1) Quase trinta anos separam dois livros de alto nível, de enorme força estética, definidores de duas poéticas bem distintas, mas igualmente fundamentais: em primeiro lugar As coisas: uma história dos anos sessenta, o primeiro romance de Georges Perec, lançado em 1965; em segundo, A extensão do domínio da luta, de Michel Houellebecq, também seu primeiro romance (MH já havia publicado antes poesia e seu célebre ensaio sobre H. P. Lovecraft).
2) Os dois autores trabalham a partir do mesmo idioma e da mesma tradição, pontos de contato definidores. Ambos jogam continuamente com a história familiar em suas poéticas - os silêncios, as zonas traumáticas, os abandonos. Perec, contudo, tem algo de lúdico, de infantil e sorridente, um prazer de escutar, de configurar uma comunidade; Houellebecq, por sua vez, investe em sua ficção no isolamento, em uma ironia desesperançada, cínica (mas existem temas compartilhados, como o mundo da arte em O mapa e o território e A coleção particular).
3) Um fio subterrâneo une As coisas e Extensão, como se fossem respectivamente o início e o fim de uma mesma história: do lado de Perec, a excitação de uma geração diante do consumo, diante da televisão, dos automóveis, dos artefatos mais variados agora disponíveis em larga escala; do lado de Houellebecq, trinta anos depois, o resultado da exposição a tal fartura: morosidade, vacuidade, a permanente sensação de derrota e enfado, a burocratização radical dos afetos e dos desejos:
Debaixo dos nossos olhos, o mundo se uniformiza; os meios de comunicação avançam; o interior dos apartamentos se enriquece de novos equipamentos. As relações humanas tornam-se progressivamente impossíveis, o que reduz, na mesma proporção, a quantidade de peripécias de que se compõe uma vida. E, aos poucos, o rosto da morte aparece, em todo o seu esplendor. O terceiro milênio mostra a sua cara.
Michel Houellebecq, Extensão do domínio da luta, trad. Juremir Machado da Silva, Sulina, 2002, p. 18.