sábado, 4 de outubro de 2025

As moedas de Teseu

Moeda do século II d.C (Kroll 180):
Teseu dominando o touro de Maratona



1) Na sua Vida de Teseu, Plutarco oferece um bom exemplo de sua estratégia de leitura e de confronto de fontes, seu posicionamento amplo e aberto de manipulação dos textos e dos discursos do passado (que será tão útil para Montaigne): na seção 25, Plutarco informa que, segundo Aristóteles, Teseu foi o primeiro a olhar para o povo e renunciar à realeza e seus privilégios; aqui ocorre o primeiro salto e a primeira aproximação comparativa: Plutarco escreve que também Homero parece dar testemunho disso, já que no "Catálogo das naus" (no Canto II da Ilíada) só usa a palavra "povo" para os atenienses.

2) De Aristóteles - textos escritos mais ou menos 500 anos antes de sua época -, Plutarco vai para Homero - mais ou menos 400 anos antes de Aristóteles, o que gera um arco de quase mil anos entre a Ilíada e a Vida de Teseu - e nesse curto-circuito tenta juntar os pedaços de Teseu, figura mítica. Já na frase seguinte, Plutarco salta para outro tema - embora ligado diretamente ao exercício do poder: a cunhagem de moedas; Plutarco afirma que Teseu foi responsável pela cunhagem de moedas com a efígie de um boi, ato para o qual oferece três explicações: 1) recordação do touro de Maratona; 2) recordação do comandante do exército de Minos; 3) incentivar os cidadãos à prática da agricultura. 

3) A questão principal a ser levantada é que Plutarco está sempre mobilizando modos de ler os textos do presente e do passado; sua leitura dos textos é sempre exposta em sua própria escrita e, nisso, ele é instigante e contemporâneo (mais uma vez, aí está o principal elo de ligação de Plutarco com Montaigne: "não consigo me livrar dele", é o que diz o segundo sobre o primeiro, em vários de seus ensaios; "sua voz está de tal forma entranhada em minha cabeça, em meu pensamento, em meu estilo, que é impossível dizer onde começa um e termina outro" - o nome de Plutarco aparece 89 vezes ao longo dos Ensaios)


terça-feira, 30 de setembro de 2025

Montaigne em movimento



"Lamentar que Montaigne tenha proclamado seu apego a uma noção contrária à do progresso (...) é um paralogismo, ou um voto piedoso que é fácil formular com quatro séculos de distância, do alto da boa consciência dada a um intelectual moderno pela convicção de conhecer a 'dialética da história'.

Coisa curiosa, os adeptos da História são muitas vezes os primeiros a esquecer que a noção moderna de história como devir coletivo dos povos ou da humanidade se formou no século XVIII, na mesma época em que a ideia moderna de progresso e, por assim dizer, complementarmente. Montaigne não teve conhecimento da História nem do Progresso - eles ainda não haviam sido inventados

Quando utiliza história no singular, é ora para designar o estudo do passado (a 'ciência da História'), ora para se referir a uma história, relativa a um indivíduo particular (o exemplo disso é dado pelo título do ensaio II, XXXIII, 'História de Espurina'). Em caso contrário, fala das histórias, em um plural que exclui por definição a ideia de um sentido único e providencial que ordenaria o conjunto dos acontecimentos passados e cujo desenvolvimento posterior seria confiado à geração presente"

(Jean Starobinski, Montaigne em movimento, trad. Maria Lúcia Machado, Cia das Letras, 1992, p. 254-255)

*

"Falar de uma filosofia de Montaigne é um equívoco. Não há sistema algum; ele mesmo afirma, por exemplo, que é inútil aprender a morrer, pois a natureza encarrega-se disso à nossa revelia; e falta-lhe também uma verdadeira vontade de ensinar como a de Sócrates (que de resto bem se pode comparar a ele) e, portanto, uma vontade de alcançar uma validade objetiva. Aquilo que escreve dirige-se a ele e vale apenas para ele; se outros descobrirem aí alguma utilidade e prazer, tanto melhor"

(Erich Auerbach, "O escritor Montaigne", Ensaios de literatura ocidental, p. 150)

sábado, 27 de setembro de 2025

Montaigne: saber viver




1) Para Montaigne, toda doxa pede e determina uma contradoxa - um "pensamento" que exige um "contra-pensamento", uma "posição" que exige uma "contra-posição" (e nisso ecoará em Rousseau, mais adiante em Derrida). Como no caso da medicina, do corpo e dos remédios, como escreve Starobinski em seu livro Montaigne em movimento: "O que Montaigne exporá de sua saúde corporal será, portanto, uma antimedicina, mas habilitada a fazer frente à medicina, pelo fato de que pode, com mais razão, invocar a experiência em que a medicina, como vimos, assenta seus mandamentos" (p. 161). Poucas linhas adiante, completa: "A techné do médico é suplantada pelo saber viver do indivíduo exposto à doença".

2) Ao tentar, portanto, estabelecer contra-pensamentos diante da doxa de distintos campos (teologia, política, filosofia, medicina, etc), Montaigne luta no interior de certos campos discursivos - ele tem dificuldade de sair da linguagem médica para falar contra a medicina, como escreve Starobinski, mas também tem dificuldade de sair da linguagem teológica ou filosófica e assim por diante (ele faz uso de categorias, termos e metáforas: esse também é o procedimento central de sua relação com os textos do passado e com as citações que, frequentemente, deixa veladas em sua dicção - especialmente com Platão, Sócrates, Plutarco).

3) Montaigne vai aproveitar os termos da medicina - a teoria dos humores, a influência do ambiente, a harmonização dos influxos externos - para retornar à textualidade, à literatura: no ensaio "Sobre versos de Virgílio" (III, V), por exemplo, vai falar do valor terapêutico do calor: pensado não pelo viés evidente, na contraposição entre cru e cozido (Rousseau, Lévi-Strauss, Derrida...), mas metaforicamente, pelo viés do reaquecimento promovido pelos afetos, pelo amor. Ao mesmo tempo em que se abre à transformação, às alterações possíveis e intempestivas, porém, Montaigne reforça várias vezes que tenta, forçosamente, manter sem perturbações o seu estado habitual (ou seja, Montaigne luta contra sua própria doxa, contra a manutenção rígida de suas próprias posições; ele é "flexível", "pouco obstinado").

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Ainda o espirro


1) Em uma nota de rodapé da Seção 2 de seu ensaio História natural da religião, David Hume cita a História natural de Plínio para comentar a proliferação de divindades no contexto do paganismo; cita ainda Hesíodo e sua informação (Os trabalhos e os dias, I, 252) da existência de 30 mil divindades; acrescenta por fim que Aristóteles (Problemas, 7, 33) aponta que os domínios das divindades foram de tal modo tão subdivididos que havia até um deus dos espirros.

2) No mesmo livro, agora na Seção 12, também em uma nota de rodapé, Hume comenta especificamente a conduta de Xenofonte (grande capitão e filósofo, discípulo de Sócrates), prova "imediata e incontestável" da credulidade geral dos homens; aconselhado por Sócrates, Xenofonte consultou o oráculo de Delfos antes de se engajar, como mercenário, na expedição de Ciro (relatada por Xenofonte na "Anábase", que descreve a campanha militar de Ciro, o Jovem, contra seu irmão Artaxerxes II, rei da Pérsia, em 401 a.C. Xenofonte participou como mercenário nesta expedição, que envolveu um exército de dez mil gregos, e narrou a jornada de retorno após a morte de Ciro na Batalha de Cunaxa).

3) Já durante a expedição, Xenofonte teve um sonho na noite seguinte à captura do general, ao qual prestou grande atenção, mas que julgou ambíguo; em seguida, com todo o exército (escreve Hume), Xenofonte considerou que o espirro (não fica claro se é o espirro de uma forma geral ou se é o espirro de alguém específico) era um presságio muito favorável (o resgate do espirro é, na verdade, uma expansão do comentário sobre um texto de Plutarco no qual um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon, a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada).

