1) Emilio Renzi, narrador, personagem e alter-ego de Ricardo Piglia [cujo nome completo é justamente Ricardo Emilio Piglia Renzi], costuma atravessar as narrativas de que participa com suas notas. São comentários sobre os mais variados assuntos e, principalmente, notas de leitura. Muitas vezes os textos de Piglia que lemos parecem a montagem dessas notas que ficam sempre à espreita, como uma pele subterrânea da narrativa. Em Alvo noturno, essas notas às vezes surgem interpoladas na narração - o próprio narrador, uma entidade híbrida que mescla Piglia e Renzi [e todo um arquivo latino-americano de leituras] -, e às vezes são declaradas nas notas de rodapé.
2) Renzi está conversando com Cueto, o fiscal do povoado, que lhe ameaça. "Não gosto do que o senhor escreve", diz Cueto. "Nem eu", responde Renzi. "Não se meta onde não é chamado", insiste Cueto. Adotara agora o tom descuidado e frio dos matadores dos filmes, interfere o narrador, e prossegue, trazendo uma das notas de Renzi: O cinema, segundo Renzi, ensinara todos os provincianos a parecer cosmopolistas e canalhas [algo que poderia inclusive ter sido anotado por Manuel Puig, porque viu e viveu esse ensinamento].
3) Pouco antes, Renzi comenta com alguém do jornal a descoberta do corpo de um suicida. Alguém chamou o comissário Croce, que estava jantando com Renzi e o chamou para ir junto. Ah, ele levou você... diz o sujeito que conversa com Renzi no jornal: Você vai terminar escrevendo Os casos do comissário Croce... E Renzi lhe responde: Boa ideia. Talvez haja uma seção na caderneta de Renzi reservada para os projetos de livros futuros, e talvez por isso um projeto que já vinha com título ["Os casos do comissário Croce", com seus ecos de Chesterton] lhe pareceu uma boa ideia.
4) Mais adiante, Croce está no manicômio. Foi traído por seu auxiliar e aposentado à força. Começou a escrever cartas anônimas contando os podres do povoado. Foi internado. Renzi vai visitá-lo [talvez já tenha feito algum diagrama, esboçado algumas notas para Os casos do comissário Croce], leva uma lata de pêssegos e um frango assado. Croce lhe fala de Saldías, aquele judas, que me acusou de chegar a conclusões pouco científicas, diz Croce a Renzi, e continua: Pergunto a ele: 'o que você quer dizer com isso?'. E ele me responde: 'que não se trata de uma dedução, mas de uma indução'. Talvez Renzi faça uma anotação mental e lembre da polêmica entre Roger Caillois e Borges nas páginas da revista Sur, na década de 1940, sobre as diferenças entre o gênero policial tal como praticado na França e sua versão inglesa [um debate que transcorria justamente por essas categorias de indução e/ou dedução].
5) Croce está no manicômio e nada pode fazer para seguir com sua investigação - interrompida pelo corrupto fiscal Cueto. Quando Renzi o visita, Croce o coloca a par de suas últimas "induções" e lhe dá uma série de tarefas. Você trouxe lápis e papel?. Trouxe, disse Renzi. Vou ditar para você. Venha, vamos dar uma volta. Renzi responde: Não consigo escrever andando. Croce: Você para, escreve e depois continua andando. De modo que Renzi acumula notas e, ao sair do manicômio, passando de ônibus pelos arrabaldes do povoado, pensa que ele é a conexão de Croce com o mundo real, o auxiliar que a grande inteligência precisa para repassar e sedimentar suas especulações. Croce parecia ter-lhe confiado uma missão, como se sempre tivesse necessidade de alguém para conseguir pensar claramente, é o que diz o narrador. Alguém neutro para ir até a realidade e reunir dados.
6) "Reunir dados": uma prática etnográfica que Renzi conhece muito bem, que pratica há anos e que constitui, grosso modo, sua forma de ver o mundo. Renzi lera tantos romances policiais que conhecia o mecanismo muito bem, continua o narrador, no mesmo contexto citado acima. Ou seja, Renzi conhece o mecanismo de colaboração que movimenta o gênero policial [e nesse ponto a cobra morde o próprio rabo, porque a capacidade de observação de Renzi - sua capacidade de tomar notas e registrar os detalhes encobertos do real - é colocada sob a guarda de seu arquivo de leituras, e já não sabemos o que veio primeiro, a anotação ou a leitura].
3) Pouco antes, Renzi comenta com alguém do jornal a descoberta do corpo de um suicida. Alguém chamou o comissário Croce, que estava jantando com Renzi e o chamou para ir junto. Ah, ele levou você... diz o sujeito que conversa com Renzi no jornal: Você vai terminar escrevendo Os casos do comissário Croce... E Renzi lhe responde: Boa ideia. Talvez haja uma seção na caderneta de Renzi reservada para os projetos de livros futuros, e talvez por isso um projeto que já vinha com título ["Os casos do comissário Croce", com seus ecos de Chesterton] lhe pareceu uma boa ideia.
4) Mais adiante, Croce está no manicômio. Foi traído por seu auxiliar e aposentado à força. Começou a escrever cartas anônimas contando os podres do povoado. Foi internado. Renzi vai visitá-lo [talvez já tenha feito algum diagrama, esboçado algumas notas para Os casos do comissário Croce], leva uma lata de pêssegos e um frango assado. Croce lhe fala de Saldías, aquele judas, que me acusou de chegar a conclusões pouco científicas, diz Croce a Renzi, e continua: Pergunto a ele: 'o que você quer dizer com isso?'. E ele me responde: 'que não se trata de uma dedução, mas de uma indução'. Talvez Renzi faça uma anotação mental e lembre da polêmica entre Roger Caillois e Borges nas páginas da revista Sur, na década de 1940, sobre as diferenças entre o gênero policial tal como praticado na França e sua versão inglesa [um debate que transcorria justamente por essas categorias de indução e/ou dedução].
5) Croce está no manicômio e nada pode fazer para seguir com sua investigação - interrompida pelo corrupto fiscal Cueto. Quando Renzi o visita, Croce o coloca a par de suas últimas "induções" e lhe dá uma série de tarefas. Você trouxe lápis e papel?. Trouxe, disse Renzi. Vou ditar para você. Venha, vamos dar uma volta. Renzi responde: Não consigo escrever andando. Croce: Você para, escreve e depois continua andando. De modo que Renzi acumula notas e, ao sair do manicômio, passando de ônibus pelos arrabaldes do povoado, pensa que ele é a conexão de Croce com o mundo real, o auxiliar que a grande inteligência precisa para repassar e sedimentar suas especulações. Croce parecia ter-lhe confiado uma missão, como se sempre tivesse necessidade de alguém para conseguir pensar claramente, é o que diz o narrador. Alguém neutro para ir até a realidade e reunir dados.
6) "Reunir dados": uma prática etnográfica que Renzi conhece muito bem, que pratica há anos e que constitui, grosso modo, sua forma de ver o mundo. Renzi lera tantos romances policiais que conhecia o mecanismo muito bem, continua o narrador, no mesmo contexto citado acima. Ou seja, Renzi conhece o mecanismo de colaboração que movimenta o gênero policial [e nesse ponto a cobra morde o próprio rabo, porque a capacidade de observação de Renzi - sua capacidade de tomar notas e registrar os detalhes encobertos do real - é colocada sob a guarda de seu arquivo de leituras, e já não sabemos o que veio primeiro, a anotação ou a leitura].
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