1) Um aspecto fundamental de Proust que fica de fora do ensaio de Benjamin (que comentei dias atrás) é a relação entre a obra e o dinheiro. Entre muitas coisas que se tornam legíveis no século XIX a partir de Proust, uma delas é a relação entre difusão do impresso e literatura: Hugo, Balzac, Dumas, Dickens escreveram o tanto que escreveram porque com isso ganhavam dinheiro (e cabe a reflexão, que Benjamin não faz, da relação entre herança e obra em Proust, ou seja, o fato de Proust não precisar "escrever para ganhar dinheiro" e poder, simplesmente, escrever - elemento valorizadíssimo adiante por Barthes, que também não fará a conexão).
2) Flaubert, por sua vez, que vivia de rendas, estava disponível para desenvolver a poética da lentidão que desenvolveu - de novo, por não precisar escrever para ganhar dinheiro, podia simplesmente escrever (e especialmente reescrever, virando as frases do avesso, passando um dia inteiro ao redor de uma única frase e, ao final do dia, jogá-la fora, como relata em várias cartas a Louise Colet). No caso de Proust, Jacques Bonnet (em seu livro Algumas historietas) dá números exatos: ele recebeu 1,35 milhão de francos de herança depois da morte da mãe (Bonnet indica em nota que, em 2010, esse valor equivaleria a 4,1 milhões de euros).
3) Faz parte da dimensão da obra de Proust sua possibilidade de distanciamento do mundo e atenção obsessiva à escrita (a procrastinação da publicação, por exemplo, e a revisão interminável - embora isso também fosse o caso para Balzac, embora com efeitos distintos; é preciso mencionar também que Proust arca com os custos da publicação do primeiro volume, em 1913, pela editora Grasset). Benjamin fala do estilo asmático de Proust, relacionando com a dimensão do "exercício espiritual" e da "auto-absorção" de Loyola (Barthes, de novo); é preciso acrescentar a noção de um estilo que é herança (simbólica) de uma herança (financeira), um tema que, de resto, se encaixa naquele outro que Benjamin também fala em seu ensaio: a relação entre "mostrar" e "tocar" (Proust nunca "entra em contato", escreve ele).
Também o "apaixonado e lúcido" Schopenhauer (como diria Borges) considerava uma heresia escrever por dinheiro. Encontra-se no Parerga e paralipomena: "As obras mais primorosas dos grandes homens são todas da época em que eles ainda tinham de escrever de graça ou por honorários muito reduzidos".
ResponderExcluirMesmo após uma série de imprecações (divertidíssimas, por sinal) e finos desvarios contra os "escrevinhadores", é dificil acreditar que "todo escritor torna-se ruim assim que começa a escrever com o objetivo de lucro". Por ter um olho no palco e outro na bilheteria Shakespeare tornaria-se menor?
É interessante observar a dependência clássica de muitos artistas com algum "mecenas", o qual lhe dá tema e financiamento para sua obra numa só tacada (penso em Michelangelo). Em contrapartida, uma dependência moderna não refere-se apenas ao mero sustento do artista ou encomenda de determinada obra, mas também ao próprio impulso necessário para produção. Apenas sob pressão de um contrato fechado, contendo um prazo determinado com tal ou qual gravadora, Chico Buarque lograva compor suas canções. Caso faltasse este leitmotiv, segundo ele mesmo conta, quedaria numa procrastinação miserável.
Caso vivesse nos dias de hoje, creio que Proust continuaria a escrever grossos calhamaços, trancado no quarto e deitado na cama, cuidando de lanchar seu iogurte nos intervalos do árduo trabalho; tratando-se de Dickens, Balzac e Dumas, provavelmente transformatiam-se em roteiristas de cinema ou seriam empregados da Netflix -- na melhor das hipóteses.