grande escritor – contemporâneo seu –, Vladimir Nabokov, também bastante enfático em suas preferências (e com recusas por vezes tão absurdas como aquelas de Borges). Mesmo se tratando de um livro breve, a imagem que surge de Borges através das memórias de Manguel é nuançada e complexa. Borges não é apenas o autor genial, é também o homem cego inseguro preso à rotina, ou o amigo generoso e tímido de Bioy Casares (cujo diário exclusivamente dedicado a Borges já é célebre pela quantidade de entradas nas quais anuncia que Borges foi jantar em sua casa...). 

3) No fim das contas, a literatura é também o ponto de convergência dessas múltiplas identidades. “Corneille ou Shakespeare, Homero ou os soldados de Hastings – ler é, para Borges”, escreve Manguel, “uma maneira de ser todos esses homens que ele sabe que nunca será: homens de ação, grandes amantes, guerreiros”. A posteridade de um escritor passa por essa capacidade de, não sendo outros, tornar obras alheias disponíveis aos leitores.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Com Borges


1)
 Com Borges é o livro que traz um resgate autobiográfico de um período no qual Alberto Manguel ainda não era um autor, mas somente um adolescente que se transforma em leitor de Jorge Luis Borges. De 1964 a 1968, em algumas noites da semana, Manguel se encaminhava ao apartamento de Borges para ler em voz alta, uma vez que o autor, cego, já não conseguia fazê-lo sozinho. Juntos, revisitavam antigos volumes da biblioteca, e o que para Borges era um reencontro, para o jovem Manguel era o primeiro contato com inúmeras referências. 

2) O dono da casa ensina ao adolescente, quase sem querer, todo um método de leitura atenta e detalhista – Borges ensinava, escreve Manguel, “não apenas compartilhando comigo sua paixão por esses grandes escritores, mas também me mostrando como trabalhavam, desmontando os parágrafos com a intensidade amorosa de um relojoeiro”. Assim como a de todos os leitores, a biblioteca de Borges, completa Manguel, “era sua autobiografia”. “Para Borges, o âmago da realidade estava nos livros: em ler livros, escrever livros, conversar sobre livros”, escreve Manguel, e continua: “De maneira visceral, ele sabia que dava continuidade a um diálogo iniciado havia milhares de anos, o qual ele acreditava que nunca terminaria. Livros restauravam o passado”. 

3) Além disso, Borges renovou a língua espanhola: seus métodos de leitura, escreve Manguel, permitiram que desse ao espanhol “características de outras línguas”, como “expressões do inglês” ou a “habilidade alemã de segurar o sujeito até o fim da frase”. Nesse aspecto, é possível relembrar o caso de Juan Rodolfo Wilcock, borgeano inclusive nesse aspecto da renovação da língua espanhola: depois de passar do espanhol para o italiano em fins da década de 1950, Wilcock transforma toda língua em língua estrangeira, mesmo a língua materna (de resto, era um esforço que vinha se consolidando desde antes, quando Wilcock, ainda em Buenos Aires, já era tradutor de Kafka e Eliot, por exemplo).

terça-feira, 28 de julho de 2020

A fala livresca


1)
Quando o Quixote fala, no romance de Cervantes, sua fala é livresca: sua mente está tomada pelos romances que leu, sua identificação é tamanha com aquilo que leu (com a tradição literária), que seu discurso oral é colonizado pelo escrito. Ele fala em citações, assim como o Montano de Vila-Matas, séculos depois (a segunda parte do Quixote é de 1615; O mal de Montano, o romance de Vila-Matas, é de 2002).

