sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
Ciências Morais, Martin Kohan
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
O grau de parentesco como crítica literária
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Todos sabem que Richard Melville Hall (1965), também conhecido como o cantor Moby, é descendente do famoso escritor norte-americano Herman Melville, autor do clássico Moby Dick, e que daí decorre o nome do artista. Todos sabem que André Sant'Anna é filho de Sérgio Sant'Anna e que Luis Fernando Verissimo é filho de Erico Verissimo. Contudo, há muito mais do que supõe nossa vã filosofia. Abaixo, algumas verdades não muito conhecidas do universo das filiações:
1) Taylor Swift (1989): a cantora norte-americana de apenas 20 anos, que desbancou Beyonce no VMA deste ano, é a filha mais nova de Scott Swift, empresário estabelecido na Pensilvânia, que por sua vez é irmão caçula de Graham Swift (1949), escritor britânico vencedor do Booker Prize de 1996. Consta, inclusive, que Taylor Swift teria escrito, ao longo de um verão, um romance de 350 páginas, ainda não publicado.
2) Penélope Cruz (1974): a atriz vencedora do Oscar é descendente de Julio Casares Sánchez (1877-1964), famoso filólogo, diplomata e crítico literário espanhol, autor de dicionários e de dois volumes de ensaios, Crítica profana e Crítica efímera, publicados na época em que Miguel de Unamuno lançava Abel Sánchez. Una história de pasión, cujo protagonista é livremente baseado na figura de Julio. Encarnación Sánchez (1940-1996), mãe de Penélope Cruz, é neta de Julio Casares Sánchez.
3) Kate Beckinsale (1973): todos sabem que Kate venceu, por duas vezes, o prêmio W.H. Smith para jovens escritores - uma vez com contos, a segunda com poemas. Mas poucos sabem que a estrela de Van Helsing, Pearl Harbor e O aviador cresceu brincando com seu primo mais velho, Blake Bailey, filho mais velho da irmã de Judy Loe Bailey, mãe de Kate. Blake, o primo de Kate, é responsável pela mais recente biografia de John Cheever, além de já ter publicado uma biografia de Richard Yates, autor de Revolutionary Road, recentemente transformado em filme por Sam Mendes.
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
Animais III
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2) Nas ações biopolíticas contemporâneas, existiriam vidas mais produtivas, que desfrutariam dos avanços da ciência, e vidas consideradas de menor valor, que serviriam de cobaias para experimentos científicos? É só pensar nos testes farmacêuticos mostrados em O jardineiro fiel.
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3) Os corpos estão expostos, excluídos do estado de direito, para usar os termos de Agamben. A geopolítica, ramo da biopolítica, determina zonas de indeterminação nas quais a liberdade é relativizada. Uma coisa é dizer, outra coisa é fazer: é só pensar no abismo entre Russell Crowe e Leonardo DiCaprio em Rede de mentiras, de Ridley Scott.
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4) Zoé: vida pura, biológica. Bios: vida cultivada, comunidade. Homo sacer: aquele que é separado pelo soberano, cuja morte não é homicídio e que não pode fazer parte dos rituais de sacrifício – está na lei como um exilado. O homo sacer existe biologicamente mas não politicamente, ainda que a manipulação de seu corpo fortaleça a potência política do soberano. O homo sacer é vida nua porque está à mercê da soberania biopolítica. É o marido de Reese Whiterspoon em O suspeito, de Gavin Hood, capturado no aeroporto e enviado para uma sala de tortura no Oriente Médio.
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5) Se o estado de exceção é a regra, como quer Benjamin, como quer Agamben, toda vida é nua e está disponível para edição e cerceamento. Paradoxalmente, a vida menos nua talvez seja daquele sujeito que vive no interior do Pará, sem luz elétrica.
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6) Agamben afirma que “o ingresso da zoé na esfera da polis, a politização da vida nua como tal, constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico” (p. 12).
