Tchékhov, na condição de médico, vai visitar uma ilha-prisão [o tipo de lugar aprazível que só os russos conseguem imaginar] na costa oriental da Rússia. Isso acontece em 1890, quando o escritor tinha trinta anos de idade. São poucas semanas de visita, e por isso Tchékhov toma notas de forma febril, observando tudo que pode, recolhendo depoimentos, percorrendo o território a pé, sem descanso. Muitas das histórias que Tchékhov recolhe carregam, sem dúvida, sua marca, ainda que não tenham sido criadas por sua mente - o que mostra que a ficção pode estar, eventualmente, em outro lugar.
Desde sua fundação, a vida em Due manifestou-se de um jeito que só pode ser representado por sons inexoravelmente perversos, desesperados, e pelo impetuoso vento frio, que nas noites de inverno sopra do mar sobre as fendas, o único a poder cantar livremente. Por isso, causa estranheza ouvir esse silêncio ser de repente quebrado pela cantoria de Skandyba, o esquisitão de Due. Trata-se de um forçado, um velho, que desde o primeiro dia de sua chegada a Sacalina recusou-se a trabalhar, e diante de sua invencível obstinação, puramente animal, todas as medidas coercitivas mostravam-se inúteis; foi posto no escuro, foi açoitado inúmeras vezes, mas suportava estoicamente o castigo e depois de recebê-lo exclamava: "Não adianta que eu não vou trabalhar!". Tentaram de tudo com ele e, por fim, desistiram. Agora perambula por Due e canta.
Anton Tchékhov. Um bom par de sapatos e um caderno de anotações. Seleção e prefácio Piero Brunello. Tradução do russo e do italiano Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Martins Editora, 2007, p. 65.
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