quarta-feira, 31 de julho de 2019

Blanchot, Cioran

"Seu passado a confinava no mundo da cultura, e isso era um mal-entendido, porque o sonho dela era trabalhar no cinema de entretenimento, só ia ver filmes acessíveis a todo mundo, adorava Imensidão azul e mais ainda Os visitantes, enquanto o texto de Bataille lhe pareceu 'uma babaquice total', tanto quanto um texto de Leiris que lhe impingiram um pouco mais tarde, mas sem dúvida o pior foi uma leitura de uma hora de Blanchot para a France Culture, eu nunca desconfiei, disse ela depois, que existissem merdas assim, era incrível, disse, que tivessem coragem de apresentar ao público uma asneira daquelas. Pessoalmente eu não tinha nenhuma opinião sobre Blanchot, só me lembrava de um parágrafo divertido de Cioran explicando que Blanchot é o autor ideal para se aprender datilografia porque 'o sentido do texto não atrapalha'"


Michel Houellebecq, Serotonina, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht, Alfaguara, 2019, p. 77

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Pesquisa, romance

1) A estratégia enciclopédica de Michel Houellebecq - que é polimorfa e se adapta ao projeto específico de cada romance - não pode ser vista como um mero instrumental para a preparação do romance. Ou seja, um conjunto neutro de ferramentas que tornam possível o romance e dele não fazem parte. Pelo contrário, a estratégia enciclopédica é o próprio cerne dos romances, tornando-os possíveis e constituindo uma sorte de meta-comentário da performance romanesca. 
2) Nessa perspectiva, o procedimento vem desde Flaubert - e Houellebecq deliberadamente reconfigura o procedimento flaubertiano, renovando-o tendo em vista o aumento exponencial da estupidez na contemporaneidade (ou, ao menos, seus meios de distribuição e divulgação). O uso que Houellebecq faz da Wikipedia, por exemplo, não é por acaso: o que está em jogo não é a pesquisa para um romance como estratégia realista - a documentação como garantia da verossimilhança - e sim como diapasão da proliferação da estupidez. 
3) Assim como Flaubert usa Cartago para Salammbô, MH usa a clonagem para A possibilidade de uma ilha; assim como Flaubert usa a vida no interior para Madame Bovary, MH usa a vida corporativa em Extensão do domínio da luta e os meandros da arte contemporânea em O mapa e o território. A minúcia da pesquisa equivale à minúcia da estupidez (e a primeira serve para realçar a segunda, e não para escondê-la). Não é por acaso também que a epígrafe de Plataforma venha de Balzac - do qual podemos ler, em Ilusões perdidas, o seguinte diagnóstico, que jamais perderá sua atualidade, seu caráter polimorfo: 

Enfim, meu caro, o segredo da fortuna, em literatura, não é trabalhar; trata-se de explorar o trabalho de outrem. Os proprietários de jornais são empreiteiros, e nós pedreiros. Assim é que, quanto mais medíocre for o homem, tanto mais rapidamente subirá. (Balzac, Ilusões perdidas, trad. Ernesto Pelanda e Mario Quintana - A comédia humana, vol. 7, Globo, 2013, p. 307).

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Retratos, sombras

1) O romance que Javier Cercas publica em 2017, O rei das sombras, sobre a morte de seu tio-avô na Guerra Civil Espanhola, apresenta em suas páginas três fotografias: em primeiro lugar, logo no começo, a fotografia do parente - com o uniforme militar, portando medalhas e insígnias -; algumas páginas depois, uma fotografia deteriorada mostrando uma turma de escola, treze crianças (todos meninos) e um professor; por fim, bem mais adiante, para além da metade do romance, uma fotografia de estúdio, em preto e branco, mostrando três mulheres, duas em pé e uma sentada, bem no centro (a da direita, Sara, foi assassinada pelos franquistas - o narrador só pode especular as razões, nada é certo).
2) Parafraseando o Fredric Jameson de Brecht e a questão do método, quando escreve que "o que chamamos 'eu' é em si um objeto da consciência, e não nossa própria consciência" (trad. Maria Sílvia Betti, Cosac, 2013, p. 84), podemos dizer que a fotografia no romance é um objeto (uma ferramenta) da representação (dos "fatos", da "realidade") e não a própria representação (que não existe fora do jogo da mediação). É esse apelo paradoxo da imagem que tanto fascinou Barthes (A câmara clara), Sontag (Sobre a fotografia) ou Alberto Manguel (Lendo imagens). 
3) Mais do que ilustrar a narrativa escrita, a imagem conta uma história suplementar - mais do que isso, as imagens conversam entre si. A imagem da turma de escola de Cercas, as treze crianças e o professor, mais do que expressar seu conteúdo, seu tema, expressa sua condição material, sua deterioração, seus rasgos e remendos - como faz também Paul Auster na abertura de seu A invenção da solidão, livro inesgotável, especialmente na abertura de sua primeira seção, sintomaticamente intitulada "Retrato de um homem invisível". O rasgo da foto, sua deterioração, sua materialidade - mais do que a família diante da casa, mais do que seu tema, é o rasgo que comenta, indiretamente, a narrativa (relata a história por outras vias).