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7) E diz mais: “o corpo do homo sacer e a vida nua constituem a força e, ao mesmo tempo, a íntima contradição da democracia moderna: ela não faz abolir a vida sacra, mas a despedaça e dissemina em cada corpo individual, fazendo dela a aposta em jogo do conflito político. (p.130). Os agentes de 20 milhões de dólares do projeto Treadstone, em A identidade Bourne, que sofriam de dores de cabeça e uma série de problemas físicos e mentais, decorrentes das intervenções realizadas artificialmente, são bom exemplo. Seu corpo é a aposta da soberania no jogo do conflito político, e sua morte é apenas uma baixa.
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8) O poder soberano clássico fazia morrer. A biopolítica moderna fazia viver. O estado de exceção contemporâneo faz sobreviver. Trata-se de um mecanismo de manutenção controlada das vidas – deixar a vida exposta ao puro exercício da técnica.
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Animais II
1) O Holocausto: humanos subjugados por um Estado totalitário (o nacional-socialismo como uma máquina antropológica muito específica em sua política racial e biológica (o alemão é a terra e o sangue)), exterminados em matadouros - e a analogia talvez não seria com gado, como queria Paul Singer e Elizabeth Costello, mas com uma infestação de insetos: baratas, cupins, formigas. Está no termo usado por Hitler - Ungeziefer - que Ricardo Piglia observa, em Respiração artificial, ser o mesmo utilizado por Kafka para denominar o inseto no qual Gregor Samsa havia se transformado.
5) Alcança-se a animalidade no extremo da passividade (o prisioneiro que se submete como uma ovelha que vai ao sacrifício) e no extremo da atividade (o soldado que se empapa no sangue durante as execuções, como uma besta). Um homem de 220 quilos pastando McDonald's e Burger King em frente à TV, uma "tia" de creche que queima o tornozelo de uma criança com a ponta de um cigarro aceso.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
Animais
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Pirandello e a medalha
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
El tilo
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Parmênides
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Mulheres/Loucura
terça-feira, 10 de novembro de 2009
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
Camadas
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Há sempre uma história por trás da história. Um exemplo entre tantos outros possíveis: o sujeito desavisado lê as duas partes de Don Quixote (quantas pessoas ao redor do globo estão lendo Don Quixote neste exato momento? 4 mil, 60 mil? Em quantas línguas? 8, 9, 30?) sem saber do plágio que motivou a segunda metade, nascida 10 anos depois da primeira (em 1615). Imagine só o despeito e a indignação de nosso gênio maneta! (viu?, outra história por trás da história...).
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No prefácio de Nostromo (preste atenção: um livro sobre a América Latina), Joseph Conrad conta que, depois de escrever o último conto de Tufão, se deu conta de que não havia nada mais a dizer (por pouco um bartleby – aliás, essa história poderia estar em Bartleby & companhia – aliás, na melhor parte de Desde la ciudad nerviosa, livro que reúne alguns artigos esparsos de Vila-Matas, o autor revela que já podia ter escrito um segundo volume de Bartleby, dada a quantidade de casos de artistas do Não que os amigos e conhecidos enviam regularmente a ele), ou seja, que tudo já estava esgotado. E não é que Conrad, ao passar por uma loja de livros usados (sempre os sebos!), descobre um volume, o relato autobiográfico de um marujo americano (auxiliado, na escrita, por um jornalista), que conta, ao longo de três sucintas páginas no meio de tudo, uma história que ele, Conrad, havia ouvido quase trinta anos antes, quando trabalhava no México. O marujo havia trabalhado com um falastrão que dizia ter roubado, sozinho, uma barcaça cheia de prata – e Conrad reconheceu a história e o personagem, décadas depois. O ladrão de prata, cuja proeza nunca ficou provada, já que ele alardeava o fato, mas mantinha os negócios modestos como estavam, virou Nostromo.