2) Toda a situação (da possessão pela tradição) deve ser levada em conta para se pensar a obra de Flaubert, por exemplo. Em carta de 22 de novembro de 1852 para Louise Colet, além de falar mal de Stendhal - "Eu conheço O vermelho e o negro, que acho mal escrito e incompreensível, em relação aos personagens e às intenções" -, Flaubert também enfatiza a centralidade do Quixote para seu próprio trabalho: "O que há de prodigioso em Dom Quixote é a ausência de arte e essa perpétua fusão de ilusão e realidade que o torna um livro tão cômico e tão poético. A seu lado todos os outros são anões!" (Cartas exemplares, trad. Duda Machado, Imago, 1993, p. 88).

3) Madame Bovary, lançado por Flaubert em 1856, é um desdobramento dessa possessão quixotesca: quando Emma fala, ela cita os romances que leu (essa colonização da mente de Emma pela tradição literária é invertida e ataca a própria tradição literária quando entra em circulação a noção do bovarismo, a fuga da realidade por via da leitura). Salammbô, de 1862, é todo ele um romance-monstro (muito bem escondido sob uma pátina de narração realista), carregado de tradição e de citações - as milhares de páginas que Flaubert leu como preparação durante anos. Bouvard et Pécuchet, publicado postumamente em 1881, é o clímax do processo - não só os personagens estão carregados de citação e de tradição, como o Quixote, como Flaubert também reconfigura o procedimento estruturante do romance de Cervantes: a dupla dialógica, Sancho e Quixote, Bouvard e Pécuchet.  

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Fluxo do tempo


O anti-historicismo coloca apenas as informações históricas em nova perspectiva. Permite mostrar que efetivamente existem elementos virgens, (em certo sentido), em todo fenômeno, (e mais especialmente nas obras de arte), que o tornam supra-histórico (a saber: original), e neste sentido efetivamente caíram "do céu". Uma das vantagens desse novo anti-historicismo é justamente a de chamar novamente a atenção para o caráter supra-histórico da obra de arte, caráter este que o historicismo obscurece. Embora possa ser explicada uma catedral gótica historicamente, e embora essa explicação seja indispensável para a compreensão do fenômeno, não o esgota. Há algo na catedral que nos toca por cima do fluxo do tempo, este algo é exatamente aquilo que importa: o aspecto estético da obra. 

Vilém Flusser, "Gênese e estrutura", Suplemento Literário, O Estado de São Paulo, 04 de janeiro de 1969.

*

O uso da citação acima dá a ilusão que eu, pessoalmente, fui ao Suplemento Literário buscar deliberadamente um texto de Flusser ainda não disponibilizado em livro. Não é o caso: o encontro da citação se deu pelo Google, uma pesquisa-flanagem que envolveu o nome de Flusser (a pós-história, a cronologia, o anacronismo...) e o contato com algumas palavras-chave como "estruturalismo", "desconstrução" ("gênese" e "estrutura" são termos que o próprio Derrida usa em sua leitura da fenomenologia, por exemplo).

Existe algo na obra de arte que sempre escapa à história e, paradoxalmente, é apenas a concatenação das várias experiências diante da obra que dá a exata medida dessa insuficiência (e tal concatenação só é observável na perspectiva histórica - ou seja, perceber como Shakespeare, Rousseau e Borges usaram a Bíblia, por exemplo). Circulamos no espaço instaurado também por Joyce no Ulisses, com a célebre frase de Stephen Dedalus: History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake. Ou seja, um pesadelo que o afasta daquilo que Flusser (problematicamente) de "elementos virgens" ou "originais".

segunda-feira, 20 de julho de 2020

O grão esvaziado


"Facundo é um livro impossível de classificar; é um estudo sociológico da cultura argentina, um panfleto político contra a ditadura de Juan Manuel de Rosas, uma investigação filológica das origens da literatura argentina, uma biografia do caudilho de província Facundo Quiroga, a autobiografia de Sarmiento, uma nostálgica evocação de um exilado político de sua terra natal, um romance baseado na figura de Quiroga; para mim é algo como nossa Fenomenologia do espírito. Como queira que se considere este livro, Facundo é um desses clássicos de influência penetrante e duradoura, pertencendo a várias disciplinas ao mesmo tempo. O fato de que Sarmiento tenha chegado a ser presidente da Argentina e aplicado políticas que repercutiram enormemente no curso da história de seu país contribui à condição canônica de seu livro".