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

50 desenhos


1) Depois de revisar o comentário que faz Cristina Rivera Garza sobre o livro de Alice Oswald, no qual resgata a Ilíada a partir dos soldados mortos, reencontro o manuscrito da Ilíada do século V com suas iluminuras, suas miniaturas - pouco mais de 50 desenhos sobreviveram, depois de recortadas e coladas em um segundo manuscrito, 600 anos mais jovem: as figuras foram, primeiro, desenhadas nuas e, posteriormente, cobertas com roupas de tinta (todas as imagens, aliás, cuidadosamente numeradas: seguindo a cronologia da história, seguindo o encadeamento e a sucessão das páginas) (Um adendo importante e revelador: boa parte das miniaturas são visíveis no site do Instituto Warburg). 

2) Sobre o projeto de Oswald, escreve Rivera Garza: "É, portanto, em primeira instância, uma pilhagem. A poesia olha de soslaio para a história e, com o bisturi na mão, retira do pântano de dados e anedotas o momento único e indivisível em que um ser humano perde sua vida. Afinal, isso é a guerra; é disso que se trata a guerra: como seres humanos de carne e osso perdem suas vidas violentamente. Armado, então, com os instrumentos da poesia, Oswald arranca essa perda que é a morte do acúmulo de dados ou de sangue que tantas vezes leva à indiferença, à insensibilidade ou a leituras desconexas" ("Usos do arquivo: do romance histórico à escrita documental", Os mortos indóceis, trad. J. R. Terron, WMF Martins Fontes, 2024, p. 150).

3) De resto, a pilhagem também é um tema homérico, parte constituinte do mundo da guerra homérica: viajar, conquistar, pilhar, retornar (nesse sentido, o procedimento poético de Oswald - semelhante àquele de María Negroni em livros como Archivo Dickinson ou Objeto Satie ou Cartas extraordinarias, precisamente o procedimento da pilhagem, do rearranjo do que já existe, etc - é homérico não só em seu tema ou conteúdo (os 200 soldados reiterados, singularizados), mas em sua dinâmica formal, na transformação da pilhagem em método de organização da poesia (que se desdobra em um segundo ponto fundamental: a enumeração, como aquela que faz o próprio Homero com as naus, por exemplo). 


domingo, 14 de setembro de 2025

200 soldados

Aquiles fazendo um sacrifício, "Ilias Picta"
manuscrito do séc. V, Biblioteca Ambrosiana

1) Em seu ensaio sobre os "usos do arquivo" na literatura (terceiro capítulo de seu livro Os mortos indóceis), Cristina Rivera Garza comenta um trabalho da poeta britânica Alice Oswald, Memorial. An Excavation of the Iliad, no qual ela descarta "sete oitavos" do poema de Homero, resgatando apenas as mortes: Oswald filtra o texto homérico a partir do critério das cenas de morte, deixando na superfície de seu próprio texto apenas o registro da morte de aproximadamente duzentos soldados. Toda morte que aparece em Homero é, ao mesmo tempo, geral e específica - diz respeito ao evento incontornável da morte, que chega a todos, mas diz respeito também às especificidades daquele destino (um destino que envolve, no âmbito do poema, a maestria de Homero no trato com os detalhes: a cabeça separada do corpo; o homem curvado como chumbo).

2) O objetivo principal de Rivera Garza no resgate do trabalho de Oswald (que pode ser lido em paralelo com aquele, mais celebrado e conhecido, de Anne Carson) é comentar e enfatizar a presença dos mortos, pelo viés da "vida precária" de Judith Butler (os soldados mortos como efeito colateral da manutenção do poder, da soberania e assim por diante); o que me interessa, por outro lado, é o modo como o procedimento poético de Oswald garante seu alinhamento a uma linhagem complexa e produtiva da história literária: o uso da forma breve para apreender um conjunto de vidas - uma linha associativa que abarca Vidas dos artistas de Vasari, Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, as Vidas minúsculas, de Pierre Michon, e assim por diante.

3) Oswald transforma os soldados de Homero em vinhetas biográficas; conta suas vidas na guerra a partir do evento da morte, apresentando seus nomes em caixa alta dentro dos versos do poema: PROTESILAUS, ECHEPOLUS, ELEPHENOR, SIMOISIUS, LEUKOS, DIORES, PIROUS, etc, como entradas de uma enciclopédia ou dicionário. É Oswald quem diz, no prefácio: "Minhas ‘biografias’ são paráfrases do grego; meus símiles, traduções. Entretanto, minha abordagem da tradução é bastante irreverente. Eu trabalho bem colado ao grego, mas em vez de transpor as palavras para o inglês, eu me valho delas como fendas através das quais se vê o que Homero estava mirando" (tradução aqui).

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Contra Flaubert



De fato, detesto Flaubert.

Só mesmo um macho francês

esnobe cheio de si

para zombar a tal ponto 

dos sonhos de uma mulher.

Um macho,

quer dizer, 

alguém que não sonha.

(Os homens sempre tiveram

ciúmes dos sonhos das mulheres

porque não podem controlá-los.)

Flaubert sonhou Emma Bovary,

mas pode-se dizer, com toda a certeza,

que Emma Bovary jamais sonhou Flaubert.

(No final de seus dias, Flaubert estava 

farto da fama de Madame Bovary.

Ela era mais célebre que ele.)


(Cristina Peri Rossi, "Contra Flaubert", Aquela noite (1996), in: Nossa vingança é o amor: antologia poética (1971-2024), edição bilíngue, seleção e tradução de Ayelén Medail e Cide Piquet, São Paulo: Editora 34, 2025, p. 110)

sábado, 6 de setembro de 2025

Alice, Lincoln, Ford


1) Além de incorporar, em uma das cenas de Alice in den Städten, a presença física de um dos livros de Peter Handke, Wim Wenders também incorporou um dos filmes de John Ford, Young Mr. Lincoln, de 1939, transmitido na televisão de um dos quartos de hotel no qual se hospeda o protagonista; esse filme, contudo, é a incorporação de uma incorporação: esse filme de Ford é citado por Wenders em seu filme porque é citado, anteriormente, em um romance de Handke de 1972, Breve carta para um longo adeus (a história de um jovem escritor austríaco que viaja pelos Estados Unidos em busca de sua esposa, de quem está afastado; Ford inclusive aparece como um personagem no fim da estrada na costa da Califórnia).

2) O mecanismo narrativo básico do filme de Wenders é o da incorporação: fragmentos alheios à cronologia progressiva do filme que são costurados à história; acontece com a capa de Handke e com o filme de Ford, mas acontece também - e sobretudo - com as fotografias instantâneas que o protagonista faz com sua Polaroid ao longo de todo o filme (a primeira cena mostra o protagonista olhando e rearranjando o conjunto das fotografias que tirou até aquele momento, um passado fragmentado que irrompe no presente da narrativa: um passado que pode ser reposicionado, montado, embaralhado, como nas lições de montagem de Aby Warburg e, na esteira desse, Georges Didi-Huberman).

3) Como na fotografia que surge na abertura de A invenção da solidão, de Paul Auster, é também uma fotografia - retirada da bolsinha que Alice leva no pescoço - que reconfigura o percurso do filme: o protagonista e a menina precisam seguir viagem para encontrar alguém que se responsabilize por ela; será a avó; a menina tem uma fotografia da casa (mas não sabe onde é); como no frame do filme sobre Terezín que Sebald incorpora em Austerlitz (a mãe que, aparentemente, surge veloz, como um relâmpago, reconfigurando o percurso/narrativa de Jacques Austerlitz), e eles começam a percorrer a Alemanha de carro em busca do referente real que faz jus à imagem e que permitirá a conclusão da história (que é, mais uma vez, suspensa, postergada, quando a casa finalmente aparece - quem mora lá, agora, é "uma italiana", diz a menina). 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Alice, 1974



1) Wim Wenders lança Alice in den Städten em 1974, uma celebração da fabulação infantil e da presença ilógica das crianças na sociedade, no mundo - uma espécie de desapego com relação aos dogmas e às verdades, como acontece na Rayuela de Cortázar (de 1963), ou ainda mais intensamente em Zazie dans le métro, de Raymond Queneau (de 1959): Alice mente (cria, ficcionaliza) sobre a própria vida, ou ainda, mente a própria vida, ao mesmo tempo em que não sabe nada - não sabe o nome de solteiro da mãe, não sabe o nome da avó ("o nome da minha vó é vó", ela diz). (No ano seguinte, 1975, Perec (que dedica Vida, modo de usar a Queneau) lança W ou le souvenir d'enfance).