quarta-feira, 4 de novembro de 2009
Melancolia
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Um amigo me procura para comentar a melancolia que experimentou ao ler, de cabo a rabo, o blog de um jornalista de São Paulo – suas idas ao teatro, as estréias que acompanha nos cinemas, os muitos livros recém-lançados que o sujeito recebe sem levantar da cadeira. Eu também tenho problemas com pessoas que recebem livros sem sair da cadeira, eu disse a ele. São momentos que nos fazem questionar a razão de continuar realizando determinadas coisas. Foi o que eu também disse a ele, aproveitando o embalo: lendo How Fiction Works é impossível não pensar na quantidade de elementos que podem dar errado na construção de um livro, e de como é fútil e vazia a intenção de ainda escrever, diante disso, questão que fica evidente se acompanharmos a quantidade de frentes que o jornalista de São Paulo parece impelido a suprir. Indiquei ao amigo a última resenha da Copa de Literatura brasileira, que arrebenta Dias de Faulkner – excelente exemplo, se seguirmos a argumentação da resenha, de um livro que não precisaria ter existido, pelo menos não agora, que poderia ter sido mais bem gestado, melhor cultivado, e não simplesmente jogado no mercado (porque é disso que se trata: mercado). É evidente que falta leitura, como aponta o próprio James Wood: a literatura faz de nós melhores observadores da vida, se nós praticarmos enquanto vivemos; isso, em contrapartida, nos faz melhores leitores dos detalhes na literatura, o que, como reflexo, nos faz melhores leitores da literatura. E assim por diante. A maioria dos jovens leitores são observadores medíocres. Vejo pelos meus próprios livros antigos, anotados vinte anos atrás, quando eu era estudante. Assinalei cuidadosamente, salientando minha aprovação, detalhes, imagens e metáforas que hoje me parecem o mais raso senso-comum, enquanto deixava de lado coisas que hoje me parecem maravilhosas. Nós crescemos como leitores, e jovens de vinte e poucos anos parecem relativamente virgens. Por não terem lido o suficiente, não aprenderam com a própria ficção como lê-la. Lembro de uma passagem hilária de Pnin, do Nabokov (texto, aliás, que Wood cita algumas vezes), em que o professor do título fica também melancólico ao encontrar, em um livro da biblioteca, uma anotação à margem que diz: “ironia”, e outra, mais adiante, que diz: “descrição da natureza” – Pnin fica quase constrangido, mas o narrador (que Wood diz que pode ser identificado com Nabokov, blábláblá, óbvio que é Nabokov! (Nabokov estava no bosque, caçando borboletas ao lado de outro louco; este segundo diz: “Eu sou Jesus”, e Nabokov responde: “Não creio”, o segundo louco retruca: “Foi Deus quem me disse!”, e Nabokov encerra a discussão: “Nunca disse tal coisa, seu asno”)) espezinha a ignorância e superficialidade do estudante anônimo, cristalizado para sempre naquele comentário estúpido à margem de um livro qualquer. Faltam leitores, é evidente, foi o que eu disse ao meu amigo. Falta leitura detida, pausada, reiterada. Sejamos leitores, portanto. Tiago A., responsável pela resenha da Copa que eu mencionei, em determinada passagem de seu blog, nos mostra como encontrou em David Foster Wallace a repetição de uma metáfora, o sol que se põe como um ioiô, em um romance e no final de um conto. Leitura psicótica, de varar madrugada, rabiscando por cima dos rabiscos que já estavam lá desde a primeira leitura, garimpando a porra toda, como se fosse o primeiro leitor a chegar lá (e digo isso de propósito, foi o que eu disse a meu amigo, porque todo leitor é efetivamente o primeiro a chegar). Ou seja, Tiago A. revira Foster Wallace de pernas pro ar e pega o sujeito pelas bolas, ali na duplicação do estilo, naquilo que o Wood chama de self-plagiarism (p. 52). Sensacional. Leitura, na sua mais simples e potente resolução. Qualquer dia desses vou fazer a mesma coisa com aquela palavrinha safada que percorre todo o’S Detetives Selvagens: simonel. É claro que eu adoraria receber os últimos lançamentos literários em casa, com uma sacola ecológica da Companhia das Letras de brinde, eu disse a meu amigo (ainda melancólico, mas já não tão cabisbaixo), mas como carregar de afetos e biografemas, como está carregado aquele envelope grosso que recebo de meu Tio Toni lá da