sábado, 7 de junho de 2025

Papa engrossada, mingau de aveia




"Em casa de uma família instruída, à mesa do chá, falava-se de literatura, de coisas como fantasia e fábula. E lamentava-se que tudo isso estivesse cada vez mais pobre e mais pálido entre nós. Eu lembrei-me de uma observação muito característica do falecido Píssemski, que dizia que o empobrecimento notado na literatura estava sobretudo relacionado com a multiplicação das estradas de ferro; na sua opinião, elas são muito úteis para o comércio, mas às belas-artes fazem mal.

'Hoje em dia, a pessoa viaja muito, mas à maior velocidade e sem problemas - dizia Píssemski -, e por isso não junta nenhuma impressão forte, e não há nada que olhar, nem tempo para isso, pois tudo passa voando pela janela. Daí, a sua experiência é pobre. Mas, antigamente, quando ias de Moscou a Kostromá de carruagem e saía-te um cocheiro canalha, e os outros passageiros eram todos uns insolentes, e o dono da hospedaria era um velhaco, e a cozinheira da casa era a imundície em pessoa - vê aí, então, quanta variedade havia para a tua contemplação. Com o coração já pra não aguentar mais nada, aí tu pescavas uma imundície qualquer na sopa e dizias umas poucas e boas à tal cozinheira, e ela, em resposta, vinha para cima de ti com dez vezes mais impropérios; tu, então, simplesmente não tinhas como escapar de impressões. E elas juntavam-se em ti numa nuvem grossa, que nem a papa engrossada a fogo lento; pois então, aí a escrita só podia sair-te encorpada, concentrada, também; hoje em dia, tudo isso é à moda ferroviária: pegas o teu prato, e sem perguntas; comes, mas não dá nem tempo de mastigares; din-din-din e fim de conversa; recomeças a viagem, e a única impressão que colhes é que o empregado da taberna te roubara no troco, mas já não tens tempo para uma boa troca de palavras fortes com ele' "(Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 83-84)

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"Sua prosa não tem primavera nem verão, não tem outono nem inverno, não é preta nem vermelha; ela escorre para o estômago feito mingau de aveia sem sal. Mas, como vocês não vivem mais como cervejeiros, defumadores, feirantes e ciganos, como têm medo do cajado do tempo e de seu próprio desespero, não têm mais o que dizer. 

A época em que louvavam a própria fome, em que os jovens escritores se insurgiam contra presidentes, aquela em que vocês faziam a revolução, essa época passou! Foi-se o tempo em que Hamsun vadiava por Nova York, em que Sillanpää não pôde ir buscar seu prêmio Nobel, porque ele, que vivia de fato, tinha sete filhos e nem sequer um único tostão no bolso do casaco para a viagem. E foi-se o tempo em que vocês cantavam seus versos ao som do alaúde. De um povo de poetas e pensadores fez-se um povo de segurados, de funcionários públicos e de membros do partido, uma paisagem de fracos, de homens sem nenhuma paixão carregando pastinhas. De um povo de entusiastas fez-se um povo de representantes comerciais!" 

(Thomas Bernhard, "Uma palavras aos jovens escritores", 18 de janeiro de 1957, Na pista da verdade: discursos, cartas, entrevistas e artigos, trad. Sergio Tellaroli, Todavia, 2015, p. 33)

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Sementes bárbaras


"Para Vico, a Idade Média representava o novo mergulho da humanidade no fresco elemento da fantasia, uma retomada da capacidade de imaginar, mitificar e simbolizar que é aquela dos bárbaros. Depois do excesso de reflexão que havia caracterizado a época do império romano, a humanidade se refez jovem, tinha abandonado a prosa e entre os novos bárbaros do norte retomou o poetizar homericamente. 

Na Silésia, nação de camponeses, assegurava solenemente Vico, todos nascem poetas. Vico não conhecia naturalmente nem o Beowulf, nem o Nibelungenlied, nem a Chanson de Roland, mas uma vaga ideia de cantares espanhóis e italianos bastava para que confirmasse suas intuições. Uma imagem bem diferente daquela barbárie supersticiosa, sem redenção fora da sobrevivência dos últimos restos clássicos, que é a intuição fundamental de Gibbon. 

A Europa moderna não era para Vico um renascimento do mundo antigo, segundo a concepção do Renascimento proposta por Gibbon, mas um desenvolvimento de sementes bárbaras."

(Arnaldo Momigliano, "Edward Gibbon fuori e dentro la cultura italiana", Sesto contributo alla storia degli studi classici e del mondo antico, 1980, p. 245-246)

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Hipérion



1) Para Agamben (ainda no ensaio dedicado ao “dizível e a ideia”), a “traduzibilidade” é o que garante a movimentação do pensamento através do tempo, pois está situada “no limiar que une e divide os dois planos da linguagem”, o semiótico e o semântico (o plano da materialidade e o plano do sentido). Por isso Walter Benjamin destacou a “relevância filosófica” da tradução, que Agamben desenvolve minuciosamente. 

2) A possibilidade de traduzir é, em grande medida, uma postura diante do mundo e diante do outro, do diferente, do distante (por isso o caso de Joseph Conrad é tão paradigmático para o século XX, despertando tantos comentários e reutilizações narrativas). Nessa perspectiva, a “traduzibilidade” faz parte da consciência que preciso ter de que minha língua não é o centro do mundo, ou a instância reguladora dos afetos e dos horizontes. Reconheço a limitação do meu mundo ao exercitar o desejo de traduzir aquilo que ainda não conheço.

3) É nesse ponto do traduzível que as reflexões de Agamben sobre Hölderlin e sobre a linguagem se encontram, apesar de vindas de contextos e publicações diversas: isso porque é a partir também da tradução que Hölderlin se situa diante do próprio tempo, da própria época; para além de uma contemporaneidade compulsória com certas figuras da mesma época (Hegel, Napoleão), Hölderlin estabelece, pela via da tradução, uma contemporaneidade não-contemporânea com a Antiguidade, especificamente com Píndaro e Sófocles.