domingo, 2 de fevereiro de 2020

Versões do sacrifício

"Como mencionei no início, entre os livros dedicados ao escritor polonês e sua obra perdida, está aquele de Cynthia Ozick, intitulado The Messiah of Stockholm. Nesse livro de 1987, a escritora americana imagina que um homem, que se acredita ser o filho natural de Bruno Schulz, entra em contato, numa livraria antiquária de Estocolmo, com um estranho personagem, uma mulher que afirma ter o manuscrito de O Messias. O manuscrito eventualmente desaparecerá de novo (para ser mais exato, será queimado por aqueles que o consideram falso), mas o protagonista continuará a se perguntar se esse livro realmente era O Messias.


Bem, alguns anos depois da queda do império soviético, no início da década de 1990, Bronislaw Geremek, historiador e então ministro das Relações Exteriores polonês, disse a Francesco Cataluccio que fora abordado por um diplomata sueco algum tempo antes. Esse diplomata havia sido contatado em Kiev por um ex-agente da KGB, ou pelo menos por alguém creditado como tal, que afirmara que o manuscrito de O Messias de Bruno Schulz estava nos arquivos da polícia política e que, se o governo sueco estivesse interessado ou pudesse ser mediador junto ao governo polonês, ele estaria disposto a vendê-lo. Geremek conseguira obter uma página desse manuscrito para enviá-lo a especialistas que pudessem atestar sua autenticidade. A opinião fora que poderia realmente se tratar de O Messias. Pagou-se, então, ao diplomata sueco a quantia necessária para resgatar o texto, e ele, com a soma solicitada, partiu para a Ucrânia.


Talvez tenha retirado o manuscrito, talvez não. Não podemos saber, porque, durante sua viagem de regresso, sofreu um acidente: seu carro pegou fogo e ele e o motorista morreram. Como o acidente aconteceu, se foi uma morte provocada ou acidental, não podemos saber. Nem podemos saber se o manuscrito estava no carro, e então, como no romance de Ozick, foi queimado, ou se o próprio diplomata havia retornado com as mãos vazias e o manuscrito ainda exista em algum lugar. Também pode ter sido um quadro montado para conseguir, naqueles anos confusos e terríveis, trazer para casa uma ótima soma de dinheiro em dólares americanos"

(Giorgio van Straten, Histórias de livros perdidos, trad. Silvia Felix, Unesp, 2018, p. 56-58)


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"Há uma outra dimensão muito mais estranha do sacrifício. Permita-me usar outro exemplo do cinema, do filme Enigma (1983), de Jeannot Szwarc, história de um jornalista dissidente que se tornou espião, imigrou para o Ocidente, foi recrutado pela CIA e enviado para a Alemanha Ocidental para se apoderar de um chip de codificação e decodificação cuja posse permite a leitura de todas as comunicações entre a sede da KGB e seus outros postos. Pequenos sinais dizem ao espião que há algo errado com sua missão. À medida que nos aproximamos do final do filme, a solução é ingênua: a CIA já tinha o chip de codificação, mas, infelizmente, os russos suspeitavam desse fato, por isso pararam de usar a rede de computadores temporariamente para suas comunicações secretas. 

O verdadeiro objetivo da operação era convencer os russos de que a CIA não tinha o chip: a CIA manda um agente para consegui-lo e, ao mesmo tempo, deixa intencionalmente que os russos tomem conhecimento de que havia uma operação acontecendo para obter o chip, contando, obviamente, com a possibilidade de que os russos prenderiam o espião. O resultado final será que, ao conseguirem evitar a conclusão da missão, os russos estarão convencidos de que os norte-americanos não têm o chip e que por isso é seguro usar aquela via de comunicação...

O aspecto trágico da história, obviamente, é que a CIA quer que a missão fracasse: o agente dissidente é sacrificado em nome do objetivo maior da CIA, que é convencer o oponente de que ela não detém o segredo deste"

(Slavoj Zizek e Boris Gunjevic, O sofrimento de Deus: inversões do Apocalipse, trad. Rogério Bettoni, Autêntica, 2015, p. 47-48)


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