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quinta-feira, 30 de novembro de 2017
terça-feira, 28 de novembro de 2017
Waterloo como vitória
Ainda no tópico Napoleão nos pampas: Sarmiento aproxima Facundo de Napoleão, "Que sinistros pensamentos vêm assomar naquele momento à sua face lívida, no ânimo desse homem impávido?", escreve Sarmiento. "Não recorda o leitor algo parecido ao que manifestava Napoleão ao partir das Tulherias para a campanha que terminaria em Waterloo?". Se há um telos na história de Facundo tal como apresentada por Sarmiento, esse telos é a derrocada final, aqui ligada a essa resolução da trajetória de Napoleão em Waterloo (quando é vencido pelos ingleses). Nesse sentido muito específico, Sarmiento é, mais uma vez, um Sarmiento borgeano, uma vez que a tendência/intuição de Sarmiento é a de considerar Waterloo uma vitória (pensar em Borges em sua autobiografia: "sempre penso em Waterloo como uma vitória" - Ensaio autobiográfico, trad. Maria Carolina de Araujo e Jorge Schwartz, Cia das Letras, 2009, p. 23).
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Desde 1980, com Respiração artificial, é recorrente o uso que faz Piglia de Sarmiento como personagem. O acesso recente aos diários amplia esse contato, como no caso de uma passagem do segundo volume dos Diários de Emilio Renzi, na qual Sarmiento surge como uma via de escape, como a possibilidade de uma vida distinta, inteiramente devotada à pesquisa do "texto fundador da literatura argentina" e seu autor. 13 de maio de 1970, escreve Renzi/Piglia: "Pensei que uma salvação possível para mim seria abandonar tudo e dedicar os próximos vinte anos da minha vida a estudar Sarmiento, metido em bibliotecas, enchendo fichas, consultando velhas edições, só e sem amizades, para chegar ao final da vida com centenas e centenas de notas e fichas e então armar um enorme volume de mil páginas no qual só se falará de Sarmiento, do Facundo talvez, só do Facundo" (Los años felices, p. 184).
quinta-feira, 23 de novembro de 2017
Napoleão nos pampas
Em Facundo, de 1845, Sarmiento encontra Napoleão nos pampas: "Facundo é convidado a interpor sua influência, para apagar as chispas que foram acesas no norte da República; ninguém além dele está convocado para desempenhar essa missão de paz. Facundo resiste, vacila; mas afinal se decide. Em 18 de dezembro de 1835, sai de Buenos Aires, e ao subir à carruagem dirige, na presença de vários amigos, seus adeuses à cidade. "Se me saio bem", diz, agitando a mão, "voltarei a ver-te; se não, adeus para sempre!" Que sinistros pensamentos vêm assomar naquele momento à sua face lívida, no ânimo desse homem impávido? Não recorda o leitor algo parecido ao que manifestava Napoleão ao partir das Tulherias para a campanha que terminaria em Waterloo?" (Sarmiento, Facundo, ou civilização e barbárie, trad. Sérgio Alcides, Cosac Naify, 2010, p. 347)
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1) O deslocamento é breve, sutil, quase que apenas ilustrativo - mas muito relevante na ambição geral do livro de Sarmiento. Foi lutando contra Facundo que Sarmiento perde em 1831 e vai para o primeiro exílio no Chile. A questão é que Facundo no Facundo é também Rosas, o sucessor do primeiro ditador. "Facundo", portanto, deve fazer o leitor "recordar" não apenas Napoleão, mas também Rosas.
2) Alan Pauls fala de Borges e da "operação estrábica" de sua escritura (em El factor Borges), na medida em que acessa simultaneamente o passado e o presente, a "alta" cultura das citações filosóficas e a "baixa" cultura dos jornais e revistas (Pauls está falando das contribuições de Borges na imprensa na década de 1930). Operação estrábica como a de Sarmiento - falando de Facundo, reconstruindo a progressão histórica de Facundo e, ao mesmo tempo, armando um sentido subterrâneo que leva diretamente a Rosas, seu contemporâneo (que cairá só em 1852).
3) Napoleão morre em 1821, mas será enterrado definitivamente somente em 1840 - segue circulando, portanto (os restos mortais de Napoleão permanecem 19 anos como propriedade dos ingleses). O 18 de Brumário de Marx, publicado em 1852, não opera da mesma forma que o Facundo de Sarmiento? Não se trata da mesma operação estrábica? Lutero com a máscara de Paulo, a Revolução Francesa com a máscara da República romana, e assim por diante.
