sábado, 4 de outubro de 2025

As moedas de Teseu

Moeda do século II d.C (Kroll 180):
Teseu dominando o touro de Maratona



1) Na sua Vida de Teseu, Plutarco oferece um bom exemplo de sua estratégia de leitura e de confronto de fontes, seu posicionamento amplo e aberto de manipulação dos textos e dos discursos do passado (que será tão útil para Montaigne): na seção 25, Plutarco informa que, segundo Aristóteles, Teseu foi o primeiro a olhar para o povo e renunciar à realeza e seus privilégios; aqui ocorre o primeiro salto e a primeira aproximação comparativa: Plutarco escreve que também Homero parece dar testemunho disso, já que no "Catálogo das naus" (no Canto II da Ilíada) só usa a palavra "povo" para os atenienses.

2) De Aristóteles - textos escritos mais ou menos 500 anos antes de sua época -, Plutarco vai para Homero - mais ou menos 400 anos antes de Aristóteles, o que gera um arco de quase mil anos entre a Ilíada e a Vida de Teseu - e nesse curto-circuito tenta juntar os pedaços de Teseu, figura mítica. Já na frase seguinte, Plutarco salta para outro tema - embora ligado diretamente ao exercício do poder: a cunhagem de moedas; Plutarco afirma que Teseu foi responsável pela cunhagem de moedas com a efígie de um boi, ato para o qual oferece três explicações: 1) recordação do touro de Maratona; 2) recordação do comandante do exército de Minos; 3) incentivar os cidadãos à prática da agricultura. 

3) A questão principal a ser levantada é que Plutarco está sempre mobilizando modos de ler os textos do presente e do passado; sua leitura dos textos é sempre exposta em sua própria escrita e, nisso, ele é instigante e contemporâneo (mais uma vez, aí está o principal elo de ligação de Plutarco com Montaigne: "não consigo me livrar dele", é o que diz o segundo sobre o primeiro, em vários de seus ensaios; "sua voz está de tal forma entranhada em minha cabeça, em meu pensamento, em meu estilo, que é impossível dizer onde começa um e termina outro" - o nome de Plutarco aparece 89 vezes ao longo dos Ensaios)


terça-feira, 30 de setembro de 2025

Montaigne em movimento



"Lamentar que Montaigne tenha proclamado seu apego a uma noção contrária à do progresso (...) é um paralogismo, ou um voto piedoso que é fácil formular com quatro séculos de distância, do alto da boa consciência dada a um intelectual moderno pela convicção de conhecer a 'dialética da história'.

Coisa curiosa, os adeptos da História são muitas vezes os primeiros a esquecer que a noção moderna de história como devir coletivo dos povos ou da humanidade se formou no século XVIII, na mesma época em que a ideia moderna de progresso e, por assim dizer, complementarmente. Montaigne não teve conhecimento da História nem do Progresso - eles ainda não haviam sido inventados

Quando utiliza história no singular, é ora para designar o estudo do passado (a 'ciência da História'), ora para se referir a uma história, relativa a um indivíduo particular (o exemplo disso é dado pelo título do ensaio II, XXXIII, 'História de Espurina'). Em caso contrário, fala das histórias, em um plural que exclui por definição a ideia de um sentido único e providencial que ordenaria o conjunto dos acontecimentos passados e cujo desenvolvimento posterior seria confiado à geração presente"

(Jean Starobinski, Montaigne em movimento, trad. Maria Lúcia Machado, Cia das Letras, 1992, p. 254-255)

*

"Falar de uma filosofia de Montaigne é um equívoco. Não há sistema algum; ele mesmo afirma, por exemplo, que é inútil aprender a morrer, pois a natureza encarrega-se disso à nossa revelia; e falta-lhe também uma verdadeira vontade de ensinar como a de Sócrates (que de resto bem se pode comparar a ele) e, portanto, uma vontade de alcançar uma validade objetiva. Aquilo que escreve dirige-se a ele e vale apenas para ele; se outros descobrirem aí alguma utilidade e prazer, tanto melhor"

(Erich Auerbach, "O escritor Montaigne", Ensaios de literatura ocidental, p. 150)

sábado, 27 de setembro de 2025

Montaigne: saber viver




1) Para Montaigne, toda doxa pede e determina uma contradoxa - um "pensamento" que exige um "contra-pensamento", uma "posição" que exige uma "contra-posição" (e nisso ecoará em Rousseau, mais adiante em Derrida). Como no caso da medicina, do corpo e dos remédios, como escreve Starobinski em seu livro Montaigne em movimento: "O que Montaigne exporá de sua saúde corporal será, portanto, uma antimedicina, mas habilitada a fazer frente à medicina, pelo fato de que pode, com mais razão, invocar a experiência em que a medicina, como vimos, assenta seus mandamentos" (p. 161). Poucas linhas adiante, completa: "A techné do médico é suplantada pelo saber viver do indivíduo exposto à doença".

