1) O rei das sombras, romance de Javier Cercas, é mais um artefato artístico em uma longa cadeia de reelaborações de Homero e seus personagens. O objetivo principal de Cercas no romance - seu romance sem ficção, como ele diz - é apresentar as complexidades de Manuel Mena, parente seu que lutou na Guerra Civil Espanhola do lado dos fascistas. Um dos muitos recursos utilizados por Cercas para delinear o personagem - sendo o uso de fotografias talvez o mais notório - é a aproximação que faz dele com Aquiles, o guerreiro da Ilíada.
2) "A morte de Manuel Mena tinha sido gravada a ferro e fogo na imaginação infantil de minha mãe como aquilo que os gregos antigos chamavam de uma bela morte", escreve o narrador no início do romance. "Aquiles demonstra sua nobreza e sua pureza arriscando a vida num tudo ou nada (...) para minha mãe, Manuel Mena era Aquiles" (p. 17).
3) Aquiles, porém, é também fonte de instabilidade e ambiguidade para a narrativa, como Cercas logo aponta. Aquiles é tanto aquele que alcança a bela morte como aquele que, reencontrado no Hades, declara que pior posição na vida é sempre preferível à melhor posição na morte: "na verdade ele [Manuel Mena] é o Aquiles da Odisseia e está no reino das sombras maldizendo o fato de, morto, ser o rei dos mortos e não o servo de um servo em vida" (p. 251). O Aquiles da Ilíada é o da bela morte, do sacrifício pela pátria; o Aquiles da Odisseia, contudo, é um herói arrependido, não-reconciliado com a morte, que preferia estar na terra, como servo de outro, do que reinar sobre os mortos.
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