terça-feira, 30 de agosto de 2022

Metáforas da crítica



1) Resenhando o primeiro romance de Italo Calvino, Il sentiero dei nidi di ragno (Einaudi, 1947), em 26 de outubro de 1947, Cesare Pavese escreve que o jovem autor é como um "scoiattolo della penna", um "esquilo da pena" ou da "escritura", por conta de sua astúcia e movimentação: Calvino usa de agilidade para subir em lugares difíceis e, assim, observar as situações de ângulos pouco usuais (no caso específico do romance e da resenha de Pavese, o contexto da luta da resistência italiana contra os nazistas durante a II Guerra Mundial). 

2) Mais de dez anos depois, na edição de março-abril de 1958 de Mondo operaio - supplemento scientifico-literario (Roma), Alberto Asor Rosa escreve uma resenha intitulada "Calvino do sonho à realidade", comentando os livros O barão nas árvoresA especulação imobiliária. A crítica é, em geral, negativa, afirmando de variadas formas que Calvino não faz uso pleno das estratégias narrativas que escolhe e dos temas que desenvolve em seus livros - e o texto da resenha se encerra da seguinte forma: "Calvino colocou a carne no fogo: um pecado que tenha renunciado a assá-la até o final". 

3) Poucos meses depois da morte de Calvino (19 de setembro de 1985), na edição de novembro de 1985 de Il Ragguaglio librario, Ines Scaramucci publica um texto intitulado "De Calvino a Bacchelli", no qual comenta as coletâneas de ensaios de Calvino (com ênfase para Coleção de areia, lançada no ano anterior). Scaramucci resgata uma entrevista na qual o autor fala da extrema "fadiga" da atividade de escritura: "trabalho como um animal", diz Calvino, cita Scaramucci, "é o caso de dizer que ganho meu pão com o suor da minha fronte" (os três textos foram lidos na "antologia da crítica" preparada por Giorgio Baroni em seu livro Italo Calvino: introduzione e guida, Le Monnier, 1988).

(a postagem pode ser lida em conjunto com as "monstruosidades da crítica" e com "o crítico como criminoso")

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O salto



1) No início da segunda parte de Os emigrantes, dedicada à figura de Paul Bereyter, o professor, o narrador de Sebald inicia uma longa rememoração de sua própria infância e de como chegou a ser aluno de Bereyter. O narrador-criança, portanto, chega na nova cidade e vai ao seu primeiro dia de aula, sendo recebido calorosamente pelo professor Bereyter: o professor nota o desenho tricotado em seu blusão e faz disso uma ocasião para reforçar os ensinamentos do dia anterior; a cena é também ocasião para uma performance do olhar, tão recorrente na obra de Sebald, quando várias pessoas se reúnem ao redor de uma imagem (ou várias) e vão, aos poucos, decompondo seus elementos, analisando sua estrutura e assim por diante.

2) Não é só a imagem tricotada no blusão que é separada, mas também a palavra que faz referência à imagem do salto do animal, que em poucas linhas é apresentada em cinco variações: springenden Hirschdie Hirschsprungsageeines Hirschsprungsmeinem Hirschsprungpulloverdes Hirschsprungmusters. A repetição escolar está no centro da cena, bem como o esforço dos alunos diante da tarefa de reproduzir o desenho no pulôver - algo que aparecerá também no último capítulo de Os emigrantes, com Max Aurach/Ferber, o pintor de Manchester, que mostrará ao narrador uma fotografia sua quando criança, escrevendo algo com o rosto muito próximo ao papel. 

3) A singularização das palavras desempenha uma função importante na narrativa de Sebald - uma reiteração por vezes carregada de angústia que remete diretamente ao estilo de Thomas Bernhard (modelo que Sebald comenta e exalta em entrevistas). Logo no início de Austerlitz, por exemplo, ao chegar na fortaleza de Breendonk, o narrador aponta como o cheiro (de sabão e "limpeza") do lugar o leva diretamente "aos terrores da infância" e a uma das palavras preferidas de seu pai, que repetia com frequência, Wurzelbürst, a "bizarra palavra", escreve o narrador, que indica uma escova (limpeza, ordem e asseio como elementos que, na obra de Sebald, se articulam com o pó, a ruína, a tumba).

domingo, 21 de agosto de 2022

Antiga voz


1) No início de seu livro O princípio responsabilidade, Hans Jonas cita uma “antiga voz”, o canto do coral da peça Antígona, de Sófocles (faz muita falta na edição brasileira um índice remissivo, para saber se Sófocles reaparece ao longo da argumentação), buscando aí uma arcaica “nota tecnológica” (pois esse é o cerne do argumento de Jonas em seu livro: como a promessa da tecnologia se transforma em ameaça e, com isso, solicita uma reflexão ética renovada).

2) O coro-coral de Sófocles canta as maravilhas da natureza, indicando, contudo, que a maior é o homem; por mais espumoso que seja o mar, o homem avança; por mais dura que seja a terra, com suas ferramentas o homem abre sulcos e planta sementes; o engenhoso ser humano prende com suas redes os mais ligeiros animais; com o mesmo engenho domestica os animais agrestes, fazendo do cavalo um companheiro, do touro um servidor; por mais que tenha descoberto remédios para muitas doenças, contudo, o homem é impotente diante da morte (o grande marco de passagem contra o qual não há engenho possível).

