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Giorgio Agamben, em seu ensaio sobre Heidegger e o nazismo, faz uma interessante revelação pessoal. As revelações pessoais, no meio de densos escritos teóricos, são sempre refrescantes (agradáveis, instigantes). Ele conta que, em 1966, durante uma das aulas em Le Thor, perguntou a Heidegger se ele havia lido Kafka. Agamben tinha 25 anos, Heidegger tinha 77. O professor respondeu que havia lido pouco, mas que ficou impressionado com uma fábula em específico, "Der Bau", a cova, ("A construção", para nós) que conta a história de um animal indefinido que, no afã de construir uma casa inexpugnável, termina por colocar a si mesmo em uma armadilha.
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Roberto Calasso, em seu livro K., fala da dança cossaca que Kafka encenava com a tradição, e ilustrava com uma passagem dos Diários: um homem deseja mover sua casa para outro lugar; começa, então, a destruir a casa e levar o material para o novo local escolhido. Termina com uma casa construída pela metade e outra destruída pela metade.
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Mas não é justamente esse, pergunta-se Agamben, o local em que vivemos? As pátrias construídas revelaram-se armadilhas para os povos que deveriam habitá-las. Uma indeterminação entre espaço público e privado, entre o espaço da segurança e o espaço da vigilância. Como construir uma casa (uma nação, um pertencimento) que não seja também uma armadilha? Como usufruir de um objeto de cultura que não seja também um documento da barbárie? A parábola de Kafka é uma parábola sobre o espaço político da modernidade.
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O nazismo deve boa parte de seu sucesso ao contato estreito que estabeleceu, desde o início, com a filosofia inovadora de seu tempo: o ser não estava mais atrelado a uma essência fixa; seu acontecimento (seu desenvolvimento) se dava a partir de uma função, uma tarefa, um pertencimento articulado historicamente. A possibilidade do nazismo estava inscrita no pensamento filosófico da época. Sendo que esse pensamento continua sendo o nosso, vivemos às voltas com uma embaraçosa proximidade com o nazismo.
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A efetividade da vida é uma armadilha no momento em que a tarefa política suprema volta-se para uma manutenção despolitizada da vida biológica e do corpo. A própria vida natural e sua manutenção (prazer) apresentam-se como a última tarefa histórica da humanidade. O nazismo cresceu porque transformou herança biológica em tarefa histórica. Duas vertentes completamente opostas mantém esse paradigma: homens há desprovidos de essência que lutam diariamente por um pertencimento utópico (árabes, israelenses) e homens que, em nome da economia global, investem na mundialização homogeneizante das subjetividades (Eike Batista).
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