Em um texto de 1965 intitulado "A vontade de Dante de ser poeta", Pasolini comenta expressões utilizadas na Comédia que "pertencem a um círculo linguístico de periferia ou de bairro de má fama", de "gente simples e plebeia", talvez "até entregue a uma vida bandida", utilizadas por Dante para "reviver psicológica e socialmente a realidade de suas personagens de baixa extração e sem cultura", como, por exemplo, a expressão
ed elli avea del cul fatto trombetta. (Inferno, XXI, 139)
traduzida por Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise (Cia das Letras, 2021, p. 303) da seguinte forma:
e este ali mesmo fez do cu trombeta.
E na tradução de Italo Eugenio Mauro (ed. 34):
do seu traseiro o som de uma trombeta.
Outra coisa interessante que aponta Pasolini é o modo como o relato de Dante se desenvolve em dois registros, um rápido, o outro lentíssimo. Ele dá o exemplo do episódio de Pia dei Tolomei (Purgatório, V, 130-136), que mal começa já termina, "talvez a pessoa nem perceba que o leu", como um fragmento de libreto de ópera, "mais sugere do que expõe os sentimentos e os fatos". Contudo, com a releitura, continua Pasolini, o "ritmo é o do outro registro": o ritmo lentíssimo, "atemporal", que "se inscreve num tempo que não é o da leitura e tampouco o dos fatos, mas sim o tempo meta-histórico da poesia: seu ralenti de epígrafe sublime, seu interminável dó de peito casto e quase murmurado", "fora do tempo das coisas".