Bahia, esse pacote inerte? Cada post jornalístico é um retorno do mesmo-enfadonho, enchendo a tela com aquilo que já vimos na vitrine e que continuaremos vendo nas resenhas e ainda veremos novamente, até a próxima novidade, em uma cronologia fixa como uma linha de montagem. Talvez meus critérios sejam outros, pensa meu amigo, em voz alta. Como diz Zygmunt Bauman: depois de viver o fetichismo da mercadoria, lá no início do capitalismo, entramos no fetichismo da subjetividade – que brota, assim, como se fosse um clique de mouse. E talvez seja também um pouco por isso que tantas gavetas, ao invés de permanecer fechadas, estão sendo tão veementemente abertas, eu disse a meu amigo, já um pouco atordoado pelo rumo que a conversa tomava. James Wood, por seus próprios caminhos, também alcança o fetiche da subjetividade quando propõe a linha: Rei Davi, MacBeth e Raskolnikov, ou seja, o primeiro só existe para Deus, o segundo só existe para a audiência (solilóquios) e o terceiro só existe para si. Na era da informação, já disse alguém, a invisibilidade é quase a morte. De modo que o sujeito do blog, o primeiro (e essas já foram as conclusões do meu amigo), está engessado pela pauta, pelo cronograma jornalístico, pelos lançamentos editoriais, pela demanda do mercado, pelo agenda-setting e pela espiral de silêncio, e talvez aí esteja um pouco da diferença entre a aproximação jornalística da literatura e a aproximação, digamos, acadêmica – e que eu resumiria, ainda que isso não tenha me ocorrido durante a conversa, como uma consciência do arquivo, ou ainda, uma problematização do arquivo, do que está disponível e das razões para esta disponibilidade. Arquivo como origem vazia, lacuna auto-reflexiva, vertigem da temporalidade atravessada de anacronismos que fabricam, por sua vez, a história.
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terça-feira, 3 de novembro de 2009
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
Filiações
Li por aí, no blog de algum jovem pesquisador, a menção a um rol seleto de maiores amores de leitura: Agamben e Lacan. Ou seja, essa pessoa cultiva, como preferência extrema de leitura (tudo incluído, pelo que eu entendi: ficção, teoria, listas de supermercado), Agamben e Lacan. Estranhei, achei falso. Aí pensei: "Espera um pouquinho: por que não? - cada um com seu cada qual". Comecei a questionar, evidentemente, minhas próprias escolhas - voláteis, volúveis, viscosas ("Estou mudando de opinião com relação à vida", diz um sábio baiano ao agonizar, virtualmente, no leito de morte). Isso ficou na minha cabeça, nos últimos dias. Por conta da contingência imposta pela falta de tempo, tenho operado da seguinte forma: ao invés de atacar problemas distintos a cada brecha de tempo que surge, ataco o mesmo problema diversas vezes, escandindo, desta forma, a reflexão no tempo. Ou seja, bobagem. O fato é que: Agamben efetivamente possui belas páginas sobre teologia, digamos, mas o meu percurso atravessa muito mais as memórias do Jonathan Franzen ou da Karen Armstrong, ou ainda o recente Retalhos, do Craig Thompson. Outra coisa: me dei conta (isso faz tempo) que, quando visito os sebos, olho as estantes de literatura brasileira somente contando com o fato de que, às vezes, os funcionários fazem a catalogação de forma equivocada, botando, sei lá, Italo Calvino ao lado de, sei lá, Antonio Caloni.
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Essa é uma falsa polêmica, claro. Não se trata de escolher entre crítica e ficção, principalmente pelo fato de que eu escrevi uma dissertação sobre Enrique Vila-Matas - e, diante disso, estabelecer uma barreira ou uma divisória seria absurdo. Enfim, o fato é que o texto ficcional me faz mais _______, justamente por conta de certa _________ que a teoria deixa de lado. Nisso estou com James Wood - comecei hoje de manhã a ler How fiction works, que é iluminador em sua simplicidade. No prefácio explicativo, Wood faz referência a dois críticos, Victor Sklovski e Roland Barthes, que estariam por trás de sua concepção dos mecanismos da ficção, mas que logo são abandonados. Wood quer explicar ficção com ficção, e vai ao básico: imagens, como usar aspas, discurso indireto, narrador, dando exemplos de Henry James, Sebald, Ishiguro, zilhões. Às vezes o óbvio tem um fascínio inesperado.
