1) Apesar da vasta cultura, Borges conseguia ser também bastante restritivo em suas preferências, por vezes até intransigente. Manguel (em seu livro Com Borges) afirma que se trata de uma fidelidade aos temas da juventude, “que retomava diversas vezes, em décadas de destilação, interpretação e reinterpretação” (mastigando a tradição, ruminando). Acrescenta, no entanto, que é possível construir uma história da literatura “perfeitamente aceitável” com os autores rejeitados por Borges sem grandes explicações (Stendhal, Tolstói e Thomas Mann entre eles).
2) Nesse aspecto, Borges é muito parecido com outro grande escritor – contemporâneo seu –, Vladimir Nabokov, também bastante enfático em suas preferências (e com recusas por vezes tão absurdas como aquelas de Borges). Mesmo se tratando de um livro breve, a imagem que surge de Borges através das memórias de Manguel é nuançada e complexa. Borges não é apenas o autor genial, é também o homem cego inseguro preso à rotina, ou o amigo generoso e tímido de Bioy Casares (cujo diário exclusivamente dedicado a Borges já é célebre pela quantidade de entradas nas quais anuncia que Borges foi jantar em sua casa...).
3) No fim das contas, a literatura é também o ponto de convergência dessas múltiplas identidades. “Corneille ou Shakespeare, Homero ou os soldados de Hastings – ler é, para Borges”, escreve Manguel, “uma maneira de ser todos esses homens que ele sabe que nunca será: homens de ação, grandes amantes, guerreiros”. A posteridade de um escritor passa por essa capacidade de, não sendo outros, tornar obras alheias disponíveis aos leitores.