2) Se é difícil ligar diretamente Sebald e Wenders (ainda que o primeiro fale do segundo em seu ensaio sobre o livro de Hanns Zischler, Kafka vai ao cinema - Zischler, de resto, que também foi ator, participou de filmes de Wenders), eles compartilham um elo intenso pela via de Peter Handke: é precisamente um dos livros de Handke comentados por Sebald em seus ensaios - Wunschloses Unglück, de 1972, sobre o suicídio da mãe - que Wenders coloca no filme, sobre uma mesinha de centro no apartamento em Nova York de uma ex-amante do protagonista, que recusa sua presença depois de um devaneio filosófico.

3) Assim como o narrador de Sebald, o protagonista de Wenders caminha pelas cidades com uma câmera, registrando não aquilo que se apresenta imediatamente ao olhar, mas o atravessamento entre um momento específico, irrepetível, e a subjetividade de alguém que vive aquele momento para escrevê-lo (junto com as fotografias, e junto com a câmera, o protagonista de Wenders manipula também sua caderneta, na qual elabora um texto interminável, um texto que só pode levá-lo à beira de um colapso nervoso - não por acaso a caderneta se transforma em plataforma para o jogo da forca, quando o protagonista brinca com a criança: sempre a morte, a finitude, the undiscovered country de Hamlet que Sebald tanto usou).

domingo, 31 de agosto de 2025

Fome de terra



Ambivalência e oscilação em Sócrates: em sua postura, em seu discurso e, sobretudo, em sua experiência de vida - o pharmakon de que fala Derrida a partir de Platão, sem dúvida (como o discurso de Sócrates no Fedro se apresenta em uma performance de desafio aos limites da cidade, fora das muralhas, em direção ao bosque, mas sempre fazendo menção de retornar, etc), mas também o fato de Sócrates ter "visto o mundo", de certa forma, como soldado: "começando a partir do século VIII a. C. e continuando ininterruptamente por mais de quinhentos anos até a conquista romana", escreve Finley, "os gregos estiveram constantemente em movimento, quer como migrantes (individualmente ou em grupos), quer como revolucionários exilados".

E continua Finley: "As colônias militares e agrícolas atenienses (clerúquias) do século V a. C., totalizando dez mil homens ou mais no seu auge; o considerável número dos mercenários gregos do século IV, dos quais os Dez Mil de Xenofonte são apenas o exemplo mais famoso; a guerra civil no século III em Esparta sob Ágis, Cleômenes e Nábis - esses são exemplos que podiam se repetir a qualquer momento na história helênica, embora nem sempre com o mesmo impacto dramático. E a fome de terra foi a força propulsora. A fome de terra, por sua vez, originava-se frequentemente da expropriação privada, tendo a dívida por instrumento" ("Terra, débito e o homem de posses na Atenas clássica", Economia e sociedade na Grécia Antiga, trad. Marylene Michael, Martins Fontes, 2013, p. 69). 

sábado, 23 de agosto de 2025

Paradoxos sobre o paradoxo



1) Eros, o Doce-Amargo é, sem dúvida, um livro de análise literária sobre a poesia de Safo, sobre o grego antigo e sobre as relações entre filologia, poesia e filosofia; contudo, é também – e sobretudo – um livro sobre as estruturas profundas da poesia, sobre a colocação de certas palavras muito específicas em posições-chave dentro de uma frase, visando o melhor efeito estético possível. “Há um dilema dentro de eros que tem sido considerado crucial por pensadores desde Safo até hoje”, escreve Carson, mostrando que sua leitura diz respeito simultaneamente ao passado e ao presente.

2) Carson dá atenção às funções de certos termos e suas idiossincrasias – começando pelo “Doce-Amargo”, Bittersweet, sua tradução do glukupikron de Safo (“amor e ódio constroem entre si a maquinaria do contato humano”). Carson nota um verso no qual uma maçã está suspensa na árvore; o verbo para a “suspensão” é epeteto, que vem de petomai, o verbo “voar”. Geralmente é usado “para criaturas com asas ou para emoções que atravessam o coração”, ligado à “emoção erótica”, usado por Safo no fragmento 31 para dizer que eros “dá asas ao meu coração” ou “faz meu coração voar”. No trecho analisado por Carson – do romancista Longo, autor de Dáfnis e Cloé, do século II d.C. –, o verbo está no imperfeito, ou seja, “paralisa a ação do verbo no tempo”, já que o imperfeito expressa continuidade, “para que, como a flecha no paradoxo de Zenão, a maçã voe enquanto permanece parada”.

3) A análise de Carson é impressionante não apenas por aquilo que diz sobre um trecho, um autor, um momento do texto (como faz com o Fedro de Platão, ou com Os amantes de Aquiles [Achilleos Erastai], de Sófocles); é digna de nota também porque reitera o procedimento que sustenta o livro como um todo: buscar momentos de indefinição e ambivalência cristalizados na língua, nos significantes, na cadência poética de textos arcaicos, uma vez que o cerne da literatura é precisamente sua polissemia (“Da mesma forma que todos os paradoxos são, em certa medida, paradoxos sobre o paradoxo, todo eros é, até certo ponto, desejo pelo desejo”, resume Carson).

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Carta, luto



Consolatio ad Uxorem é uma carta escrita por Plutarco à esposa depois da notícia da morte de sua filha Timoxena, aos dois anos de idade. Ela recebeu o nome da mãe e seu nascimento foi precedido pelo de quatro meninos. Dos filhos de Plutarco, dois já haviam morrido: o mais velho e o "belo Caronte", que ele menciona na carta. Plutarco deve ter escrito a carta no intervalo entre receber a notícia em Tânagra e reencontrar sua esposa em Queroneia, que fica a mais de 64 quilômetros de distância em linha reta - uma viagem de um ou dois dias. Presumivelmente, a carta foi escrita em Tanagra e enviada com antecedência. A frase de abertura da carta já é uma referência a esse desencontro e a essa antecipação da escrita com relação ao encontro que ocorrerá em breve:

O mensageiro que você enviou para relatar a morte da nossa filhinha parece ter me perdido no caminho para Atenas; mas quando cheguei a Tânagra, soube; o funeral, suponho, já foi realizado, e meu desejo é que tenha sido realizado de forma a lhe causar o mínimo de dor, tanto agora quanto no futuro. 

Vários escritos de Plutarco são tidos, por seu estado incompleto, como rascunhos encontrados entre seus papéis após sua morte; esta carta, então, pode não ter sido publicada pelo próprio Plutarco, mas dada ao mundo por seus herdeiros literários.⁠ No entanto, consolações em forma epistolar eram frequentemente, como outras cartas, escritas para publicação.⁠ Uma comparação com outras consolações antigas (Ad Polybium de Consolatione e Ad Marciam de Consolatione, de Sêneca, o primeiro livro das Tusculanas de Cícero e o terceiro do De Rerum Natura de Lucrécio), revela temas recorrentes: o que acontece com a alma após a morte?; ou ainda, o cálculo da proporção entre bem e mal na vida (que na maioria das consolações leva à reflexão de que a vida é desagradável e a morte uma fuga; em Plutarco, surge um equilíbrio favorável: ele lembra à esposa as muitas bênçãos que ainda desfruta).

