O filme Portrait de la jeune fille en feu pode ser encarado também como uma sorte de relato bakhtiniano - e isso a partir de, pelo menos, dois caminhos: em primeiro lugar, o filme faz ver uma camada subterrânea da vida em comum, da vida em sociedade e da vida do discurso (aquilo que Bakhtin chama de carnavalização, a partir de Rabelais - e que, entre outros, Carlo Ginzburg seguirá a partir do moleiro Menocchio); em segundo lugar, o filme coloca em circulação uma sutil sobreposição de vozes, em um contínuo esforço de mesclar diferentes registros de estilo e também de interpretação de textos e discursos alheios (algo em torno àquilo que Bakhtin aponta a partir das noções de dialogismo e polifonia).
Existe uma estratificação social muito clara operando no contato entre as mulheres do filme: a pintora que chega à ilha é, na medida do possível, independente, pois tem um ofício e um negócio que herdará do pai (e está firmemente ligada à cidade, um dos principais pontos de ancoragem da "burguesia"); a retratada, por sua vez, é filha de uma condessa e está isolada da cidade, vive na ilha distantes dos teatros e das novidades literárias (ainda assim, mesmo com tal privação dos sentidos, mantém a postura aristocrática que se espera); por fim, a empregada da casa, uma menina bem mais jovem, que cuida do fogo, da cozinha e da comida - será ela a responsável pela grande sequência de mistura e carnavalização do relato, quando as três vão juntas à festa popular, noturna e feminina organizada ao redor do fogo.
A mistura dos corpos gera e espelha a mistura dos discursos, exatamente como postula Bakhtin. O filme acrescenta uma camada a esse jogo polifônico precisamente quando entra em questão o livro (o livro que Héloïse pega de Marianne já no início). Trata-se de uma edição das Metamorfoses de Ovídio e adiante na história as três mulheres lerão juntas, na cozinha, diante do fogo (mais uma vez), a história de Orfeu e Eurídice. Cada uma delas apresentará uma leitura diferente do trecho de Ovídio e, além disso, o relato mítico será "citado" ao menos mais duas vezes: na despedida de Héloïse e Marianne e, alguns anos depois, no quadro que Marianne apresentará em uma exposição.