Seu aluguel é baixo, pois mora num apartamento pequeno, num bairro pobre, e, além de gastar dinheiro com as necessidades elementares, o único luxo que se permite é comprar livros, livros de capa mole, em geral romances, romances americanos, romances ingleses, romances estrangeiros traduzidos, mas no fim os livros acabam sendo menos um luxo do que uma necessidade, e ler é um vício do qual não tem a menor vontade de se curar.
Paul Auster. Sunset Park.
Tradução de Rubens Figueiredo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 11.
Ler é um vício do qual não tem a menor vontade de se curar.
1) Sempre a leitura paranoica, a leitura obsessiva, a leitura mágica - se paro de ler, o mundo explode. Como Arturo Belano, n'Os detetives selvagens, que molha todos seus livros (e os livros que pega emprestado) porque insiste em lê-los até mesmo durante o banho. Como um mesmo pedaço de papel, contendo rigorosamente os mesmos signos impressos, pode levar duas pessoas diferentes a lugares completamente diversos entre si?
Ler é um vício do qual não tem a menor vontade de se curar.
2) O drama de Hant'a, o protagonista de Hrabal em Uma solidão ruidosa, é o drama da leitura compulsiva - uma leitura compulsiva que se torna ainda mais terrível porque ele insiste em ter seus livros sempre por perto, sempre cada vez mais perto, até morrer. A leitura, nesse caso, é a fase inicial de uma doença da acumulação, um início que se camufla de horizonte, porque, para ler, é preciso ter sempre mais e mais. Porque o vício é sempre o vazio camuflado da repetição.
Ler é um vício do qual não tem a menor vontade de se curar.
3) Como aquele homem, em A noite do oráculo, de Paul Auster, que preenche um abrigo subterrâneo com listas telefônicas de todos os cantos do mundo, de todos os anos, de todas as línguas. Que espécie de instinto de sobrevivência é esse que vai numa direção completamente diversa da portabilidade, por exemplo? A intenção desse homem, evidentemente, não é fugir (como Beckett, como Duchamp, como Baudelaire) - sua intenção é permanecer e, quando chegar o momento, morrer com seus livros.