Entre Homero e toda teologia sucessiva, incluída a de Hesíodo, subsiste uma divergência radical, que provoca escândalo.
Homero, como é referido em Plutarco, recusa-se a distinguir entre deuses e daímones: "parece usar os dois termos indiferentemente e fala dos deuses como daímones". Isso impede de descarregar sobre os daímones as ações tenebrosas dos deuses e veta qualquer concepção de uma escala do ser em que, através de purificações sucessivas, seja possível ascender até o divino e este possa ordenadamente descer até o homem.
Tal concepção, que é o fundamento iniciático de todo platonismo, já se tornara possível graças à subdivisão que Hesíodo fizera dos seres em quatro categorias: homens, heróis, daímones, deuses.
Homero, ao contrário, ignora a mediação. Para ele, dizer herói é como dizer genericamente homem, não sente falta de provocar a intervenção de uma classe autônoma de daímones. Aqui, os extremos são adjacentes: nada suaviza a violência do contato. Porém, é possível ler, sempre em Plutarco [O crepúsculo dos oráculos]: "aqueles que não admitem a estirpe dos daímones tornam estranhas entre eles e sem condições de serem misturadas as coisas dos homens e as dos deuses, eliminando, como disse Platão, 'a natureza interpretante e administradora', ou então nos obrigam a uma mistura geral e intrometem o deus entre as paixões e os negócios humanos, arrastando-o para baixo segundo as necessidades do momento, como se costuma dizer das mulheres de Tessália, capazes de trazer a luz para a terra".
Talvez em nenhuma outra como nesta passagem do tardio e sábio Plutarco tenha sido enunciado o irremovível escândalo de Homero, o inimigo da mediação. Quando os padres cristãos praguejam contra as torpezas homéricas, não fazem outra coisa a não ser renovar, na essência, o escândalo de Platão e de seus descendentes, lucidamente organizados nas palavras de Plutarco.
O curso da civilização grega surge então como o processo no qual se torna progressivamente intolerável a autoridade fundadora: o próprio Homero.
(Roberto Calasso, As núpcias de Cadmo e Harmonia, trad. Nilson Moulin, Cia das Letras, 1990, p. 190-191).