(Roberto González Echevarría, Myth and Archive: A Theory of Latin American Narrative, Cambridge Press, 2006, p. 97-98)

*

1) É digno de nota que o movimento de tomar a figura de Caliban (o servo disforme do mago Próspero, na peça A tempestade de Shakespeare) como símbolo da cultura latino-americana tem sua origem em Sarmiento, e permanece em circulação ainda hoje;

2) Para Sarmiento, Facundo é também símbolo da cultura latino-americana em sua peculiar relação com o poder, a violência e a lei, como se a figura do caudilho ao mesmo tempo fizesse uso da História e fosse usada por ela (não é por acaso que uma das principais referências externas mencionadas e utilizadas por Sarmiento seja Napoleão);

3) O Hegel da Filosofia da História permite a ligação direta entre o Facundo de Sarmiento e Napoleão: o "indivíduo histórico mundial" de que fala Hegel condensa em si objetivos pessoais e a vontade do "Espírito do Mundo" - mas quando alcançam seus objetivos, "caem como vagens esvaziadas do grão. Morrem cedo como Alexandre, são assassinados como César ou exilados para a ilha de Santa Helena como Napoleão" (Hegel, Filosofia da História, trad. Maria Rodrigues e Hans Harden, Ed. UnB, 1999, p. 33-34). 

terça-feira, 14 de julho de 2020

Egito


1) Em um filme de Billy Wilder de 1943, Five Graves to Cairo, o dispositivo da "carta roubada" (criado por Edgar Allan Poe em 1844) é mais uma vez solicitado, agora tendo como cenário o norte da África durante a II Guerra Mundial (britânicos contra o temido Afrika Korps de Rommel). É Rommel quem indica o mapa da região para o sujeito que ele acredita ser seu espião, afirmando que os ingleses fazem força para perceber o que está escondido (criptografado, embaralhado) e não conseguem ver o que está na superfície, o óbvio, o mais evidente. A "carta roubada" de Rommel são as próprias letras da palavra E G Y P T escrita no mapa (cada letra indica a localização de uma carga de suprimentos nazistas enterrados antes da guerra).

2) Rommel fala aos oficiais britânicos: "vocês tem o sexto sentido, nós temos apenas cinco - mas nós usamos!". A frase está diretamente ligada ao uso do dispositivo "carta roubada": os nazistas não inventam nem improvisam, utilizam aquilo que está à mão, disponível (o que está longe de corresponder à situação histórica, como prova a máquina Enigma). A visão do mapa se combina com uma cena anterior, na qual Rommel usa saleiros para explicar a estratégia de progressão nazista pelo norte da África: de um lado a outro, da esquerda para a direita, como quem lê ou escreve, nazistas perseguindo britânicos, britânicos perseguindo nazistas (a composição das duas cenas faz pensar no "paradigma indiciário" de Ginzburg, na relação entre narrativa e caça, entre perseguição e capacidade de "gerar sentido" - para Ginzburg, o caçador que lê os rastros da presa é como o especialista em arte que lê os detalhes dos quadros (lóbulos, dedos), como Sherlock Holmes, como Freud lendo os lapsos e os chistes).

3) Outro detalhe do filme evoca as ideias de Edward Said em Cultura e imperialismo, ou seja, a relação tradicional entre poder político e poder cultural (desde as viagens de Heródoto até a Commission des Sciences et des Arts de Napoleão no Egito). Descobrimos que um professor e arqueólogo anteriormente mencionado é o próprio Rommel disfarçado (mais uma carta roubada), que antes da guerra foi ao norte da África com a desculpa da "ciência", mas cuja missão era enterrar toda aquela carga de suprimentos para uma guerra que ainda não havia começado (dos tantos arqueólogos alemães podemos lembrar Heinrich Schliemann, um dos heróis de infância de Freud, que descobriu Troia em 1873). 
    