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

O amor e os amigos



1) Em sua biografia de Dante (capítulo 6, "O amor e os amigos"), Alessandro Barbero fala de uma novidade que surge alguns anos antes da época de Dante, talvez uma ou duas gerações antes, uma nova técnica da expressão, ou ainda, um novo modo de acessar e expressar certos sentimentos: Barbero resgata o momento da Vida nova no qual Dante fala de seu primeiro encontro com Beatriz e, consequentemente, de sua paixão e de seu encanto - a partir desse encontro ocorre a mobilização, por parte de Dante, dessa novidade: analisar a paixão amorosa e traduzir essa análise em versos feitos não em latim, como seria o normal, como seria de se esperar, mas em língua vulgar, na fala do cotidiano. Antigamente isso não existia, escreve o próprio Dante: "certos poetas eram declamadores de amor em língua latina", "e não se passaram muitos anos desde que apareceram pela primeira vez esses poetas vulgares". 

2) Essa novidade de ordem linguística, contudo, é potencializada por um método de proliferação das informações que já tinha uso consolidado na época de Dante: o envio de poemas para vários destinatários, como cartas, para alimentar a troca e criar uma rede de crítica e experimentação poética - e aqui, mais uma vez, esse eixo fundamental da carta, da correspondência e do envio, parte constitutiva da tradição, desde a Carta VII de Platão, passando pelas cartas de Cícero, do Apóstolo Paulo e de Santo Agostinho (é, de novo, a questão do endereçamento de que fala Heidegger na “carta”, de que falará Sloterdijk nas “regras para o parque humano” e que retomará o próprio Derrida alguns anos depois ao falar do “cartão-postal”). 

3) Dante, então, envia seu soneto - em língua vulgar, feito a partir do encontro com Beatriz - de forma anônima para vários destinatários, confiando nas regras do jogo que todos conheciam: em breve chegam respostas, também poéticas, salientando os pontos fracos, expandindo certos temas. Uma das respostas vem de Dante da Maiano, um companheiro um pouco mais velho, que escolhe, em sua resposta, uma via irônica e, de certa forma, baixa (no sentido futuro de Rabelais e Boccaccio), recomendando ao rapaz que lave os testículos com água fria, para arrefecer os ardores: "lave suas bolas amplamente / para que se extinga e passe o vapor". 

domingo, 10 de agosto de 2025

María Dolz


1) A narradora de Os enamoramentos, romance de Javier Marías, é María Dolz, mulher na casa dos trinta anos que trabalha em uma editora de Madri e todos os dias toma seu café, pela manhã, no mesmo bar – é lá que sempre observa um homem que, mais adiante, será esfaqueado. A primeira camada da história que conta María Dolz é simples: sua observação daquilo que acontece ao redor. Novos personagens, porém, surgem, e com isso novas versões daquilo que se pensava já conhecido. Marías articula uma narrativa que, em alguns momentos, é carregada de suspense – uma tensão que explode no interior de uma linguagem densa e reflexiva. As cenas de potencial perigo ou violência normalmente surgem de improviso, como que rasgando abruptamente aquele véu descritivo e digressivo da narração de María Dolz.

2) Existem dois momentos em Os enamoramentos que extrapolam questões como narração, credibilidade ou uso dos gêneros – e são esses momentos que garantem a complexidade do livro. Marías, logo depois do primeiro quarto do livro, passa a construir sua narrativa lado a lado com uma novela de Balzac de 1832, O coronel Chabert, sobre um coronel de Napoleão que é dado por morto em batalha mas que retorna, vivo, anos depois. Mais de cem páginas depois, Marías costura em sua narrativa um momento de Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas (de 1844), que trata do mesmo tema de Balzac: uma pessoa dada por morta que retorna para assombrar os vivos.

3) Essas duas incorporações transformam o romance. Ecoam até o final, e temos a impressão de reler Dumas, Balzac e toda uma faceta da tradição literária a partir das palavras de Marías, como numa espécie de espectrografia (como faz Sebald, também pela via de Balzac, em Austerlitz), de necromancia textual. A sensibilidade de Marías está em sua violenta abordagem do passado, levando o leitor a uma profunda reconsideração do tempo e do espaço, a uma profunda reconsideração do real através do literário.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Lacunas foucaultianas



1) Descobri recentemente a resenha de Martha C. Nussbaum do segundo volume da História da sexualidade, de Michel Foucault, publicada em 10 de novembro de 1985 no The New York Times; ela, já de saída, lamenta a morte desse pensador "sério e corajoso" (Foucault morre no ano anterior, em 25 de junho de 1984) e, junto desse primeiro lamento, lamenta também que sua obra mais recente seja desapontadora. Segundo Nussbaum, o tratamento que oferece Foucault da Antiguidade, especificamente dos textos em grego (ela menciona especificamente certa ingenuidade de Foucault no tratamento dos textos "hipocráticos", aos quais ele não dá a devida atenção no que diz respeito à ampla variação de contextos e épocas de circulação dos variados textos, a grande maioria não sendo de autoria de Hipócrates, e sim, precisamente, de hipocráticos), é pouco rigoroso. 

2) Em vários pontos do texto, as críticas de Nussbaum são válidas e estimulantes, embora em certos momentos ela critique o projeto de Foucault não pelo que apresenta, mas pelo que deixa de apresentar (nenhuma menção às peças de Aristófanes, por exemplo), argumento que acaba se tornando contraproducente para a própria crítica, já que algo sempre vai faltar, algo sempre vai ficar de fora, mesmo no trabalho mais sistemático (e é precisamente a sistematicidade que é transformada pela trajetória de Foucault como um todo, que Nussbaum é a primeira a elogiar). 

3) A crítica de Nussbaum dá a impressão de que, para ela, o projeto de Foucault como um todo é válido e estimulante, até o ponto específico em que se choca com seu campo de estudos (talvez ela se identificasse com o trabalho não-convencional de Foucault, em algum nível?, especialmente levando em consideração que, em 1982, Harvard negou seu processo de tenure?), algo que se insinua quando ela critica a dependência de Foucault das traduções: "Para começar, Foucault é automaticamente excluído de qualquer evidência que não seja traduzida (isso inclui algumas evidências cruciais sobre mulheres, para as quais a atenção do livro é, de qualquer forma, desigual), e está condenado a depender dos caprichos dos tradutores para o restante. Ignorando completamente a história política e social grega e os problemas acadêmicos que cercam os textos que utiliza, ele não consegue situar com segurança o que lê."

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Limites, criação



"O verdadeiro mérito da filosofia da história de Vico não reside naquilo que ela nos ensina sobre o processo histórico e o ritmo de suas sucessivas fases. Em seu sistema, a divisão da história humana em épocas e a tentativa de descobrir nelas uma certa ordem - a transição da era divina para a era heroica e da era heroica para a era humana - ainda são atormentadas por características fantásticas. O que Vico vê claramente, e sustenta com toda energia diante de Descartes, é a peculiaridade metodológica, o valor próprio do conhecimento histórico em termos de método. (...)

De acordo com Vico, o verdadeiro objetivo do nosso saber não é o conhecimento da natureza, mas o autoconhecimento humano. A filosofia que, em vez de se contentar com isso, postula um conhecimento divino ou absoluto transgride seus próprios limites e se deixa levar por delírios perigosos. A regra suprema do conhecimento é, para Vico, o princípio segundo o qual nenhum ser penetra no conhecimento verdadeiro, mas naquilo que ele mesmo cria. O campo do nosso conhecimento nunca se estende além dos limites da nossa própria criação. (...)

Mito, linguagem, religião, poesia: esses são os objetos verdadeiramente adequados ao conhecimento humano. Esses são os objetos que Vico examina de maneira primordial no sistema de sua lógica"


(Ernst Cassirer, Ciências da cultura, trad. César Benjamin, Contraponto, 2024, p. 18-20)

domingo, 27 de julho de 2025

A cabeça de Netuno



1) Na sua Carta sobre os surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam (publicada em 1751, poucos meses antes do primeiro volume da Enciclopédia), Diderot cobre uma série de temas e apresenta uma constelação de cenas heterogêneas - algo bastante típico do ambiente "iluminista" em geral. Chama a atenção as citações nas línguas originais que faz Diderot - Homero citado do grego, Virgílio e Lucrécio citados do latim, Torquato Tasso citado do italiano - e, dentro desse tópico, chama a atenção o cuidado de Diderot na circunscrição de seus comentários à letra do texto, um método de leitura cerrada que, de resto, como Diderot sabia bem, começou (em certa medida) com os gramáticos alexandrinos em seu trabalho com Homero. 

