terça-feira, 15 de outubro de 2024

O milagre de Petrônio


Milagre, porque o Satiricon, à primeira vista, parece ter sido escrito por ocasião de alguma viagem no tempo: diríamos que é um romance realista burguês que surgiu em plena Antiguidade escravagista. Biografia quase balzaquiana do parvenu Trimalcião, negociante enriquecido, psicologia nietzschiana do grupo dos libertos, com seu ressentimento, sua sobrecompensação do desprezo de classe, seu desdém ciumento pelos outros grupos sociais... Parece milagre mas não é, e o Satiricon não é um romance: é uma sátira menipéia (cf. Auerbach, Mimesis, Paris, Gallimard, 1969, p. 35 e N. Frye, Anatomie de la Critique, trad. Durand, Gallimard, 1969, p. 376). Petrônio não constrói personagens com uma consistência balzaquiana: ele capta no ar, no fio da vida cotidiana, uma película superficial, a das conversas, das opiniões ridículas e reveladoras, das entonações e expressões que revelam todo um mundo numa frase; é a arte de comédia de costumes ou de teatro de "revista"; esta arte se interessa pelos tipos sociais e recenseia as excentricidades, bem como os tipos "morais", o Avaro, o Distraído, o Soldado Fanfarrão. É uma arte mimética, uma arte do "rôle de composition" e não existe grande distância entre Petrônio e Plauto.

Esta arte de caricaturista decepcionaria, se a julgássemos pelo romance moderno: o Satiricon daria uma impressão de negligência, de repetição (a refeição na casa de Trimalcião é interminável), de não ter nexo; mas Ubu Rei também. O desdém evidente que Petrônio sente pelos libertos que coloca em cena não é um desprezo social que tinha por eles quando escrevia; certamente, devia considerá-los como indivíduos presunçosos e subalternos, mas, se o Satiricon é satírico, não é porque Petrônio pensa isso deles, mas porque escreve uma sátira. O romance burguês não é satírico: é sério, isto é, não é nem épico ou trágico, nem cômico ou satírico; mas, como diz Auerbach, a Antiguidade ignora o sério: para falar de temas "realistas", ela só conhece o tom satírico, e não o tom sério e neutro do romance burguês; ela só pode falar de temas "grosseiros" zombando deles. 

O que atraiu o escritor Petrônio não foram os libertos na relação que mantinham com o grupo social ao qual pertenciam ele mesmo e seus leitores escolhidos: foi esta sua psicologia tão particular, um prato cheio para um caricaturista. O que permanece único é o talento de Petrônio para discernir e traduzir esta psicologia tão moderna e tão estranha às categorias mentais da Antiguidade; se Petrônio em nada anuncia Balzac e Zola, em pequena escala ele anuncia a visão psicológica da humanidade e do ressentimento que aparece em Nietzsche ou Dostoiévski.

(Paul Veyne, A elegia erótica romana: o amor, a poesia e o Ocidente, trad. Milton Meira, Brasiliense, 1985, p. 122, nota 49)

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