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História sucinta para terminar e ilustrar: uma passeata de jovens, todos carregando cartazes onde vai escrito: "253" - e todos gritam, enquanto passam pelas ruas: "253!, 253!". Um velhinho pára e olha, curioso. Puxa um dos manifestantes e pergunta: "que diabo de número é isso?". O jovem responde: "Essa é uma passeata pelo amor livre. 253 é o número de posições sexuais que nossa comunidade conhece e pratica." O senhor curioso arregala os olhos, surpreso. "Veja você... eu que passei a vida toda achando que era só uma...", o jovem pergunta, também curioso: "E qual é a posição que o senhor conhece?". O velho: "Ora, meu jovem, aquela normal, a mulher deitada, o homem por cima... papai-mamãe..." - o jovem, agora ele de olhos arregalados, mal espera o homem terminar de falar e sai gritando em direção aos outros: "254!, 254!!, 254!!!"
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quinta-feira, 22 de outubro de 2009
O corte vertical
terça-feira, 20 de outubro de 2009
Outro dia de poesia
Explicação
A epifania, hoje, é
um pouco de ruído branco
misturado com um ensaio
de Gilda, Mello e Franco
Explora a vida e a matéria
como na primeira peça
de Beckett:
Eleotéria
Que quer dizer liberdade,
em grego,
sem pretender,
com isso,
desgastar a boutade
Do verbo bouter, empurrar.
No seu Lattes não tem francês:
É por isso que eu preciso
explicar
Mas não leve a mal:
no meu não tem italiano,
ainda que eu seja fã
do velho Mastroiano
Não o ator, não:
me refiro ao livreiro,
dono daquele sebo na Liberdade.
Um pardieiro.
Lugar de gente encurvada,
cinza e manchada,
mas todos conscientes
de que ler
é maçada.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Imaginários bélicos
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
sexta-feira, 9 de outubro de 2009
Conficção
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Sua apresentação estava marcada para as 17h10. Quando chegou, atrasado, um anônimo ainda falava sobre o lunfardo, o galego e palavras emprestadas. O trabalho sobre Wilcock, que levava debaixo do braço, teria de esperar: adiantaram uma das palestras (quando ele ainda não estava lá) porque o avião não podia esperar. O que estava marcado para 17h10 aconteceria uma hora depois. Depois do lunfardo, surgiu um professor macilento (nunca a palavra se aplicou tão bem, ele pensa, o sujeito era inteiro da mesma cor, pele, cabelos, roupas, um aspecto tísico, se possível) para falar de Benítez Rojo. Após, uma mulher insegura, de unhas roídas e cabelo lustroso, viajou de Belo Horizonte até Florianópolis para repetir conceitos de trinta anos atrás sobre o romance histórico. Chega, finalmente, a vez dele. A audiência é composta de quatro pessoas. O trabalho é cuspido, simplesmente. O único trecho que o satisfaz, durante a leitura, é a referência feita ao Evangelho segundo São Mateus, filme de Pasolini, do qual participaram, como figurantes, Giorgio Agamben, Natalia Ginzburg e Juan Rodolfo Wilcock. São Filipe, Maria de Betânia (irmã de Lázaro, o ressuscitado) e Caifás, o Sumo Sacerdote, respectivamente. Fora isso, tudo foi lido de um chofre, insensivelmente.