2) Um dos momentos mais interessantes da carta de Diderot é quando ele discute os momentos em que uma passagem do literário ao visual não é garantida, desejada ou mesmo esteticamente congruente. Para construir o argumento, Diderot resgata uma passagem da Eneida de Virgílio, os versos 124-127 do primeiro Livro: "Netuno percebeu que o mar se agitava com grande ruído e que águas tranquilas do fundo estavam em revolta; violentamente abalado, olha para o alto desde o fundo, erguendo a cabeça acima das ondas". 

3) Diderot argumenta que aquilo que funciona no poema, não funcionaria na pintura - como levar à tela a imagem impressionante do deslocamento do deus das profundezas em direção à superfície? Tudo que a pintura poderia mostrar, no caso específico desses versos, é a imagem do deus degolado, Netuno como uma reles cabeça decepada flutuando no mar, nada mais distante da magnificência produzida pelos versos de Virgílio, que colocam em contato a transformação do destino de Enéias (que sofre no mar) e a súbita consciência de Netuno de que algo não está correto em seus próprios domínios.  

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Os dois sacrifícios



Sócrates como o poeta que abandona a vida para provar seu ponto; que cede aos caprichos dos governantes, mesmo podendo escolher o exílio; leva ao limite sua doutrina, sua posição, leva ao limite a consciência de ser apenas uma gota no oceano, apenas mais um grão de areia na praia (a morte que poderia ser evitada é o corolário da ideia de que "só sei que nada sei"). Nesse sentido, Sócrates prepara o terreno para Jesus, pois é quem prepara o terreno do martírio, ou seja, da valorização filosófica do auto-sacrifício como procedimento de defesa de uma crença, de uma doutrina. 

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O caminho que leva até Paulo e suas epístolas é o caminho que leva do sacrifício de Sócrates àquele de Jesus; Paulo, alimentado pela filosofia grega prévia (boa parte dela envolvida com a tarefa de fazer sentido do sacrifício de Sócrates, ou seja, fazer sentido da relação entre palavra e verdade, liberdade e política e assim por diante), reconfigura e reorganiza o sacrifício prévio de Sócrates em uma nova moldura doutrinal, tornada possível pelo sacrifício de Jesus; as estruturas teóricas de Platão e Paulo são montadas sobre os legados desses dois cadáveres célebres (condenados em julgamentos, executados com método, dentro de um ritual previamente estabelecido). 


segunda-feira, 21 de julho de 2025

A infraestrutura socrática



1) A complexidade da morte de Sócrates: apesar de ser uma espécie de "herói de guerra" (Sócrates serviu como hoplita na Guerra do Peloponeso), ainda assim condenado (entre outras coisas) por sua falta de comprometimento com a ortodoxia que regia (ou que devia reger, na opinião daqueles que o condenaram) a cidade; condenado por corromper a juventude, mas não necessariamente por encaminhá-los em certa direção, mas por ensinar que existem outras direções; condenado por não corroborar "acriticamente" a dimensão religiosa da vida na cidade (a religião como braço da política, como ingrediente da coesão social), por defender uma sorte de conexão privada com a divindade - que é a velha discussão, tão bem resumida e desenvolvida por Plutarco, da relação de Sócrates com seu daimon pessoal.

2) Talvez, seguindo a linha de pensamento de Friedrich Kittler, seja possível dizer que parte do empreendimento de Sócrates foi o de instaurar uma nova via de comunicação com o divino: o poeta especulativo como um medium de contato entre o alto e o baixo, entre o dizível e o indizível, entre aquilo que pertence ao éter, à nuvem, ao cosmos, e aquilo que pertence ao baixo, ao acessível, aos sentidos, ao cotidiano; Sócrates constrói uma sorte de infraestrutura para a inauguração desse novo hub comunicacional - com a decisiva contradição, contudo, de que ele não coloca a mão na massa, não escreve, não registra, não inscreve sua inovação tecnológica (deixa a tarefa para Platão). 

3) Ou mesmo antes de Kittler, com Marshall McLuhan, na Galáxia de Gutenberg: "Antes de Sócrates, o saber fora o preceptor de como viver retamente e falar bem. Mas com Sócrates veio a cisão entre a língua e o coração. Era inexplicável que, de todas as pessoas, tivesse sido o eloquente Sócrates quem desse início à cisão entre pensar sabiamente e falar bem" (trad. Leônidas de Carvalho e Anísio Teixeira, Editora Nacional, 1977, p. 48).

terça-feira, 15 de julho de 2025

Um livro de Montaigne


Por acaso, pesquisando detalhes da relação entre Montaigne e Plutarco (ou melhor, a relação que Montaigne estabelece com Plutarco a partir da leitura das suas obras), encontro a notícia de um leilão de livros, a divulgação de um achado raro: o exemplar das Vidas de Plutarco que pertenceu a Montaigne - o traço distintivo e excepcional é precisamente a assinatura, Mõtaigne, na folha de rosto (que, no entanto, está riscada). A estimativa de valor para a venda do exemplar no leilão era de 30 mil euros; o livro terminou vendido por 369 mil euros. O exemplar de Montaigne é uma edição de 1565 da tradução que Amyot fez das Vidas de Plutarco.

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Montaigne nasce em 1533 e morre em 1592; Amyot morre um ano depois, em 1593, mas nascido 20 anos antes de Montaigne, em 1513. A partir de 1559, Amyot trabalha em Roma, traduzindo as Vidas de Plutarco a partir do exemplar do Vaticano; antes disso, já havia trabalhado em uma tradução de sete livros de Diodoro Sículo (publicada em 1554) e ainda fará a Moralia de Plutarco (1572). Com relação à tradução das Vidas, existe uma triangulação literária digna de nota: a tradução de Amyot é utilizada na Inglaterra por Thomas North para sua tradução ao inglês, tradução essa que é utilizada intensamente por Shakespeare para suas tragédias romanas (Julius Caesar (primeira apresentação em 1599), Antony and Cleopatra (primeira apresentação por volta de 1607) e Coriolanus (escrita provavelmente entre 1605 e 1608)).

sábado, 12 de julho de 2025

O tesouro de Boscoreale



1) Rostovtzeff, em seu livro Mystic Italy (de 1927), comenta a intensificação do sentimento religioso em Roma (e no mundo helenístico de forma geral) a partir do século II a.C: vários fatores contribuem para a situação, mas ele dá ênfase ao caos gerado pelas guerras civis (Mário e Sila; Pompeu e César; Antônio e Otaviano, até a Pax Augusta). A instabilidade da vida cotidiana, as mortes, desapropriações, massacres aleatórios - elementos que geram uma busca pelo "além" e um permanente temor diante da morte que pode ser iminente. Rostovtzeff retoma rapidamente o sexto canto da Eneida, de Virgílio, reconhecendo aí um horror do além típico da época.

2) Mais que isso: reconhece "blasfêmias" com relação aos mortos e ao além que não conseguem encobrir o medo e a impotência diante da fragilidade da vida. Já no parágrafo seguinte, Rostovtzeff liga a Eneida de Virgílio ao jogo de utensílios em prata encontrados em Boscoreale, o conhecido "tesouro de Boscoreale", hoje no Louvre. O mesmo sentimento percorre o sexto canto da Eneida de Virgílio e a decoração dos utensílios de prata, com seus esqueletos dançantes: a angústia permanente diante do horror da morte, que não é silenciada, e sim potencializada pelos procedimentos artísticos.