2) Ao tentar, portanto, estabelecer contra-pensamentos diante da doxa de distintos campos (teologia, política, filosofia, medicina, etc), Montaigne luta no interior de certos campos discursivos - ele tem dificuldade de sair da linguagem médica para falar contra a medicina, como escreve Starobinski, mas também tem dificuldade de sair da linguagem teológica ou filosófica e assim por diante (ele faz uso de categorias, termos e metáforas: esse também é o procedimento central de sua relação com os textos do passado e com as citações que, frequentemente, deixa veladas em sua dicção - especialmente com Platão, Sócrates, Plutarco).

3) Montaigne vai aproveitar os termos da medicina - a teoria dos humores, a influência do ambiente, a harmonização dos influxos externos - para retornar à textualidade, à literatura: no ensaio "Sobre versos de Virgílio" (III, V), por exemplo, vai falar do valor terapêutico do calor: pensado não pelo viés evidente, na contraposição entre cru e cozido (Rousseau, Lévi-Strauss, Derrida...), mas metaforicamente, pelo viés do reaquecimento promovido pelos afetos, pelo amor. Ao mesmo tempo em que se abre à transformação, às alterações possíveis e intempestivas, porém, Montaigne reforça várias vezes que tenta, forçosamente, manter sem perturbações o seu estado habitual (ou seja, Montaigne luta contra sua própria doxa, contra a manutenção rígida de suas próprias posições; ele é "flexível", "pouco obstinado").

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Ainda o espirro


1) Em uma nota de rodapé da Seção 2 de seu ensaio História natural da religião, David Hume cita a História natural de Plínio para comentar a proliferação de divindades no contexto do paganismo; cita ainda Hesíodo e sua informação (Os trabalhos e os dias, I, 252) da existência de 30 mil divindades; acrescenta por fim que Aristóteles (Problemas, 7, 33) aponta que os domínios das divindades foram de tal modo tão subdivididos que havia até um deus dos espirros.

2) No mesmo livro, agora na Seção 12, também em uma nota de rodapé, Hume comenta especificamente a conduta de Xenofonte (grande capitão e filósofo, discípulo de Sócrates), prova "imediata e incontestável" da credulidade geral dos homens; aconselhado por Sócrates, Xenofonte consultou o oráculo de Delfos antes de se engajar, como mercenário, na expedição de Ciro (relatada por Xenofonte na "Anábase", que descreve a campanha militar de Ciro, o Jovem, contra seu irmão Artaxerxes II, rei da Pérsia, em 401 a.C. Xenofonte participou como mercenário nesta expedição, que envolveu um exército de dez mil gregos, e narrou a jornada de retorno após a morte de Ciro na Batalha de Cunaxa).

3) Já durante a expedição, Xenofonte teve um sonho na noite seguinte à captura do general, ao qual prestou grande atenção, mas que julgou ambíguo; em seguida, com todo o exército (escreve Hume), Xenofonte considerou que o espirro (não fica claro se é o espirro de uma forma geral ou se é o espirro de alguém específico) era um presságio muito favorável (o resgate do espirro é, na verdade, uma expansão do comentário sobre um texto de Plutarco no qual um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon, a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada).

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

50 desenhos


1) Depois de revisar o comentário que faz Cristina Rivera Garza sobre o livro de Alice Oswald, no qual resgata a Ilíada a partir dos soldados mortos, reencontro o manuscrito da Ilíada do século V com suas iluminuras, suas miniaturas - pouco mais de 50 desenhos sobreviveram, depois de recortadas e coladas em um segundo manuscrito, 600 anos mais jovem: as figuras foram, primeiro, desenhadas nuas e, posteriormente, cobertas com roupas de tinta (todas as imagens, aliás, cuidadosamente numeradas: seguindo a cronologia da história, seguindo o encadeamento e a sucessão das páginas) (Um adendo importante e revelador: boa parte das miniaturas são visíveis no site do Instituto Warburg). 