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A surpresa ficou para depois, na entrega dos certificados de apresentação. A moça sorridente e um pouco acima do peso, que entregava os papéis, disse a ele que a professora Denise, que finalizava uma palestra na sala ao lado, pediu que fossem apresentados. Havia uma espécie de presente para ele. Entrando na sala, desconfia do que lê projetado na parede: um trecho narrativo que fala sobre a guerra do Vietnã (no ônibus, atrasado, ele lia justamente a passagem de Summertime que menciona a fuga de Coetzee do serviço militar na África do Sul e sua expulsão dos Estados Unidos por participar de uma manifestação contra a guerra no Vietnã). "A narrativa é cindida", diz a palestrante. "A voz da personagem oitocentista é dúbia, oscilante", ela continua. O tema da apresentação é J. M. Coetzee e seu primeiro livro, Dusklands. Termina em seguida.
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Segue a rotina ridícula de praxe: leitura dramática de poemas no palco. Sem titubear (esperam por ele em casa), vai falar com a palestrante, já sentada nas cadeiras da platéia. Ele precisa mostrar a ela o trecho do livro (Summertime) no qual Coetzee afirma que o prefácio de Dusklands, assinado pelo pai do autor, é pura invenção. A cópia que ele tem do livro (e que agradece, sem palavras, cada vez que a manipula), diante de tal novidade, gera outra cópia, que seguirá viajando. Contudo, é a palestrante a responsável pelas novidades principais: Coetzee perdeu um filho, em um desastre de carro (e, depois disso, escreve O Mestre de Petesburgo, sobre Dostoievski perdendo um filho); foi casado durante muitos anos, teve dois filhos, e agora vive com uma mulher, que chama, quando a apresenta, de partner. O presente era uma sacola de papel com algumas revistas acadêmicas, oferecimento da Universidade que a professora representa a um de seus colaboradores. "Preciso reler Dusklands", ele pensa, no caminho para casa.
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quarta-feira, 7 de outubro de 2009
Vestimenta
Julia Kis. In: Coetzee, Summertime, p. 34.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
Coetzee
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
Dublinesca
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São outros tempos, definitivamente: observe as lâmpadas de camarim, atrás de Vila-Matas, as cores vivas, a nitidez. Agora observe o casaco puído de Beckett, lá em cima, a granulação da imagem no sobretudo de Nathalie Sarraute ou os sapatos desbotados de Claude Simon. Dois futuros Nobel de Literatura em uma editora tão pequena: Editions de Minuit. Trata-se, como se houvesse qualquer dúvida, do tempo da montagem, da edulcoração, do espetáculo, da pose, da maquiagem, dos bastidores de talk-show, das transações milionárias - não que eu tenha qualquer coisa a dizer contra isso, só é curioso o abismo semiótico que se abre quando confrontamos duas imagens que teriam muito em comum (a amizade literária), mas cuja aproximação se detém, desconfiada, quase com repulsa.
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terça-feira, 29 de setembro de 2009
Perseguindo um significante
1b) Belacqua é um leitor, a Divina Comédia inicia o conto. Prepara uma lagosta para o jantar: ela está aí como um proto-signo da agonia, da espera, do vazio, da impossibilidade, da angústia e do silêncio. Este é o primeiro Beckett, Beckett antes de ser Beckett, e aparece uma lagosta, que será morta lentamente na água fervente, For hours, in the midst of its enemies, it had breathed secretly, a lagosta lutou na água, é o que ele diz no fim do conto, para morrer em agonia, em outra água: um familiar que é monstruoso.
1c) O pior está no fim (respiro fundo, essa é forte): Well, thought Belacqua, it's a quick death, God help us all. Uma morte rápida, esse é o consolo possível, se não pensamos muito na questão. As últimas palavras do conto aparecem, em seguida: It is not. Não, nada disso, você está enganado, a lagosta morre, você morre, não há nada, não há ninguém. Implosão de toda uma ontologia enganosa através de uma lagosta. Uma lagosta!
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Minima Moralia
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
Ronald Firbank
sexta-feira, 14 de agosto de 2009
Espaços em branco
1) Sou levado a pensar sobre o espaço físico ocupado pela escritura, ou seja, o pedaço de papel. Vila-Matas, em Doctor Pasavento, experimenta mini-ensaios, tendo como base os microgramas de Robert Walser - os 526 pedaços de papel, preenchidos com uma escrita microscópica, encontrados no sanatório onde ele ficou até morrer no dia de Natal de 1956. A plataforma influencia diretamente sobre aquilo que é escrito, por conta de seu espaço controlado: contigência e expressão.