3) O tesouro de Boscoreale foi encontrado em nove de abril de 1895, em um sítio que havia começado a ser escavado em 1876; já no mês seguinte as peças são enviadas clandestinamente para a França por antiquários napolitanos; o Barão de Rothschild compra as peças e as doa para o Louvre; no ano seguinte, 1896, depois do escândalo do transporte clandestino, a escavação é retomada com maior vigilância: chega-se à conclusão que o tesouro havia sido escondido por conta da erupção do Vesúvio em 79. Além das taças com os esqueletos dançantes, o tesouro conta ainda com utensílios que serviam para mexer e misturar o vinho, travessas para transporte de comida, bem como artefatos que parecem puramente decorativos (com motivos animais e vegetais, cenas mitológicas e temas políticos, como as taças "de Augusto" e "de Tibério").

domingo, 6 de julho de 2025

Outro leitor de Faulkner



Some Came Running, filme de 1958 de Vincente Minnelli, conta a história de um escritor, Dave Hirsch, interpretado por Frank Sinatra: em 1948, Hirsch volta à cidade de origem (no interior de Indiana), depois de ser colocado, bêbado, dentro de um ônibus por seus amigos, em Chicago. Hirsch é um sujeito irônico e desencantado com a vida, muito crítico de si e dos outros, descrente das boas intenções e assim por diante. Além de ser um veterano do Exército, Hirsch também é escritor publicado e consolidado (com livros que falam justamente da vida nessa cidade do interior à qual ele volta relutantemente), uma atividade que, no entanto, ele não encara com bons olhos, chegando mesmo a recusar tal posição, chegando mesmo a afirmar que já não escreve, que isso pertence ao passado e assim por diante. 


Como tantos outros escritores, Hirsch é um leitor de Faulkner. São vários os leitores de Faulkner, desde o filho de Elizabeth Costello, em Coetzee; Fredric Jameson, que fala de Faulkner como o escritor do "agora"; ou Jean Echenoz quando escreve sobre Ravel. Logo no começo do filme, Hirsch se estabelece em um quarto de hotel: quando desfaz a mala e organiza seus poucos pertences, mostra para a câmera os livros que leva consigo e, ali, em primeiro plano e em lugar de destaque, Faulkner - o escritor desse mundo de desconfiança e rispidez no qual vive Hirsch.   

 

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Arte da ignorância


Em muitos trabalhos de Agamben, a tensão entre saber e não-saber foi muitas vezes aproximada da tensão entre potência e ato, ou seja, entre a possibilidade de fazer algo e a possibilidade de escolher não fazê-lo. 

Em Opus Dei, livro de 2012, glosando a interpretação latina dos Pais da Igreja da filosofia aristotélica (dentro do escopo mais amplo daquilo que denomina “arqueologia do ofício”, ou seja, uma investigação da matriz conceitual da ontologia moderna a partir das traduções de termos-chave do grego para o latim), Agamben escreve: “Como Aristóteles não se cansa de repetir contra os megáricos, tem verdadeiramente uma potência aquele que pode tanto colocá-la quanto não colocá-la em ato”; completando mais adiante com um exemplo: “O Bartleby de Melville, ou seja, por definição um homem que tem a potência de escrever, mas não pode exercê-la, é a perfeita das aporias da ética aristotélica” (p. 100, 103).

Assim como o saber precisa dar conta do não-saber – a partir de uma “arte da ignorância” que exercite a noção de que as certezas são historicamente situadas e, por isso, oscilantes – a potência precisa dar conta da própria suspensão ou esvaziamento, do reconhecimento de certa não-continuidade em sua vigência. Ainda em Opus Dei, Agamben escreve que a “relação com a privação”, ou seja, com a possibilidade de não-fazer (ou não-saber), “é essencial para Aristóteles, porque é só através dela que a potência pode existir como tal, independentemente de seu passar ao ato” (p. 99).

terça-feira, 24 de junho de 2025

Partes das partes


De onde vem essa lógica rigorosa em Poe, de que fala Todorov? Está por todos os lados, ocupando, com variadas intensidades, camadas diversas da tradição - já está, sem dúvida, na fundação, na Eneida de Virgílio (e certamente está na falha da lógica rigorosa a angústia de Virgílio diante da morte: não poder completar a estrutura que levou a cabo). De Virgílio a Dante, sempre a lógica rigorosa, como escreve Panofsky em Arquitetura gótica e Escolástica (p. 26):

A Divina Comédia de Dante não só deve grande parte de seu conteúdo ao ideário escolástico, mas também sua forma conscientemente trinitária. Na Vita Nuova, o poeta chega a desviar-se de seu tema para analisar a sequência de ideias de todos os sonetos e canzioni, de maneira perfeitamente escolástica, como "partes" e "partes das partes".

Auerbach, em vários momentos da sua obra, insiste na dominância da lógica da separação de estilos: alto, médio e baixo, com categorias rígidas e fronteiras de pertencimento cada vez mais sutis; é o próprio Auerbach também quem enfatiza como o cristianismo rompe com essa lógica rigorosa, inaugurando um paradigma discursivo no qual o sublime está irremediavelmente costurado ao humilde e ao criatural, sem que isso redunde em uma substituição total e completa do paradigma da lógica rigorosa de separação dos estilos. 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

A lógica rigorosa


"Cada nível de organização do texto obedece a uma lógica rigorosa; além disso, esses níveis são estritamente coordenados entre si. Retenhamos um único exemplo: os contos fantásticos e 'sérios' são sempre contados na primeira pessoa, de preferência pela personagem principal, sem distância entre o narrador e sua história (as circunstâncias da narração aí desempenham um papel importante), como em 'O demônio de perversidade', 'O gato negro', 'William Wilson', etc. 

Por outro lado, os contos 'grotescos', como 'O rei peste', 'O diabo no campanário', 'Lionizing', 'Quatro bestas em uma', ou os contos de horror, como 'Hop-Frog' e 'A máscara da morte escarlate', são contados na terceira pessoa ou por um narrador testemunha, e não ator; os acontecimentos são distanciados, o tom é estilizado. Nenhuma sobreposição é possível" 

(Tzvetan Todorov, "Os limites de Edgar Allan Poe", Os gêneros do discurso, trad. Nícia Bonatti, Unesp, 2018, p. 239).

sábado, 7 de junho de 2025

Papa engrossada, mingau de aveia




"Em casa de uma família instruída, à mesa do chá, falava-se de literatura, de coisas como fantasia e fábula. E lamentava-se que tudo isso estivesse cada vez mais pobre e mais pálido entre nós. Eu lembrei-me de uma observação muito característica do falecido Píssemski, que dizia que o empobrecimento notado na literatura estava sobretudo relacionado com a multiplicação das estradas de ferro; na sua opinião, elas são muito úteis para o comércio, mas às belas-artes fazem mal.

'Hoje em dia, a pessoa viaja muito, mas à maior velocidade e sem problemas - dizia Píssemski -, e por isso não junta nenhuma impressão forte, e não há nada que olhar, nem tempo para isso, pois tudo passa voando pela janela. Daí, a sua experiência é pobre. Mas, antigamente, quando ias de Moscou a Kostromá de carruagem e saía-te um cocheiro canalha, e os outros passageiros eram todos uns insolentes, e o dono da hospedaria era um velhaco, e a cozinheira da casa era a imundície em pessoa - vê aí, então, quanta variedade havia para a tua contemplação. Com o coração já pra não aguentar mais nada, aí tu pescavas uma imundície qualquer na sopa e dizias umas poucas e boas à tal cozinheira, e ela, em resposta, vinha para cima de ti com dez vezes mais impropérios; tu, então, simplesmente não tinhas como escapar de impressões. E elas juntavam-se em ti numa nuvem grossa, que nem a papa engrossada a fogo lento; pois então, aí a escrita só podia sair-te encorpada, concentrada, também; hoje em dia, tudo isso é à moda ferroviária: pegas o teu prato, e sem perguntas; comes, mas não dá nem tempo de mastigares; din-din-din e fim de conversa; recomeças a viagem, e a única impressão que colhes é que o empregado da taberna te roubara no troco, mas já não tens tempo para uma boa troca de palavras fortes com ele' "(Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 83-84)

*

"Sua prosa não tem primavera nem verão, não tem outono nem inverno, não é preta nem vermelha; ela escorre para o estômago feito mingau de aveia sem sal. Mas, como vocês não vivem mais como cervejeiros, defumadores, feirantes e ciganos, como têm medo do cajado do tempo e de seu próprio desespero, não têm mais o que dizer. 