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
Puig, narração coral
Domingo, 2 de junho [de 1968]
A estrutura do romance de Puig é faulkneriana, narração coral a partir de narradores que interferem e são testemunhas dos fatos. É o leitor quem deve reconstruir e sintetizar um emaranhado de frases entrecortadas, fragmentos de diálogos, cartas, diários, até construir uma história que não está em lado algum, que não foi narrada, e sim aludida. Romance de formação, grande destreza no uso da oralidade.
Quinta, 6 de junho
Em A traição de Rita Hayworth de Puig se produz um fenômeno de estilização, um tipo de distorção aparente que pode ser vista como um "defeito" de composição (à maneira do choque e da afetação estilística de Onetti). É, no entanto, a maior virtude, porque o romance revela o caráter extremo de um mundo que se move no interior de uma linguagem comum baseada em formas de expressão que vem do cinema de Hollywood, da fotonovela e do correio sentimental, que moldam a experiência vivida (e estão de fora de toda formulação literária ou de alta cultura). O notável é que maneja com tal qualidade essa forma de realismo verbal que converte a linguagem em expressão vívida da vida. Essa linguagem já é uma forma de vida. O romance trabalha então a realidade já narrada (pelos mass media).
(Ricardo Piglia, Los diarios de Emilio Renzi, Los años felices (vol. II), Barcelona, Anagrama, 2016, p. 32-33)
sexta-feira, 10 de novembro de 2017
Foucault, asiático
Em um ensaio sobre o "discurso de Foucault" ("a historiografia do anti-humanismo", agora presente na coletânea The Content of the Form), Hayden White diz que a retórica do autor de Vigiar e punir é deliberadamente contrária à "claridade" da herança cartesiana. Contra o "aticismo" da geração anterior, Foucault seria "asiático". De novo, toda a questão dos "gregos e bárbaros".
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A questão tem peso na história da filosofia, na história da literatura - o estilo que ora pende para o "grego", ora pende para o "asiático". White inclusive aponta que essa é uma característica não apenas de Foucault, mas de uma "geração" (Deleuze, Barthes, Derrida, Lyotard?). A questão é central também para Derrida, especialmente em sua leitura cruzada de Hegel e Kant: Kant ocupa a posição do judeu no sistema de Hegel, diz Derrida, assim como Levinas no sistema de Heidegger. Mais além, é um tema que Derrida resgata também de James Joyce: no ensaio "Violência e metafísica", de A escritura e a diferença, sobre Levinas, Derrida resgata a frase do Ulisses de Joyce:
Woman's reason. Jewgreek is greekjew. Extremes meet.
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O tema circula: está na leitura que faz Edward Said de Freud, quando propõe um eixo oblíquo, asiático, em Freud e os não-europeus; ou ainda Peter Sloterdijk quando fala de Derrida como um egípcio (retomando também Hegel e a leitura de Hegel feita por Derrida no ensaio "O poço e a pirâmide"); Guy Davenport, por sua vez, escreve que “a intuição mais produtiva de Oswald Spengler foi a de dividir as culturas do mundo em três grandes estilos: o apolíneo, ou greco-romano; o fáustico, ou norte-europeu; e o magiar, ou asiático e islâmico”, o que nos interessa, conclui ele, “é que as categorias de Spengler são exatamente aquelas de Edgar Allan Poe [em seus Tales of the Grotesque and Arabesque]”
segunda-feira, 6 de novembro de 2017
Homero, Sófocles
1) Em determinado ponto de seu livro Antígonas - "a travessia de um mito universal pela história do Ocidente" -, George Steiner escreve que a Hélade, o mundo grego, tem suas raízes firmemente fincadas no canto XXIV da Ilíada de Homero. Tudo decorre dessa cena que coloca Aquiles e Príamo lado a lado, dialogando acerca do destino do cadáver de Heitor, assassinado pelo primeiro, filho do segundo.
2) Muito daquilo que atravessava a sensibilidade grega nos temas da relação entre vida e morte, juventude e velhice, mortal e imortal, misericórdia, perdão e destino, intenções e reconhecimento mútuo, escreve Steiner, "está exposto nessa parte decisiva, a mais perfeita da poesia épica" (mais perfeita? graus na perfeição? pode-se aqui relembrar a resenha de Jonathan Barnes, que ressalta uma série de "descuidos" na prosa de Steiner - e já que estamos no tema, vale relembrar que o ensaio que Foucault dedicou à leitura que Steiner fez de As palavras e as coisas chama-se "A monstruosidade da crítica").
