1) Fernando Pessoa, depois de se definir como o "Supra-Camões", colocou em prática, com a dinâmica dos heterônimos, uma encarnação de Shakespeare. Pessoa coloca em cena uma série de vozes que são, simultaneamente, independentes e entrecruzadas - e essa cena é o próprio espaço poético cheio de camadas criado por Pessoa (é por isso que José Augusto Seabra o chama de poetodrama). Sendo todos e sendo ninguém, Pessoa arma um teatro do próprio e do alheio, impossível de sintetizar ou de abordar estruturalmente - pois já não possui centro.
2) Para Harold Bloom, Shakespeare "inventa o humano" porque tem dentro de si todas as reações, todos os sentimentos, tipos, afetos e possibilidades já pensados e jamais pensados - antes de chegar ao palco, o mundo se forma dentro da mente inabarcável de Shakespeare, sem interrupção e sem tempo. É o problema da memória de Shakespeare como a memória da tradição. Pessoa, com a dinâmica dos heterônimos, miniaturiza o processo, como se estivesse em um laboratório (o que Pessoa faz na poesia, Pirandello está fazendo no teatro).
3) Como em Shakespeare, Pessoa dispersa os pertencimentos possíveis dos heterônimos. É impossível determinar fronteiras: as vozes são feitas de fragmentos de neopaganismo clássico, estoicismo, simbolismo francês, Sebastianismo, Whitman e Poe, ocultismo, futurismo, e muito mais. Vila-Matas exercita uma atualização dessa dramaticidade em O mal de Montano, quando monta os fragmentos de diários de escritores no ir e vir de uma narrativa que está sempre desmentindo seus pressupostos. Gonçalo Tavares esboça um movimento semelhante em sua série "O Bairro" (Senhor Valéry, Senhor Breton...), na qual os Nomes Próprios da Tradição são ressuscitados em um jogo das cadeiras.
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