Faulkner, diferentemente, é um "erro da Criação". Numa foto de James R. Cofield, datada de 1931, ele aparece com um grosso casaco de tweed, os braços cruzados, um cigarro aceso na mão direita:
Conhecemos essa aparição frontal, maciça e franca do artista como jovem imprestável, jovem imperator, jovem farmer [...] uma cara ao mesmo tempo consternada e triunfante, poderosa e frouxa, intratável mas infinitamente corruptível - enorme e fútil como o são, escreveu ele, os elefantes e as baleias. [...] Ele sabe, ou melhor, pensa que, para anular essa distância, para arrebentar esse muro inexpugnável atrás do qual cochilam ou arremetem o elefante Shakespeare, o elefante Melville, o elefante Joyce, não tem outro recurso a não ser se tornar ele mesmo elefante.
Na fotografia, Faulkner parece seguro de si:
Afinal, esse olhar que vê o elefante em 1931 é calmo. Seu mestre apareceu nele, ele ri dos reis e dos que não são reis, como diz outro prisioneiro do Sublime que guiou com mão de ferro o Sublime, Fernando Pessoa. Ele está calmo, escreveu O som e a fúria, ele é o grande reitor, o elefante.Flaubert, que só ostentou um belo corpo em sua juventude, é retratado por ele como um "corpo de madeira" (trocadilho entre roi e bois, que se perde em português), uma espécie de palhaço gordo e bigodudo que, numa carta a Louise Colet, contou seu momento de glória secreta, na madrugada em que terminou de escrever a primeira parte de Madame Bovary. Segundo Michon, o único modo de salvar a vida desse homem maníaco, que passava seu tempo burilando frases, seria imaginar que ele mentiu, que nunca foi um monge ou um trabalhador forçado. Que ele era, na verdade, um ocioso, que ficava olhando o Sena ou a sobrinha comendo geleia, as vacas e as mulheres, e que só de tempo em tempo, para fazer uma gracinha e ocupar os críticos parisienses, escrevia algumas frases perfeitas que lhe vinham de modo fácil e natural.
Como em seu romance Vidas minúsculas, o texto converge para a pessoa do escritor Michon. Mas não há nenhuma egolatria ou vaidade nessa convergência. Assim como o narrador de Vidas minúsculas, lutando com a página em branco ou com a sombra intimidadora dos Grandes Autores, acaba drogado e louco de hospício, o escritor de Corps du roi acaba escorraçado de um restaurante parisiense, caído bêbado na calçada, olhando as longínquas estrelas.
(Leyla Perrone-Moisés, Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Cia das Letras, 2016, p. 55-56)
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