sábado, 11 de janeiro de 2025

Um caso espírita



"O espírito da senhora Genlis", conto publicado por Nikolai Leskov em 1882, tem como epígrafe uma frase de Antoine Augustin Calmet: "Às vezes, é mais fácil invocar um espírito do que livrar-se dele", bastante adequado ao tom irônico da narrativa (que tem como subtítulo: "um caso espírita"). O narrador informa que a história se passa em um inverno da década de 1860, auge da febre das mesas girantes e fenômenos assemelhados.

(neste ponto é possível relembrar a citação de Kittler acerca da relação de Balzac e Poe com a fotografia, que passava por uma renovação da curiosidade pelo sobrenatural: "Balzac, com suas tendências místicas, só conseguia imaginar o ser humano como um ser que consiste em muitas camadas ópticas - como uma cebola -, das quais cada fotografia retira e arquiva a camada superior, descascando-a, portanto, da pessoa fotografada") (mas é possível também relembrar Mesmer, bem como as relações possíveis entre Mesmer, Freud e Charcot)

O elemento que confere excepcionalidade ao conto de Leskov é o fato do espírito da senhora Genlis (uma personalidade histórica: escritora e educadora francesa que nasceu em 1746 e morreu em 1830) se manifestar por meio de seus livros - não de forma metafórica, mas material: o espírito estava nos "livrinhos azuis" que a princesa russa com quem o narrador de Leskov entra em contato mantém em sua estante. 

É a princesa quem explica, aliás: Estou convicta de que o delicado fluido de Félicité escolheu para si um lugarzinho aprazível sob o marroquim feliz, que abraça as folhas nas quais adormeceram os seus pensamentos, e, se o senhor não é totalmente descrente, então espero que consiga entender isso.

(Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 9)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Personagens de Shakespeare


"Apesar do peremptório veredito de charlatanismo, emitido nos relatórios oficiais pelos homens da Ciência acerca dos intermediários entre o mundo dos vivos e o dos mortos, o espiritismo teve adeptos e o apoio de órgãos de imprensa até ao primeiro decênio do século XX. Leskov viu-o sempre apenas como forma de misticismo. Ele devia decerto gostar duma passagem de William Shakespeare: em Henrique IV, duas personagens dialogam: '- Eu posso invocar os espíritos do abismo. - Eu também posso, qualquer pessoa pode, a única questão é se eles virão' " (Noé Polli, "Comentários aos contos", Nikolai Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 263-264).


"Todo en él podía tener un doble sentido, ser verdadero y falso a la vez. Era como un personaje de Shakespeare: un ambivalente, un desconfiable. Un traidor, a lo mejor, en el sentido en que un doble agente no puede no ser un traidor. Quizás ésa fuera la verdadera modernidad de su personaje" (Alan Pauls sobre Rodolfo Fogwill, Fogwill, una memoria coral (Patricio Zunini), Mansalva, 2014, p. 27).


domingo, 5 de janeiro de 2025

Sontag, certezas


O que parece incomodar Susan Sontag na escrita de seus ensaios é a necessidade da certeza – o escritor interessante, ela escreve em uma entrada de setembro de 1975 de seus Diários, “se encontra onde existe um adversário, um problema”; quando “tudo é afirmação” não se pode ser “uma escritora boa ou útil” (ela usa Gertrude Stein como um exemplo dessa escrita da afirmação). 

O diário é o laboratório de uma escritora cuja principal esfera de atuação é a dúvida, a ambivalência, a incerteza, o intervalo entre a escolha e a não-escolha de determinado tema ou caminho. “Tenho de desistir de escrever ensaios porque isso inevitavelmente acaba se tornando uma atividade demagógica”, escreve ela em maio de 1980, sempre nos Diários

“Pareço ser a portadora de certezas que eu não tenho – não estou nem perto de ter”. São inúmeros os momentos em que Sontag ataca a si própria com suas obrigatoriedades: “tenho de desistir”, “tenho de escrever”, e, ainda assim, quantas vezes ela escapa e faz justamente o oposto? Da manutenção desse dilema ao longo dos anos surge uma obra, quase por acidente, que está aí para ser lida e revisitada.