segunda-feira, 27 de maio de 2024

A ira



1) Em seus Adágios, livro de retalhos, coleção de frases e máximas reunidas ao longo da vida, Erasmo de Roterdã apresenta o provérbio que diz "a ira envelhece tardiamente", Ira omnium tardissime senescit. É o oposto do famoso apotegma de Aristóteles, escreve Erasmo, que, como conta Diógenes Laércio (5, 18), quando questionado sobre qual coisa envelhece mais rapidamente, respondeu: "o benefício". Cícero, juntando ambas as sentenças, disse (Pro Murena, 42): "Aquilo que agrada será esquecido; o que desagrada será lembrado". 

2) O ponto principal do provérbio é expressar a ideia de que as pessoas lembram mais das injúrias do que dos benefícios. O provérbio grego, informa Eramos, parecer ser tirado de Sófocles, que em Édipo em Colono coloca essas palavras: "A ira não conhece a velhice, exceto a morte; a dor só não atormenta os sepultos". Enfim, a matéria da ficção desde os primórdios: indivíduos que carregam ao longo da vida não apenas as injúrias, mas também os equívocos, os traumas, os deslizes, as próprias falhas, remoendo infinitamente, desejando vingança, desejando que fosse possível voltar no tempo para fazer diferente e assim por diante (nesse sentido, é interessante pensar no uso que faz Coetzee de Sófocles - com um desvio significativo por Dostoiévski).

3) Erasmo, contudo, recua ainda um pouco mais - vai em direção a Homero, que funciona como o repositório-padrão. No livro IX da Ilíada, Erasmo encontra a história da deusa Ate, que tem o hábito de provocar tumultos entre os homens, "sendo dotada de olhos penetrantes e de pés velocíssimos". As Preces seguem atrás, tentando reparar os danos, com seus "olhos estrábicos e pés claudicantes", "com o que o poeta queria aludir ao fato de que as ofensas são sempre rápidas e as reconciliações bem mais lentas, pois os homens recordam com mais frequência as injúrias" (Erasmo, 101 Adágios, tradução, seleção e notas de Newton Cunha, Perspectiva, 2024, p. 77-78). 

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