2) Sobre o projeto de Oswald, escreve Rivera Garza: "É, portanto, em primeira instância, uma pilhagem. A poesia olha de soslaio para a história e, com o bisturi na mão, retira do pântano de dados e anedotas o momento único e indivisível em que um ser humano perde sua vida. Afinal, isso é a guerra; é disso que se trata a guerra: como seres humanos de carne e osso perdem suas vidas violentamente. Armado, então, com os instrumentos da poesia, Oswald arranca essa perda que é a morte do acúmulo de dados ou de sangue que tantas vezes leva à indiferença, à insensibilidade ou a leituras desconexas" ("Usos do arquivo: do romance histórico à escrita documental", Os mortos indóceis, trad. J. R. Terron, WMF Martins Fontes, 2024, p. 150).

3) De resto, a pilhagem também é um tema homérico, parte constituinte do mundo da guerra homérica: viajar, conquistar, pilhar, retornar (nesse sentido, o procedimento poético de Oswald - semelhante àquele de María Negroni em livros como Archivo Dickinson ou Objeto Satie ou Cartas extraordinarias, precisamente o procedimento da pilhagem, do rearranjo do que já existe, etc - é homérico não só em seu tema ou conteúdo (os 200 soldados reiterados, singularizados), mas em sua dinâmica formal, na transformação da pilhagem em método de organização da poesia (que se desdobra em um segundo ponto fundamental: a enumeração, como aquela que faz o próprio Homero com as naus, por exemplo). 


domingo, 14 de setembro de 2025

200 soldados

Aquiles fazendo um sacrifício, "Ilias Picta"
manuscrito do séc. V, Biblioteca Ambrosiana

1) Em seu ensaio sobre os "usos do arquivo" na literatura (terceiro capítulo de seu livro Os mortos indóceis), Cristina Rivera Garza comenta um trabalho da poeta britânica Alice Oswald, Memorial. An Excavation of the Iliad, no qual ela descarta "sete oitavos" do poema de Homero, resgatando apenas as mortes: Oswald filtra o texto homérico a partir do critério das cenas de morte, deixando na superfície de seu próprio texto apenas o registro da morte de aproximadamente duzentos soldados. Toda morte que aparece em Homero é, ao mesmo tempo, geral e específica - diz respeito ao evento incontornável da morte, que chega a todos, mas diz respeito também às especificidades daquele destino (um destino que envolve, no âmbito do poema, a maestria de Homero no trato com os detalhes: a cabeça separada do corpo; o homem curvado como chumbo).

2) O objetivo principal de Rivera Garza no resgate do trabalho de Oswald (que pode ser lido em paralelo com aquele, mais celebrado e conhecido, de Anne Carson) é comentar e enfatizar a presença dos mortos, pelo viés da "vida precária" de Judith Butler (os soldados mortos como efeito colateral da manutenção do poder, da soberania e assim por diante); o que me interessa, por outro lado, é o modo como o procedimento poético de Oswald garante seu alinhamento a uma linhagem complexa e produtiva da história literária: o uso da forma breve para apreender um conjunto de vidas - uma linha associativa que abarca Vidas dos artistas de Vasari, Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, as Vidas minúsculas, de Pierre Michon, e assim por diante.

3) Oswald transforma os soldados de Homero em vinhetas biográficas; conta suas vidas na guerra a partir do evento da morte, apresentando seus nomes em caixa alta dentro dos versos do poema: PROTESILAUS, ECHEPOLUS, ELEPHENOR, SIMOISIUS, LEUKOS, DIORES, PIROUS, etc, como entradas de uma enciclopédia ou dicionário. É Oswald quem diz, no prefácio: "Minhas ‘biografias’ são paráfrases do grego; meus símiles, traduções. Entretanto, minha abordagem da tradução é bastante irreverente. Eu trabalho bem colado ao grego, mas em vez de transpor as palavras para o inglês, eu me valho delas como fendas através das quais se vê o que Homero estava mirando" (tradução aqui).

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Contra Flaubert



De fato, detesto Flaubert.

Só mesmo um macho francês

esnobe cheio de si

para zombar a tal ponto 

dos sonhos de uma mulher.

Um macho,

quer dizer, 

alguém que não sonha.

(Os homens sempre tiveram

ciúmes dos sonhos das mulheres

porque não podem controlá-los.)

Flaubert sonhou Emma Bovary,

mas pode-se dizer, com toda a certeza,

que Emma Bovary jamais sonhou Flaubert.

(No final de seus dias, Flaubert estava 

farto da fama de Madame Bovary.

Ela era mais célebre que ele.)


(Cristina Peri Rossi, "Contra Flaubert", Aquela noite (1996), in: Nossa vingança é o amor: antologia poética (1971-2024), edição bilíngue, seleção e tradução de Ayelén Medail e Cide Piquet, São Paulo: Editora 34, 2025, p. 110)