A época em que louvavam a própria fome, em que os jovens escritores se insurgiam contra presidentes, aquela em que vocês faziam a revolução, essa época passou! Foi-se o tempo em que Hamsun vadiava por Nova York, em que Sillanpää não pôde ir buscar seu prêmio Nobel, porque ele, que vivia de fato, tinha sete filhos e nem sequer um único tostão no bolso do casaco para a viagem. E foi-se o tempo em que vocês cantavam seus versos ao som do alaúde. De um povo de poetas e pensadores fez-se um povo de segurados, de funcionários públicos e de membros do partido, uma paisagem de fracos, de homens sem nenhuma paixão carregando pastinhas. De um povo de entusiastas fez-se um povo de representantes comerciais!" 

(Thomas Bernhard, "Uma palavras aos jovens escritores", 18 de janeiro de 1957, Na pista da verdade: discursos, cartas, entrevistas e artigos, trad. Sergio Tellaroli, Todavia, 2015, p. 33)

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Sementes bárbaras


"Para Vico, a Idade Média representava o novo mergulho da humanidade no fresco elemento da fantasia, uma retomada da capacidade de imaginar, mitificar e simbolizar que é aquela dos bárbaros. Depois do excesso de reflexão que havia caracterizado a época do império romano, a humanidade se refez jovem, tinha abandonado a prosa e entre os novos bárbaros do norte retomou o poetizar homericamente. 

Na Silésia, nação de camponeses, assegurava solenemente Vico, todos nascem poetas. Vico não conhecia naturalmente nem o Beowulf, nem o Nibelungenlied, nem a Chanson de Roland, mas uma vaga ideia de cantares espanhóis e italianos bastava para que confirmasse suas intuições. Uma imagem bem diferente daquela barbárie supersticiosa, sem redenção fora da sobrevivência dos últimos restos clássicos, que é a intuição fundamental de Gibbon. 

A Europa moderna não era para Vico um renascimento do mundo antigo, segundo a concepção do Renascimento proposta por Gibbon, mas um desenvolvimento de sementes bárbaras."

(Arnaldo Momigliano, "Edward Gibbon fuori e dentro la cultura italiana", Sesto contributo alla storia degli studi classici e del mondo antico, 1980, p. 245-246)

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Hipérion



1) Para Agamben (ainda no ensaio dedicado ao “dizível e a ideia”), a “traduzibilidade” é o que garante a movimentação do pensamento através do tempo, pois está situada “no limiar que une e divide os dois planos da linguagem”, o semiótico e o semântico (o plano da materialidade e o plano do sentido). Por isso Walter Benjamin destacou a “relevância filosófica” da tradução, que Agamben desenvolve minuciosamente. 

2) A possibilidade de traduzir é, em grande medida, uma postura diante do mundo e diante do outro, do diferente, do distante (por isso o caso de Joseph Conrad é tão paradigmático para o século XX, despertando tantos comentários e reutilizações narrativas). Nessa perspectiva, a “traduzibilidade” faz parte da consciência que preciso ter de que minha língua não é o centro do mundo, ou a instância reguladora dos afetos e dos horizontes. Reconheço a limitação do meu mundo ao exercitar o desejo de traduzir aquilo que ainda não conheço.

3) É nesse ponto do traduzível que as reflexões de Agamben sobre Hölderlin e sobre a linguagem se encontram, apesar de vindas de contextos e publicações diversas: isso porque é a partir também da tradução que Hölderlin se situa diante do próprio tempo, da própria época; para além de uma contemporaneidade compulsória com certas figuras da mesma época (Hegel, Napoleão), Hölderlin estabelece, pela via da tradução, uma contemporaneidade não-contemporânea com a Antiguidade, especificamente com Píndaro e Sófocles. 

sexta-feira, 30 de maio de 2025

O dizível e a ideia


1) No ensaio dedicado ao “dizível e a ideia”, do livro O que é a filosofia?, Agamben está interessado naquilo que “quase” pode ser dito ou expresso, o ponto em que a “certeza” se anuncia, sem completar definitivamente seu ciclo. A ideia leva o dizível em direção a uma abstração com relação à língua. Essa língua, contudo, não diz respeito a um idioma específico, e sim à possibilidade de “todos os nomes e todas as línguas”. 

2) Como exemplo, Agamben recorre ao historiador Arnaldo Momigliano e sua ideia de que “o limite dos gregos era que eles não conheciam as línguas estrangeiras”, o que constitui, de resto, o limite de todo pensamento unilateral. Por conta disso, Agamben propõe a hipótese de que “o elemento linguístico próprio da ideia” não é simplesmente o “nome”, mas a tradução, “ou aquilo que é traduzível nele”. A tradução, portanto, surge como uma tarefa que é tanto ética quanto estética, atravessando as diferentes esferas que regulam a convivência dos seres em comunidade. 

3) E também a tradução se desenvolve sobre um paradoxo: entendemos o sentido geral de um texto – a trama de romances como Dom Quixote ou Moby Dick, por exemplo – quando lemos uma tradução; mas através da leitura também “entendemos” que nenhuma daquelas palavras foi escrita pelo autor. A consciência da “artificialidade” da tradução, no entanto, não impede o leitor de fruir o texto, de carregá-lo consigo para o resto da vida, costurando-o à própria subjetividade (como Jorge Luis Borges, que leu o Quixote primeiro em inglês, quando criança, e depois declarou que o original espanhol sempre lhe pareceu como uma tradução).

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Ainda Hölderlin


As reflexões de Agamben em sua crônica sobre Hölderlin podem ser posicionadas no contexto mais amplo de sua preocupação filosófica com a linguagem. Em vários momentos de sua obra – como, por exemplo, em Infância e história – Agamben coloca em primeiro plano a preocupação com a linguagem. Como a linguagem pode “existir”? Como ela pode ser acessada, o que significa dizer “eu falo”? Em O que é a filosofia?, a linguagem é abordada especialmente pelo viés da “experiência”, pela perspectiva de uma investigação do “ter-lugar” da linguagem, e é por essa razão que os dois livros recentes de Agamben são complementares: a crônica da vida de Hölderlin exemplifica e torna mais palpável o conjunto abstrato de proposições do livro sobre a filosofia.

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Para Agamben, a filosofia é um evento ontológico tornado possível pela linguagem – o “evento” diz respeito àquilo que é reconhecido coletivamente, enquanto o “ontológico” diz respeito à possibilidade do ser se reconhecer durante o uso da linguagem. Falar, escutar, escrever são atividades ambivalentes, operando na linha tênue que separa o único do múltiplo, o sujeito da comunidade. No primeiro ensaio do livro O que é a filosofia?, intitulado "Experimentum vocis", acompanhamos a descrição da estratégia de acoplamento da linguagem com a “metafísica ocidental”, o discurso que regula aquilo que pode ser imaginado para além da realidade. O indivíduo só se pode reconhecer através da linguagem, e é ela que articula a relação entre mundo e palavra, ontologia e lógica, “eu” e “outro”.

sábado, 10 de maio de 2025

Crônica de Hölderlin


1) Em A loucura de Hölderlin – crônica de uma vida habitante 1806-1843, Agamben retorna à literatura e propõe um estudo sobre o “poeta louco”. O primeiro ponto a salientar é que não se trata de uma reflexão que lida exclusivamente com Hölderlin, pelo contrário: seu percurso é contrastado com aqueles de Goethe e Napoleão, o que oferece uma sorte de pano de fundo histórico aos comentários de Agamben; além disso, os gêneros da “biografia” e da “crônica” são mobilizados (e questionados em seus limites) como ferramentas para uma abertura da história e da sucessão temporal; por fim, etiquetas classificatórias como “loucura” e “inspiração” recebem um tratamento de desnaturalização, ou desautomatização, dentro do qual o caso de Hölderlin é usado como exemplo de um radical atravessamento entre poesia e filosofia. 