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Assinatura

"Tenho o mau gosto de estar maravilhado por ser Roberto Arlt", escreve Ricardo Piglia, indicado na epígrafe de A vida como literatura de Silviano Santiago. Piglia, leitor de Arlt, se apropria do nome próprio deste último em 1975 (em seu livro Nome falso); Silviano Santiago, leitor de Graciliano Ramos, repete o procedimento em 1981 (com Em liberdade); e, finalmente, em 2006, em A vida como literatura, é o nome próprio "Silviano" que é posto em questão, agora na leitura que se faz de Cyro dos Anjos.
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No ensaio sobre As afinidades eletivas de Goethe (concluído em 1922), no qual versa também sobre a escolha feita por Goethe dos nomes dos personagens ("Dificilmente haverá em qualquer outra literatura uma narrativa da extensão das Afinidades eletivas em que se encontrem tão poucos nomes"), Walter Benjamin escreve: Nada vincula tanto o ser humano à linguagem quanto seu nome. O nome funda a existência - toca tanto a signatura (como mostra Agamben em Signatura Rerum) quanto a arkhé (a arqueologia dos discursos e dos enunciados, a partir de Nietzsche, Freud, Foucault, que busca não a exaustão da origem, mas a multiplicidade dos começos).


Assinar é estabelecer um parentesco e um pertencimento, é ligar o caráter intangível da subjetividade e da identidade à materialidade do traço, da grafia, da tinta e do papel. A assinatura é mais do que o nome próprio - é a junção do nome próprio com o rastro possível de um corpo, de uma performance, uma atuação, uma imposição motora (empunhar, escrever, assinar). No sétimo episódio da terceira temporada de Mad Men, vemos Don Draper assinar seu nome em um contrato, algo que até então ele sempre recusou - porque reconhece que a assinatura é uma abertura, é uma performance de entrega, de abertura, de vulnerabilidade. A assinatura de Don Draper é também uma tentativa de reassumir o protagonismo, já que no mesmo episódio duas outras pessoas sentam em sua cadeira, atrás de sua mesa, dentro de sua sala (ocupando o lugar de um morto, como Agamben define a autoria). 

terça-feira, 16 de julho de 2019

Estética, política

Estetização da política, politização da arte, como sintetizou Walter Benjamin. Uma alternativa que não funciona sem a outra - nem tanto contrárias, mas complementares, sístole e diástole de um mesmo movimento. Mais do que uma característica do fascismo e seus desdobramentos, seria essa conjunção estetização-politização uma espécie de dispositivo, no sentido de Foucault, Deleuze ou Agamben? Algo que não diz respeito somente a um período histórico, mas que atravessa a todos eles, modulando e tensionando a relação entre arte e política? É algo que Georges Bataille já encontrava nas moedas gregas, por exemplo (no ensaio O cavalo acadêmico, entre outros).
No filme Werk ohne Autor, de Florian Henckel von Donnersmarck, o protagonista é um pintor alemão que começa sua carreira no imediato pós-guerra - fazendo murais no estilo do realismo socialista. Depois que escapa para a Alemanha Ocidental, demora ainda para encontrar um novo estilo, que finalmente chega como um avesso do início: depois de tentar escultura, action painting, espacialismo e outras técnicas da moda, ele retorna à pintura de cavalete depois de ver no jornal a foto de um nazista recentemente preso. Ele repete a fotografia massificada do jornal em uma pintura única, ampliando manualmente, durante horas, aquilo que foi feito automaticamente em um fragmento de segundo.
Em seu filme Loro, sobre Silvio Berlusconi, Paolo Sorrentino em determinado momento coloca o político diante da televisão, diante de si próprio multiplicado quatro vezes em quatro aparelhos diferentes, cada um deles reproduzindo uma tomada distinta de um pronunciamento seu. Baseado em algum detalhe capturado pelo olhar treinado por décadas de politização da arte e estetização da política, Silvio escolhe uma das tomadas, sendo advertido pelo assistente que naquela gravação específica ele não mencionava um assunto importante - "não importa", o político responde, "a dona de casa olhará para esse e dirá: eu daria para ele".  

sábado, 6 de julho de 2019

Terceira pessoa

1) Releio uma passagem do terceiro tomo dos diários de Piglia, Los diarios de Emilio Renzi: é uma anotação de 03 de novembro de 1980, o narrador está preparando aulas para um grupo de estudos - aulas sobre Wittgenstein e a questão da linguagem. Só é possível narrar a própria vida, a própria experiência, na terceira pessoa, escreve Renzi-Piglia, comentando Wittgenstein e seu par "falar/calar" e também resgatando Brecht (outra leitura que o acompanha, referência de aulas, convivência constante - a lição de Brecht, escreve ele, viver em terceira pessoa - Los diarios de Emilio Renzi - Un dia en la vida, Barcelona, Anagrama, 2017, p. 131).
2) É possível pensar naquilo que escreve Agamben sobre o testemunho - o terceiro que observa - em O que resta de Auschwitz, em um percurso que vai de Benveniste (o caráter móvel das posições subjetivas mediadas pelos pronomes) até Fernando Pessoa e a dinâmica dos heterônimos. Fredric Jameson, por exemplo, em seu Brecht e a questão do método, escreve: "a representação em terceira pessoa, a citação de expressões de sentimento e emoção de uma personagem, é o resultado de uma ausência radical do eu (self) ou, ao menos, um acordo com uma compreensão de que o que chamamos 'eu' é em si um objeto da consciência, e não nossa própria consciência" (trad. Maria Sílvia Betti, Cosac, 2013, p. 84).
3) Javier Cercas, nas páginas finais de seu livro de 2017, O rei das sombras, descreve o procedimento de escrita que usou para fazer o romance que agora se encerra: "para escrever um livro sobre Manuel Mena eu deveria me desdobrar: tinha de contar por um lado uma história, a história de Manuel Mena, e contá-la como um historiador a contaria, com desapego e distância e aferrando-se à verdade, como se eu não fosse quem eu sou, mas sim uma outra pessoa; e, por outro lado, devia contar não uma história, mas sim a história de uma história, ou seja, a história de como e por que acabei contando a história de Manuel Mena embora não quisesse contá-la nem assumi-la" (trad. Bernardo Ajzenberg, Biblioteca Azul, 2018, p. 262-263).