3) De certo, havia o horizonte infinito da natureza, de seus recursos e mistérios (como testemunham os deuses, ficções que cristalizam a abstração do infinito). Já com Marx surge a ideia do capital como aventura autoimune, como dinâmica de expansão que acarreta, necessariamente, sua implosão (um Saturno que devora não os filhos, mas a si próprio – Erisícton, aquele que quanto mais come mais fome sente, que Anselm Jappe resgata em A sociedade autofágica), desembocando em outro profeta do negativo, Kafka, que escreve que “há esperança, esperança infinita, só não para nós” (não por acaso Kafka surge no livro de Jonas, como contra-argumentação diante do “princípio esperança” de Ernst Bloch).

sábado, 13 de agosto de 2022

As vozes



1) Uma das coisas que mais impressiona o leitor quando entra em contato com Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño, é a intensidade de cada capítulo, especialmente aqueles que dão conta dos testemunhos da longa seção "Los detectives salvajes (1976-1996): muitas vezes as cenas, as falas, os personagens, os dramas se acumulam e se lançam em incontáveis direção sucessivamente, sem que haja, ao fim, qualquer tipo de costura rigorosa que organize todo esse esforço (é da ordem propriamente do carnavalesco (e da polifonia) de Bakhtin ou do dispêndio de Bataille, algo que não se explica pela soma de suas partes ou por qualquer sistema pragmático ou concatenado de explicação narrativa). 

2) Voltamos a Urenda falando de Belano, uma frase que serve de miniaturização (Agamben: a miniaturização é a cifra da História) do ethos do romance: Su historia era bastante incoherente. Uma incoerência, contudo, que também não é homogênea ou sistêmica, também não pode ser tomado como um fio organizativo possível - também a incoerência é uma máscara, um recurso, um dispositivo da dinâmica ficcional (ao falar com Urenda, Belano comenta que una vez tuve un duelo, com un tal Iñaki Echavarne, um envio a uma das cenas mais célebres do romance, contada nos testemunhos de Susana Puig, Guillem Piña e Jaume Planells).

3) Já no fim de seu relato, Urenda conta do momento em que acorda e vê Belano e outro personagem fumando e conversando. Ele diz: Transcribir lo que se dijeran es de alguna manera desvirtuar lo que yo sentí mientras los escuchaba. Essa é outra cifra de outro eixo fundamental do romance: o intervalo entre fala e escrita, entre testemunho e registro, entre ideia e realização (a ambivalência do romance que, ao mesmo tempo, "registra" ideias, relatos e sentimentos de uma geração com o mesmo gesto que os "desvirtua"). O dilema de Urenda diante da possibilidade de registrar a fala de Belano é a miniaturização do dilema bem mais amplo dessa entidade - Bolaño? - que arma o romance Os detetives selvagens sobre a "tarefa-renúncia" (no sentido ambíguo que dá Walter Benjamin quando fala da tradução em "Die Aufgabe des Überstzers") de registrar os depoimentos por escrito.  

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Belano em Luanda

1) Uma das premissas mais importantes do pensamento pós-colonial é que não basta simplesmente inverter os termos, aquilo que está "embaixo" agora está "no alto", aquilo que era valorado positivamente agora é tomado de forma negativa, e assim por diante; é preciso que seja instaurado um sistema de referências em permanente oscilação, como faz Roberto Bolaño em um romance como Os detetives selvagens: corpos latino-americanos se deslocam no tempo e no espaço, colocando em relato as experiências de seus deslocamentos e ocupando, dessa forma, pontos estratégicos de uma investigação acerca de uma herança (de trauma e violência) e de uma possibilidade de futuro (Sión, a terra prometida, a flecha que nunca chega no alvo).

2) O modo como Xosé Lendoiro, por exemplo, em Roma, dando seu testemunho em outubro de 1992, pontuando seu relato com frases em latim, dando conta da passagem de Arturo Belano pela Espanha, por Barcelona, pela Catalunha, um relato ao mesmo tempo comovente, ridículo e solene diante da literatura (la poesía, esa mala pécora que me ha acompañado a traición durante tantos años); ou Jacobo Urenda, falando de Paris em junho de 1996, contando de quando conheceu Arturo Belano em Luanda, em Angola, um argentino e um chileno, e como Urenda fala que sempre que volta a Paris dessas viagens é como se não estivesse de volta, é como se "ainda estivesse sonhando" (a oscilação, sempre: ...seguimos conversando. O tal vez no. Tal vez allí nos separamos).

3) Ainda Urenda (que é fotógrafo, como el Ojo Silva, de Putas assassinas), que fala de Arturo Belano: Antes de marcharme tuvimos una última conversación. Su historia era bastante incoherente. Trata-se, sem dúvida, de uma incoerência que não é exclusiva de Belano, mas estrutural, sistêmica - uma história contraditória que mescla o subjetivo e o coletivo. Essa "incoerência" é a diáspora, a dispersão e o exílio, mas também uma espécie de cifra que leva o leitor - de forma detetivesca - a uma lógica não-cartesiana e não-fundacional, errática e descontínua (mi generación leyó a Marx y a Rimbaud hasta que se le revolvieran las tripas), ligada à pulsão e ao inconsciente (incoerente como a chaleira de Freud, por exemplo: eu devolvi a chaleira em perfeito estado, ela já estava com um buraco quando peguei e, além do mais, eu nunca peguei emprestada qualquer chaleira).