2) Mínimos, múltiplos, comuns (João Gilberto Noll) funciona assim. As fichas de Barthes, sempre idênticas, sempre pautadas, preenchidas só em uma face (reunidas em caixas e caixas). O poeta de Pale Fire, de Nabokov, também metódico quanto a quantidade de fichas que abarcariam cada um dos trechos de seu poema. Walser escrevia em folhas de rascunho, notas fiscais, folhetos publicitários. Philip Roth diz: "Procuro escrever ao menos uma página por dia; na pior das hipóteses, tenho 365 páginas escritas em um ano - o que me parece excelente".
3) A quantidade imensa de reflexão e trabalho que se faz necessário para preencher uma única página, mas uma única página perfeita em si, um lampejo que se auto-consome, tanto mais breve quanto mais intensa. A energia criativa que nasce do restolho, do papel irregular para embrulho, do rascunho. Alheio a categorias pretensamente universais (moral, gosto, estética) o pontapé criativo inicial é sempre de ordem particular - irrelevante para essa universalização, portanto, constituindo um desvio e uma negação, que é sempre camuflada, obliterada e silenciada.
quarta-feira, 27 de maio de 2009
Os lados do círculo
A situação que inicia e encerra Os lados do círculo, de Amílcar Bettega Barbosa: um grupo de pessoas se encontra durante a noite em Porto Alegre, cada uma descendo em silêncio de uma rua diferente, cada uma segurando um objeto diferente, caminham juntas em silêncio. Na beira do rio Guaíba, na areia, depositam seus objetos, fazendo arranjos que são sempre diferentes e que permanecem ali, até o dia seguinte, até o sol nascer, até que alguém os retire dali. As pessoas abandonam seus objetos e voltam para suas casas. Esse é um culto surrealista do objeto anacronizado e ressignificado: a) Remete a Lautréamont (que está na epígrafe) e seu verso sobre a máquina de costura e o guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação (apropriado mais tarde por Breton) b) Remete ao acaso proliferante de Duchamp e dos ready-mades c) O lance de dados de Mallarmé d) Cortázar no conto “O outro céu” – que usa Lautréamont como personagem e materializa, com a imagem das Passagens (Arcadas, Galerias) urbanas, o trânsito geográfico, cultural e temporal e) Cortázar é, inclusive, “autor” de um dos contos de Os lados do círculo, deixado em um envelope, capturado por Amaro Barros, que também tem seu conto (e participa do arranjo no rio Guaíba...), onde explica tudo. Um arranjo de objetos na beira de um rio em Porto Alegre é o suficiente para lembrar que o tempo, mais do que um ilusão, é uma ferramenta ficcional que o senso comum tende a sacralizar. O tempo, portanto, é profanado em Os lados do círculo (e em muitos outros, evidentemente).
quarta-feira, 20 de maio de 2009
A cruzada das crianças.
Paul Valéry, poeta-crítico francês (1871-1945), muito apreciado por Borges & outros, principalmente por seu apuro na linguagem & sofisticação nos juízos críticos (dono de frases como "o leão é o carneiro assimilado" e "nunca se termina um livro; ele é abandonado" - a primeira utilizada por Silviano Santiago, a segunda por Vila-Matas), dedicou aquele que parece ser seu principal ensaio, ''Introdução ao método de Leonardo Da Vinci'', a Marcel Schwob -
__________________________outro francês, (1867-1905), autor de ''Vidas imaginárias'', traduzido pela 34, com prefácio de Borges, que também gostava muito deste outro francês - utilizado também por Vila-Matas, pela ficcionalização que Schwob fez de vidas reais, como faz Tabucchi, "Sonhos de sonhos" - E Valéry muito poetizou as crianças, como serpentes que se enrolam, ou ainda ouriços, que andam e falam ao mesmo tempo ("Poesia e pensamento abstrato"), próximas da vida plena e da morte plena (o inanimado, o não-ser) AO MESMO TEMPO: a criança sobrepõe os dois momentos, morte e vida. E Schwob escreve esse livro, A CRUZADA DAS CRIANÇAS - missões católicas de vários países na época das Cruzadas, que enviaram centenas e centenas de crianças, em uma procissão absurda rumo à Terra Santa, para que esta fosse reconquistada, para que Deus olhasse seus pequenos e -
__________________________ libertasse Jerusalém dos árabes malvados. Nenhuma criança chegou em Jerusalém, nenhuma criança voltou para casa.
