"Depois de ter fugido da minha família, ainda mais rápida e completamente fui deixando de usar a norma linguística de Reims - ou o que restava dela - porque estava tão em desacordo com o lugar - Paris - e o meio - pequena e média burguesia cultural - o quadro social da minha existência, onde a língua de qualquer outra região soava estranha e aquele que a empregava poderia ser designado como 'provinciano' ou 'do interior' para quem vem das províncias e que continuam a usá-la. Aprende-se isso com os olhares céticos ou os comentários sarcásticos daqueles que têm certeza da legitimidade social e da superioridade da norma linguística que empregam. Descobrimos, espantados, que esta ou aquela palavra que sempre usamos é desconhecida por aqueles com quem conversamos, e que ela ofende os ouvidos daqueles acostumados ao 'bom uso' da língua, à norma de prestígio.
Por isso, logo se compreende que se devem eliminar certos usos, certos modos de falar, certo vocabulário. A língua dos dominantes é a língua considerada legítima. O exemplo paradigmático desse sentimento de superioridade linguística por parte dos dominantes pode muito bem ser a forma como o narrador de Em busca do tempo perdido sublinha por pura diversão os erros de francês da criada da sua família, Françoise."
(Didier Eribon, Vida, velhice e morte de uma mulher do povo, trad. Luzmara Curcino, Ayiné, 2024, p. 170)
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FRANÇOISE Cozinheira da tia Léonie, em Combray, ela passa em seguida a servir os pais do herói, após a morte desta em 1894. Nascida nos anos de 1830, Françoise tem, então, mais de sessenta anos. Ela terá, junto ao herói, um papel de governanta e lhe demonstrará sempre muita simpatia. É dedicada, atenta, mas também ciumenta em relação às outras domésticas. Respeitosa das hierarquias sociais, ela não se deixa influenciar facilmente e sabe dar prova de lucidez sobre as pessoas. Em Combray, ela é a grande sacerdotisa da cozinha que sabe regalar os paladares e as imaginações.
Seu personagem é indissociável do romance campestre que contém a primeira parte de No caminho de Swann, e ainda mais por ela parecer ancorada na tradição pela sua linguagem, que ama dar a certos termos seu sentido antigo. Em Paris, ela é mais que uma simples doméstica: desempenha um papel nas relações mantidas por outros personagens. Possui a religião do dinheiro, muito mais do que a da posição social, uma das razões pelas quais ela não gosta de Albertine, que não é uma jovem rica. Sua perspicácia fez-lhe adivinhar os sentimentos dolorosos que a jovem suscita no coração do herói.
A coexistência de afetos ambivalentes, como a bondade e a crueldade, o amor e o desprezo que ela manifesta alternadamente pela auxiliar de cozinha, por Albertine ou por seus patrões faz dela um personagem complexo.
(Michel Erman, Em busca do tempo perdido. Dicionário de nomes e lugares, trad. Carla Silva, Biblioteca Azul, 2015, p. 46-47)
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