sábado, 31 de maio de 2014

Vanishing Point, 5

Joseph Cornell em sua casa no Queens
Algo da atmosfera da poética de Markson lembra Charles Simic - não só as citações, mas esse contato ao mesmo tempo melancólico e resignado com a tradição, com laivos sutis de ironia e enfado (j'ai lu tous les livres, etc). E se lembra Simic, certamente lembrará Joseph Cornell (Simic sobre Cornell, aqui), todos reunidos sob a atmosfera da mesma cidade:
Joseph Cornell lived in the same house in Queens for fifty-four years. (p. 97)
Mas a menção a Cornell é também a chance de Markson fazer aquilo que faz tão bem - o contraponto, o salto vertiginoso de uma coisa a outra (o salto geográfico e temporal que se torna doméstico na passagem de uma ficha a outra, pois era assim que ele organizava os livros antes de "escrevê-los", uma ficha atrás da outra, dispostas em sequência em uma tampa de caixa de sapatos), e imediatamente depois de Cornell ele cita Descartes:
Descartes, in Holland, had twenty-four different addresses in twenty.
O que evoca, por sua vez, aquela velha discussão sobre os vários endereços de Baudelaire em Paris, fato comentado por Walter Benjamin na chave da deambulação urbana e da flânerie poética, das ruas misteriosas, do mapa da cidade como local do crime, do homem da multidão, etc.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Vanishing Point, 4

No célebre ensaio sobre autobiografia (as de-facement), Paul de Man sugere que a morte "preside na casa da autobiografia", pois o que está em jogo no impulso autobiográfico é o recalcamento da presença plena, da possibilidade de ligar o autor ao indivíduo sem sobras, sem restos. Eis novamente o vanishing point de David Markson, a autobiografia como vanishing point, o autor como aquele que conta a própria vida a partir dos livros que leu, como sugeriu Ricardo Piglia. 
Selah, which marks the ends of verses in the Psalms, but the Hebrew meaning of which is unknown.              
And probably indicates no more than pause, or rest.   
         
Why does Author wish it implied more - or might stand for some ultimate effacement, even? (p. 178).
Junto com Paul de Man, Markson também trabalha em direção a um enfraquecimento da autoridade transcendente do autor, e o faz a partir de uma superexposição dessa autoridade (algo que alcança justamente com esse frenesi da citação, em que a inventividade tradicional - "autoritária" - é recusada em favor da montagem, da justaposição e da coleção).

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Vanishing Point, 3

É certo que precisamente esse quadro de Rogier van der Weyden, Retrato de Francesco d'Este, foi visto por David Markson, e provavelmente visto muitas vezes - isso porque o quadro está no Metropolitan desde 1931, portanto desde quando Markson tinha quatro anos de idade, portanto o acompanhando ao longo de toda sua vida. Pois um dos pintores que Markson cita, escolhido por sua ausência de assinatura, escolhido por esse paradoxo que envolve a fama, o nome e o anonimato, estava lá, absolutamente disponível ao longo de toda sua vida. Os museus em geral, e o Metropolitan em particular, faziam parte da vida de Markson, assim como fizeram parte da ficção - uma das primeiras entradas (a segunda, para ser mais preciso) de Vanishing Point envolve um museu de Nova York:
A seascape by Henri Matisse was once hung upside down in the Museum of Modern Art in New York - and left that way for a month and a half. (p. 01).
Markson morava no West Village, na 11th Street, e podia fazer uma infinidade de caminhos até o Metropolitan, para ver seu quadro predileto de Rogier van der Weyden, Retrato de Francesco d'Este, não assinado e incorporado ao museu em 1931. Será que Markson sabia que somente o reverso do quadro podia oferecer algo próximo de uma identidade? Será que sabia que van der Weyden havia registrado o brasão da família de Francesco d'Este na parte de trás da pintura?

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Vanishing Point, 2

Rogier van der Weyden, "Retrato de Francesco d'Este", 1460
Em Markson, o escritor encontra seu vanishing point ao se transformar ou ao se consolidar como leitor, e vice-versa. Talvez esse vanishing point, tão característico da poética de Markson, seja esse momento de suspensão impossível, essa aporia, em que a escritura se mostra como uma forma parasitária da leitura - mas a leitura só se torna presente, só pode ser percebida, apreendida, através da escritura. O cobertor é muito curto, e Markson passa frio a noite toda.
No painting by Rogier van der Weyden is signed.
No painting by Hugo van der Goes is signed. (p. 77)
De novo e sempre essa tematização, esse resgate do vanishing point, do ponto de desaparecimento de qualquer reivindicação pela posse do texto - a assinatura, a presença. Embora, por outro lado, seja precisamente a dimensão do nome (e, portanto, da posse) que permite o jogo de Markson, seu jogo de referências e de justaposição - se a escritura é também leitura, o desmoronamento da posse (a falta de assinatura, por exemplo) é também e simultaneamente sua celebração (os incontáveis nomes próprios célebres que Markson elenca).

domingo, 18 de maio de 2014

Vanishing Point, 1

Quando se vai chegando ao final do livro, fica claro que o vanishing point é esse momento de desaparição da autoria no caos da leitura, no caos das referências, mas uma desaparição metafórica que se confunde com a desaparição material do escritor, do Autor - que é o termo que Markson utiliza ao longo do livro ao se referir a si mesmo (como usa Reader em Reader's Block, por exemplo; ou Writer em This is not a novel). Em alguns momentos ao longo do livro essa desaparição é ensaiada já na incorporação de fragmentos alheios, apresentados sem a mediação da voz do Autor, como no verso de Mallarmé, que permanece anônimo:
La chair est triste, hélas! et j'ai lu tous les livres. (p. 114)
Há muito a dizer sobre a emergência desse tema blanchotiano na poética de Markson, o tema do desaparecimento - como faremos para desaparecer?, de O livro por vir, que Vila-Matas usa como epígrafe de O mal de Montano (que funciona como uma espécie de etapa anterior ao gesto de "exaustão autoral" de Markson em sua quadrilogia). Porque, de certo modo, o vanishing point é precisamente a tradução tanto desse como faremos para desaparecer? como desse livro por vir, que se anuncia quando Foucault pergunta, através da presença velada de Beckett, o que importa quem fala?.  

terça-feira, 13 de maio de 2014

Vanishing Point

David Markson, 2007
Dentre os pouquíssimos - raríssimos - escritores contemporâneos que David Markson cita em Vanishing Point está Cormac McCarthy. Ou seja, escritores ainda vivos, atuantes no momento em que Markson escreve (a primeira edição de Vanishing Point é de 2004). Além disso, McCarthy atua no mesmo campo de Markson, no mesmo horizonte de recepção, a literatura norte-americana. E McCarthy surge no livro de Markson sob um viés negativo (como outrora também apareceu Harold Bloom), sob talvez o pior viés possível para Markson, que é o viés do mau leitor. Escreve Markson: I don't understand them. To me that's not literature. Said Cormac McCarthy of Henry James and Marcel Proust. (Vanishing Point. Shoemaker & Hoard, 2004, p. 86). Parece que de fato McCarthy disse algo parecido em uma entrevista ao The New York Times. E como é hábito em Markson, tudo gira em torno da leitura, da absorção da literatura e do mundo (como no caso de Bloom, que se tratava de uma anedota a respeito da quantidade de páginas que o crítico conseguia ler por hora).