2) O que dá consistência ao projeto é a dedicação verticalizada de Agamben aos textos de e sobre Hölderlin – poemas, biografias, relatórios médicos e cartas, dele e de terceiros. O livro é dividido em quatro partes principais, começando com um Limiar e um Prólogo, estendendo-se por uma Crônica (1806-1843) (a seção mais longa) e encerrando com um Epílogo. Mais uma vez a figura de Walter Benjamin, referência constante em todo o percurso intelectual de Agamben: Benjamin aparece logo no início de A loucura de Hölderlin para auxiliar Agamben na reflexão acerca da diferença entre “crônica” e “história crítica”. A dicotomia, contudo, é logo desfeita, pois Agamben argumenta que a escolha aparentemente “neutra” da crônica (expor fatos e eventos dentro de uma estrutura cronológica) já pressupõe uma tomada de posição, um escrutínio, um projeto.

3) Partindo de Benjamin, Agamben chega a uma ambivalência que guiará seu livro até o fim: “crônica” e “história” são gêneros diversos, mas complementares, com procedimentos que se fortalecem mutuamente através do contraste. “O cronista não inventa nada”, escreve Agamben, e, no entanto, “não tem necessidade de verificar a autenticidade de suas fontes”, às quais o historiador não pode, ao contrário, “em nenhum caso, renunciar”. O “único documento” que interessa ao cronista “é a voz”, a sua e aquela da qual lhe ocorreu ouvir, por sua vez, “a aventura, triste ou alegre, a que se está referindo”. É essa “voz” que se busca recuperar no caso de Hölderlin, embora as “fontes” (cartas, biografias, registros notariais) estejam sempre presentes.

domingo, 4 de maio de 2025

Aquele que conduz


1) Nos anos da Segunda Guerra Mundial, quando Hermann Broch está escrevendo A morte de Virgílio, Gianfranco Contini está preparando sua edição das Rimas de Dante. A partir desse trabalho, Contini começa a desenvolver uma de suas principais ideias críticas: o contraste entre "plurilinguismo" e "monolinguismo" na literatura, algo que ele traduz como um contraste entre Dante e Petrarca, entre um movimento de criação no interior da língua que privilegia a transformação e um movimento de criação que privilegia a manutenção, ou ainda, a circunscrição léxica, sintática e rítmica. 

2) O romance de Broch, publicado em 1945 - seis anos antes da morte do autor -, é realizado sob o decisivo influxo de James Joyce e de seu Ulisses (mais plurilinguista que o Ulisses, só o Finnegans Wake, que é de 1939). A partir do romance de um irlandês que resgata um personagem grego, Broch - um austríaco - faz um romance que resgata um personagem latino, o poeta ocidental por excelência, Virgílio, aquele que - nas palavras de T. S. Eliot - torna possível o cânone, mesmo para aqueles que trabalham em uma língua que não parte da matriz latina virgiliana. 

3) É possível dizer que Virgílio não existiria para Broch sem a intervenção de Dante, sem a intervenção da Divina Comédia, que leva a Eneida adiante; é o próprio Broch quem insiste na relação, desde as epígrafes do romance: as duas primeiras da Eneida, a terceira e última da Divina Comédia (do Inferno, canto XXXIV, precisamente quando Dante fala de Virgílio: Lo duca ed io per quel cammino ascoso / Entrammo a ritornar nel chiaro mondo (o uso que Dante faz da palavra "Duca" é muito interessante: do latim "ducem", "dux", significa "aquele que conduz", através do baixo grego (ou bizantino) "doúka" ou "doúkas", "chefe militar de uma cidade ou província").

sexta-feira, 25 de abril de 2025

A literatura e seus limites



Meu último livro, A literatura e seus limites: romances com imagens, está em promoção no site da Editora da UFSC. Como não poderia deixar de ser, recorro a W. G. Sebald para falar dos "romances com imagens", mas não apenas ele: a partir de Sebald, armo um eixo de análise através dos primeiros anos do século XXI, comentando romances de Ben Lerner (10:04), Valeria Luiselli (Arquivo das crianças perdidas) e Katja Petrowskaja (Talvez Esther).

sábado, 19 de abril de 2025

Um homem silencioso


Em 10 de junho de 1975, no jornal L'Ora, sai uma entrevista de Italo Calvino feita por Ferdinando Scianna - a entrevista é publicada com o título "Un silenzioso che ha molto da dire", ou seja, "Um silencioso que tem muito a dizer". Scianna, entre outras coisas, pergunta a Calvino o que ele acha da recente candidatura política de Leonardo Sciascia (para se tornar consigliere comunale em Palermo). Calvino, com outras palavras, diz que justamente pelo fato de Sciascia ser (ou poder ser) um político atípico ele poderá fazer bem à política italiana. "Acho que sou um dos amigos de Sciascia", diz Calvino, "mas a nossa amizade certamente não se pode medir pelo número de palavras trocadas. Sciascia é um homem silenciosíssimo": em um mundo no qual todos falam sempre tanto, completa Calvino, "a entrada na política de um homem silencioso, mas que tem muitas coisas a dizer, é um fato enormemente positivo" (a entrevista está no livro Sono nato in America... Interviste 1951-1985, de Calvino (Mondadori, 2022, p. 212-215) e também no Carteggio 1955-1985 de Calvino e Sciascia (Mondadori, 2023, p. 247-250)).

domingo, 13 de abril de 2025

Algodão, batalhas


Já no final de Autobiografia do algodão, Cristina Rivera Garza escreve:

"A verdade é que passamos vários verões no carro, dirigindo por um longo tempo naquelas estradas longas e retas pela fronteira entre o México e os Estados Unidos. Procurávamos os campos de algodão, seus vestígios. Se já não estavam mais lá, queríamos ver o que estava em seu lugar, todos aqueles anos depois. Queríamos viajar do lado mexicano, mas os campos de algodão do passado haviam se tornado os campos de batalha mais quentes [los campos de batalla más álgidos] da chamada guerra contra o narco. De Mexicali, passando por El Paso, mas especialmente em torno de Matamoros, a terra do algodão é agora a terra do sangue e da tortura, a terra das valas a céu aberto, a terra onde se semeiam desaparecidos e se colhe impunidade, desgraça, esquecimento. Embora tenhamos feito todo o possível, nunca chegamos lá. Nunca conseguimos pisar naquele mítico K-61, espaço 124 onde começa, em um inverno de muita chuva, um inverno cheio de lama e esperança, a segunda parte desta história" (trad. Silvia Massimini Felix, Autêntica Contemporânea, 2025, p. 313)

As fronteiras, as viagens e as estradas - ecos claríssimos de 2666, de Roberto Bolaño, mas também a paisagem espectral de Juan Rulfo (a quem Rivera Garza dedica todo um livro, que comentei aqui). Mas como descrever as diferenças, tão claras durante a experiência de leitura, entre o tratamento da fronteira/viagem que faz Bolaño e aquele que faz Rivera Garza? O primeiro mantém o nível dos personagens e da fabulação sempre em primeiro plano, enquanto a segunda faz a narrativa ser atravessada continuamente por um nível "externo", o nível do "real" da narradora, que compartilha nome, condições e localização espaço-temporal com a autora que assina o livro; Bolaño mais "mostra" do que "diz", já que suas cenas guardam sempre um viés de enigma, de obliquidade, certa suspensão poética acerca da intenção de apresentar certos personagens ou diálogos; Rivera Garza, por sua vez, é aberta e direta em suas conexões e declarações, o romance é, claramente, uma reflexão sobre o presente, uma mistura de sociologia, antropologia e ficção, os bastidores fazem parte do trabalho artístico.