1) Já no começo de Fragmentos de um discurso amoroso Barthes apresenta esse tópico que será recorrente, tópico que já mencionei, a relação entre interior e exterior e a modificação recíproca de cada uma dessas esferas a partir da intervenção - sempre intempestiva, extemporânea, abrupta - da carga de pathos que o olhar do artista (ou do crítico, ou de quem quer que seja) apresenta. "Esqueço todo o real que, em Paris, excede seu charme", escreve Barthes, e continua: "a história, o trabalho, o dinheiro, a mercadoria, a dureza das grandes cidades; nela vejo apenas o objeto de um desejo esteticamente retido. Do alto do Père-Lachaise, Rastignac lançava à cidade: Agora é entre nós dois; eu digo a Paris: Adorável!".
2) A ligação entre indivíduo e cidade vem dois parágrafos depois, quando Barthes escreve que "o sujeito amoroso percebe o outro como um Todo (à semelhança da Paris outonal) e, ao mesmo tempo, esse Todo parece-lhe comportar um resto, que ele não pode dizer". Na oscilação entre Todo e resto se dá o discurso amoroso, nesse intervalo em que se "imagina que o outro quer ser amado, como ele próprio gostaria de ser", escreve Barthes (um sistema de reciprocidade, de confluência e sobreposição entre Todo e resto), e continua: "o outro de que estou enamorado me designa a especialidade de meu desejo".
3) A virada desse argumento é sutil e complexa, pois Barthes vai usar Lacan (uma frase do primeiro Seminário: "não é todos os dias que se encontra o que é próprio para dar a vocês a imagem exata do desejo de vocês") para comentar "a diferença entre a transferência analítica e a transferência amorosa" e, em seguida, vai usar Proust para lançar o "grande enigma" do qual "jamais descobrirei a chave": "por que desejo Fulano?" ("cena da especialidade do desejo: encontro de Charlus e de Jupiano no pátio do Palácio de Guermantes (no início de Sodoma e Gomorra)"). Antecipando as ideias sobre o punctum (mas também resgatando o que escreve sobre o barômetro de Flaubert em "O efeito de real"), Barthes insinua que a diferença entre a transferência analítica e a amorosa é que esta última se dá na operação do detalhe: "O que, nesse corpo amado, tem vocação de fetiche para mim? Que porção, talvez incrivelmente tênue, que acidente? A forma de uma unha, um dente um pouco partido obliquamente, uma mecha, um modo de separar os dedos falando, fumando?" (Fragmentos de um discurso amoroso, trad. Márcia Valéria de Aguiar, Martins Fontes, 2003, p. 10-12).
3) A virada desse argumento é sutil e complexa, pois Barthes vai usar Lacan (uma frase do primeiro Seminário: "não é todos os dias que se encontra o que é próprio para dar a vocês a imagem exata do desejo de vocês") para comentar "a diferença entre a transferência analítica e a transferência amorosa" e, em seguida, vai usar Proust para lançar o "grande enigma" do qual "jamais descobrirei a chave": "por que desejo Fulano?" ("cena da especialidade do desejo: encontro de Charlus e de Jupiano no pátio do Palácio de Guermantes (no início de Sodoma e Gomorra)"). Antecipando as ideias sobre o punctum (mas também resgatando o que escreve sobre o barômetro de Flaubert em "O efeito de real"), Barthes insinua que a diferença entre a transferência analítica e a amorosa é que esta última se dá na operação do detalhe: "O que, nesse corpo amado, tem vocação de fetiche para mim? Que porção, talvez incrivelmente tênue, que acidente? A forma de uma unha, um dente um pouco partido obliquamente, uma mecha, um modo de separar os dedos falando, fumando?" (Fragmentos de um discurso amoroso, trad. Márcia Valéria de Aguiar, Martins Fontes, 2003, p. 10-12).
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