1) Quando o Quixote fala, no romance de Cervantes, sua fala é livresca: sua mente está tomada pelos romances que leu, sua identificação é tamanha com aquilo que leu (com a tradição literária), que seu discurso oral é colonizado pelo escrito. Ele fala em citações, assim como o Montano de Vila-Matas, séculos depois (a segunda parte do Quixote é de 1615; O mal de Montano, o romance de Vila-Matas, é de 2002).
2) Toda a situação (da possessão pela tradição) deve ser levada em conta para se pensar a obra de Flaubert, por exemplo. Em carta de 22 de novembro de 1852 para Louise Colet, além de falar mal de Stendhal - "Eu conheço O vermelho e o negro, que acho mal escrito e incompreensível, em relação aos personagens e às intenções" -, Flaubert também enfatiza a centralidade do Quixote para seu próprio trabalho: "O que há de prodigioso em Dom Quixote é a ausência de arte e essa perpétua fusão de ilusão e realidade que o torna um livro tão cômico e tão poético. A seu lado todos os outros são anões!" (Cartas exemplares, trad. Duda Machado, Imago, 1993, p. 88).
3) Madame Bovary, lançado por Flaubert em 1856, é um desdobramento dessa possessão quixotesca: quando Emma fala, ela cita os romances que leu (essa colonização da mente de Emma pela tradição literária é invertida e ataca a própria tradição literária quando entra em circulação a noção do bovarismo, a fuga da realidade por via da leitura). Salammbô, de 1862, é todo ele um romance-monstro (muito bem escondido sob uma pátina de narração realista), carregado de tradição e de citações - as milhares de páginas que Flaubert leu como preparação durante anos. Bouvard et Pécuchet, publicado postumamente em 1881, é o clímax do processo - não só os personagens estão carregados de citação e de tradição, como o Quixote, como Flaubert também reconfigura o procedimento estruturante do romance de Cervantes: a dupla dialógica, Sancho e Quixote, Bouvard e Pécuchet.
Uma outra correspondência observada na comparação entre os dois romances relaciona-se ao fato de que, tanto em Dom Quixote quanto em Bouvard et Pecuchet, a utopia megalomaníaca que move as personagens, ao final, não resiste às intempéries da realidade, por assim dizer, rs: Quixote renuncia à cavalaria; Bouvard e Pecuchet, à pretensão de abarcar o mundo por meio de empreendimentos enciclopédicos, rs; Dom Quixote volta a ser Alonso Quijano; Bouvard e Pecuchet, "homenzinhos",rs.
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