3) O ponto principal de Steiner é que também a Antígona de Sófocles é um desdobramento do canto XXIV da Ilíada - uma vez que Antígona, assim como Príamo, se manifesta em favor dos direitos de um morto (seu irmão Polinices). Steiner fala do "cunho homérico" do estilo de Sófocles. Mais do que isso: a peça de Sófocles expande também o tema do confronto entre juventude (Aquiles) e velhice (Príamo), com Antígona em choque com Creonte e seu coro de anciãos. É nesse choque, contudo, que está a diferença de Homero para Sófocles. Aquiles e Príamos chegam a um instável acordo, mas Antígona e Creonte falam sempre de lugares distintos, irredutíveis: ele fala da lei, ela do desvio; ele fala do tempo imediato da governabilidade, ela fala da eternidade dos direitos; ele fala do coletivo, ela da individualidade.
domingo, 5 de novembro de 2017
Às cegas
1) O romance de Claudio Magris, Às cegas, originalmente de 2005, é por vezes confuso e excessivo, ainda que parta de uma premissa interessante: uma investigação ficcional do destino dos italianos na região da Ístria sob Tito, logo após o fim da II Guerra Mundial. Um ex-combatente comunista conta sua história naquilo que parece ser um interrogatório (uma confissão no leito de morte), e assim se desenrola o romance em primeira pessoa. Essa identidade que confessa, contudo, surge mesclada com outra, anterior, e uma segunda ainda mais antiga, arcaica: o combatente do século XX declara ser também um aventureiro dinamarquês que combateu durante as guerras napoleônicas e, por vezes, aproxima a si próprio de Jasão e dos argonautas e da busca pelo velocino de ouro.
2) Em determinado ponto do romance, a versão napoleônica do narrador conta uma de suas incontáveis viagens em direção à Austrália nos primeiros anos do século XIX, especificamente à colônia penal da Terra de Van Diemen - "logo entendi que o cirurgião Rodmell não sabia como se virar e lhe sugeri aqueles emplastros aplicados à nuca e umas pílulas diaforéticas, boas para fazer suar e reduzir a febre, que aprendi como assistente no Lady Nelson", diz o narrador, e continua com algumas observações dignas de nota: "Rodmell se preocupava com os forçados, desde que o governo estabelecera que daria ao cirurgião dos navios meio guinéu para cada prisioneiro que desembarcasse saudável - visto que os navios, entre febres, disenterias, infecções e comandantes que enriqueciam poupando o alimento dos prisioneiros até fazê-los morrer de fome, aportavam no destino com metade da carga humana, e mesmo os que chegavam vinham devastados pelo escorbuto e pela desnutrição, prestando-se pouco aos trabalhos forçados" (Claudio Magris, Às cegas, trad. Maurício Santana Dias, Cia das Letras, 2009, p. 258).
3) Esse breve detalhe histórico que Magris encaixa em sua história (por vezes tão exasperante em seus excessos) descortina um amplo conjunto de problemas, desde o imperialismo europeu do século XIX (Goethe, Marx, Edward Said) até a emergência do paradigma biopolítico no século XX (Foucault, Agamben, Deleuze, Arendt). Nessa instrução do Império ao médico - "fazer viver" os corpos ao invés de "deixar morrer", que é precisamente a passagem decisiva do político ao biopolítico - está toda a contradição de uma soberania que deve se construir sobre o duplo registro da punição e da recompensa. Essa oscilação contraditória entre punição e uso da força de trabalho que determina a atuação do médico e do imperialismo no século XIX prepara o terreno para os grandes projetos totalitários do século XX, com Stálin e Hitler (sendo justamente essa conexão um dos eixos subterrâneos do romance de Magris, ligando Napoleão a Tito, por exemplo).
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
O casaco de Renzi
O tema do confronto do escritor maduro com o jovem escritor, o mesmo escritor em duas distintas versões da vida. O período que Paul Auster chama "da mão para a boca" - vivendo com pouco, incerto com relação ao futuro. Há quase um sentimento de culpa do escritor maduro ao revisitar esse período da vida e, da parte do leitor, uma espécie de desapontamento diante do sucesso posterior (a visão sombria do jovem escritor frequentemente não se sustenta).