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Entrevistas


Em sua entrevista para a Paris Review (publicada em 2006), Javier Marías fala de seu breve período morando nos Estados Unidos, ainda na infância. "Devia ser 1955 ou 1956", diz ele, acrescentando que ele e seu irmão não frequentaram a escola porque havia uma epidemia de pólio e a mãe achou melhor ficar em casa. Nascido em 1951, Marías era ainda bem pequeno. Essa breve informação me fez pensar em Philip Roth - em primeiro lugar por conta da sua estreia na ficção, em 1959, com Goodbye, Columbus, e em segundo lugar por conta do papel central que ocupa a pólio em outro de seus romances, Nemesis, de 2010. 

*

Ian McEwan, também na entrevista para a Paris Review (publicada em 2002), fala de seu começo como escritor no recém-criado programa de escrita criativa da Universidade de East Anglia. McEwan chega lá em 1970, o primeiro sujeito a se candidatar para o programa. Ele escreve um conto a cada três ou quatro semanas e encontra seu supervisor, Malcolm Bradbury, em um bar de Norwich (é também o período, afirma McEwan, no qual ele entra em contato pela primeira vez com o trabalho de vários escritores, entre eles Philip Roth e Saul Bellow). Esse conjunto de informações me fez pensar de imediato em W. G. Sebald, que chega à mesma Universidade de East Anglia no mesmo ano de 1970, na condição de lecturer: "No final de setembro de 1970, pouco antes de assumir meu cargo em Norwich, no leste da Inglaterra, eu e Clara fomos de carro até Hingham em busca de um lugar para morar", é o que diz a primeira frase de Os emigrantes.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Kraus, Flaubert


1)
Karl Kraus, portanto, com seu uso peculiar (crítico, irônico) da citação, incide diretamente sobre o trabalho que pouco adiante tanto Walter Benjamin quanto Brecht realizarão a partir da citação (no caso de Brecht, desde os exemplos óbvios dos poemas e das peças que citam elementos da imprensa contemporânea, até o exemplo talvez mais bem acabado dos seus Diários de trabalho, nos quais a citação está tanto no texto quanto na imagem).

2) Para Kraus, a citação é fundamental tanto para seu estilo de polemista nos números da revista Die Fackel (torcendo e implodindo as palavras alheias) quanto para a construção de sua enorme peça, sua obra-prima construída com a citação dos dizeres de centenas de personagens, Os últimos dias da humanidade. Roberto Calasso, em Os 49 degraus, escreve sobre a peça de Kraus: "Para escrever Os últimos dias da humanidade, Kraus não precisou de quase nenhum acréscimo ou mudança de perspectiva, em relação às suas crônicas locais. Recolheu seus materiais costumeiros e deixou que sobressaíssem contra um novo fundo. (...) A epifania que havia fulgurado Kraus é a mesma que havia retraído e tornado febris os últimos anos de Flaubert: a prodigiosa erupção da bêtise como encaminhamento de uma nova era" (p. 162-163).

3) Calasso cita Flaubert porque indica o trabalho preparatório ao romance (inacabado, póstumo) Bouvard et Pécuchet como "o equivalente em tempo de paz" às 792 páginas da peça de Kraus (o material de Flaubert é composto de citações - substrato não só do romance, mas também do "dicionário de ideias feiras" que o encerra - e enche oito tomos de 300 páginas cada, disponíveis para consulta no Centre Flaubert). A articulação Flaubert-Benjamin não poderia estar mais clara, fascinado como era este último por Paris como "capital do século XIX". Mas o elo que se dá entre Flaubert-Kraus-Benjamin-Brecht só pode ser apreendido quando se coloca em primeiro plano a questão da citação (próprio x alheio; tradição x subjetividade; originalidade/aura x procedimento/reprodução).