1) Ontem, olhando o mar, pensei na recorrência desse momento enigmático em que interior e exterior se mesclam em um dado ponto arbitrário do tempo e do espaço. Em De amor e trevas, Amós Oz fala dos dez a quinze minutos que passa por dia caminhando em direção ao deserto, não para vê-lo ou vivenciá-lo diretamente, por si, mas "para manter a perspectiva da eternidade"; ou, talvez, para testar e comprovar que ainda tem a capacidade de extrair sentido, anos a fio, de uma mesma paisagem - mostrando com isso que a paisagem se transforma em direta relação com a carga de pathos que o artista leva em seu olhar.
2) Nas primeiras páginas de O que vemos, o que nos olha, Didi-Huberman resgata um trecho do Ulisses de Joyce: Stephen Dedalus olha o mar e o mar lhe devolve uma lembrança - como se tivesse sido preciso fechar os olhos de sua mãe para que sua mãe começasse a olhá-lo verdadeiramente, escreve Didi-Huberman. Stephen Dedalus diante do mar - e diante do mar não se pode confiar nos sentidos (a cor da água se transforma, os sons perdem a profundidade), mas talvez seja o caso de confiar nessa particular articulação entre sentidos e imaginação (ou ainda, a articulação entre o treinamento dos sentidos - a capacidade de ler os elementos - e a carga de pathos que o indivíduo carrega consigo e que, ao mesmo tempo, mostra a ele que parte da equação do sentido sempre escapa ao controle). Homero cego diante do mar, contando o bater das ondas, calculando a maré. A frota de Agamenon e todos os signos que o mar leva àquele que sabe ver: pedaços de madeira, vegetação - a terra firme está próxima.
3) A carga de pathos que ao mesmo tempo interfere no e potencializa o treinamento dos sentidos é amorfa e fluida, oscila no tempo e no espaço em múltiplas e simultâneas posições - una esfera infinita, cuyo centro está en todas partes y la circunferencia en ninguna, como escreve Borges sobre Pascal. O pathos, sendo paixão e excesso, se cristaliza eventualmente naquilo que Barthes chama "discurso amoroso" (e note o caráter fugidio da matéria: ele só pode ser apreendido em "fragmentos", e esse discurso só pode ser "um discurso", Fragmentos de um discurso amoroso (1977), um entre vários, na oscilação da linguagem e consequentemente do inconsciente, já que Lacan também dizia - no seminário 11 - que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, não a linguagem, mas uma linguagem, como um discurso amoroso). A carga de paixão com que se olha o mar (ou o deserto, ou a página de um livro) é tanto o que desafia quanto o que legitima o treinamento - ou, como escreve Barthes, "forças das estruturas: talvez seja isso o que nelas desejamos" (Fragmentos de um discurso amoroso, trad. Márcia Valéria de Aguiar, Martins Fontes, 2003, p. 172). Não é justamente o que se vê no mar revolto do poema de Bolaño/Cesárea Tinajero?
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