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Os diários de Emilio Renzi/Ricardo Piglia, especialmente o primeiro volume ("Os anos de formação"), estão repletos de situações que expandem e comentam essa lógica. Por isso é fundamental ter em mente que os diários de Renzi são reelaborações tardias de um Piglia maduro, bem-sucedido, à beira da morte. Escreve Renzi em 24 de março de 1967: “Olho criticamente certas decisões da minha vida que foram tomadas em razão do futuro da minha literatura. Por exemplo, viver sem nada, sem propriedades, sem nada material que me prenda e crie obrigações. Para mim, escolher é descartar, deixar de lado. Esse tipo de vida define meu estilo, despojado, veloz. É preciso ser rápido e estar sempre disposto a abandonar tudo e escapar” (Anos de formação - os diários de Emilio Renzi, trad. Sergio Molina, Todavia, 2017, p. 315).
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E Renzi volta ao tema no dia 29 de março de 1967: "O medo tomou conta de mim desde que deixei a universidade, logo depois do golpe de Onganía, e me somei aos professores que pediram exoneração, cortando assim a possibilidade de um emprego estável. Não faz muito sentido e é absurdo eu me apavorar com um futuro que se estenda além de seis meses. Tenho que viver com uma economia que garanta alguns meses seguros, não a vida toda, isso seria ridículo. Agora tenho pronto o livro de contos e duzentos mil pesos reservados (como adiantamento pela edição). Essas ideias surgem porque gastei 22.500 pesos num casaco italiano que comprei ontem" (p. 317).
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Eis um enigma econômico investigado por Marx que é também uma questão narratológica: é impossível dar conta do todo abstrato social sem o recurso à experiência singular. Nesse sentido, é digno de nota que o que tenha motivado o comentário de Renzi/Piglia tenha sido justamente um casaco, caso lembrarmos toda a narrativa ensaística de Peter Stallybrass ao redor do "casaco de Marx". Ao contrário da experiência de Auster, contudo, o confronto de Piglia com sua versão jovem sem futuro (a ironia intrínseca do dilema: o diário se faz na confiança de um futuro, de uma leitura póstuma) passa pela ditadura, pelo estado de exceção, marca decisiva na literatura do século XX em geral (de Nabokov a Imre Kertész).
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
Harmonia e o desejo
Já no final de As núpcias de Cadmo e Harmonia, seu livro sobre a mitologia grega, Roberto Calasso chega finalmente a uma das versões da história de Harmonia. Quando Cadmo chega ao reino de seu pai, já sabendo que Harmonia lhe está destinada, a menina não se impressiona. Não foi fácil persuadir Harmonia, escreve Calasso. Fechada em seu quarto de moça, esbravejava entre lágrimas, tocando os objetos mais queridos, que não queria deixar. Por que a mãe decidira entregá-la àquele homem desconhecido, que contava histórias pouco confiáveis, que não tinha nada para oferecer, exceto os equipamentos do navio, um vagabundo, um fugitivo, um marinheiro, um homem sem eira nem beira?
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Não foi Electra, a mãe, quem persuadiu Harmonia, mas a amiga Peisínoe, que se fechou com ela no quarto. Queria confessar-lhe que o "belo estrangeiro" não lhe saía do pensamento. Falava num "delírio de adolescente", descrevia o corpo de Cadmo, sonhava que a mão dele lhe acariciasse os seios redondos sem escrúpulos, sonhava "mostrar-lhe a nuca". Harmonia a escutava e se dava conta de que algo estava mudando nela: "enamorava-se pelo desejo da amiga, continuando a olhar ao redor desesperada, pois sabia que, se partisse, nunca mais havia de rever aquele quarto" (p. 263).
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Harmonia desejava o desejo da amiga e nesse percurso aceita Cadmo. É exatamente o que vai dizer Alexandre Kojève em sua Introdução à leitura de Hegel: "o desejo é o desejo do outro". Kojève deixa a Alemanha durante a ascensão do nazismo e sucede Koyré na École Pratique des Hautes Études, em Paris. Ali, de janeiro de 1933 a maio de 1939, apresenta seu curso sobre Hegel, pelo qual passaram Raymond Aron, Georges Bataille, Pierre Klossowski, Jacques Lacan, Maurice Merleau-Ponty, Raymond Queneau, Eric Weil, e esporadicamente, André Breton.
"Queneau, que coligiu as suas notas de curso e fixou o que conhecemos desse ensinamento essencialmente oral, em 1947, diz que Bataille aproveitou profundamente as lições do mestre, embora frequentemente dormitasse durante a aula."
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