quinta-feira, 7 de maio de 2009
Hoje é dia de poesia.
Escorrendo pelos dedos
Fora deste mundo, claro enigma imundo.
Conjurado na ilusão perdida
do banquete das almas mortas
saindo todas da mesma ferida.
De onde vem essa chaga?
Ele olha sempre pro outro
E essa resposta ainda é vaga.
Me oferece um cigarro
E entre um e outro pigarro
Me conta a saga de um perdedor:
"Sepultei a infância no fundo do abismo
Alimentei um monstro mole e indeciso
Com carne, capricho, esse ente arisco
Espécie de espaço do acaso
Minha vida era o último passo
Uma coisa é o que digo,
outra coisa é o que faço."
segunda-feira, 20 de abril de 2009
Cães.
terça-feira, 14 de abril de 2009
Um rancho de palha e barro
"Não existe nada simultaneamente mais real
e mais ilusório do que o ato de ler"
Ricardo Piglia
Era um velho encarquilhado, de muitas posses, que decidira, após um sonho perturbador, livrar-se dos livros. Começou pela própria biblioteca: lotou o carro com os volumes de seu apartamento na cidade e seguiu para o campo, onde estava a casa que abrigava sua biblioteca. No amanhecer do terceiro dia, com a ajuda de dois empregados, ergueu uma fogueira e lá queimou papel até a madrugada.
Entretanto, os sonhos voltaram ainda mais opressivos. Por vezes sonhava com memórias reais, de sua juventude, ainda estudante, formando sua biblioteca com os parcos recursos de que dispunha. Na última semana de cada mês, com sua mochila e suas reservas financeiras mensais, percorria a cidade, andando atrás de livros, nas lojas de usados. No sonho tratava-se de um dia interminável, em que ele refazia o percurso centenas de vezes, e sempre que passava pelos mesmos lugares, novos livros surgiam, e sua mochila abarrotava-se e tornava-se cada vez maior, ao passo que ele diminuía e era, por fim, esmagado.
Tratou de comprar bibliotecas de velhas viúvas e jovens herdeiros, em tudo ateando fogo. Em seu esforço biblioclasta fez com que o mercado de raridades se valorizasse e desse modo gastou grande parte de sua fortuna comprando lotes e estoques inteiros, em tudo ateando fogo. Os negociantes tomavam-no como um colecionador excêntrico, de nada sabiam.
Perdia a razão progressivamente, para a história de sua lucidez restavam poucas linhas vazias. Sua consciência ardia como a fogueira no pátio, inexorável, e o conteúdo dos sonhos crescia em malícia e perdição.
Alguns meses depois do primeiro sonho, diante da fogueira, abriu um volume prestes a ser queimado. Chamou-lhe a atenção a capa verde e as letras douradas no frontispício. Abriu numa página qualquer, ao acaso, e leu o breve relato de uma família queimada viva dentro de uma cabana de palha, de onde saíram os gritos que acordaram o narrador daquela história, um velho professor que procurara conforto e descanso para si e seus livros naquela aldeia afastada. No fim do relato, recorda-se do dia que ensinara as primeiras palavras em latim ao filho de seus vizinhos. Um aluno promissor, transformado em cinzas junto com seus pais e sua irmã recém-nascida.
Transtornado pela potencial queima daquela família, já mortalmente envolta pelas chamas uma vez, o velho mandou apagarem a fogueira e recolheu-se em seu quarto com o resto dos livros, de onde, segundo consta, nunca mais saiu.