domingo, 12 de maio de 2024

Apanhar uma bolinha


1) Em linhas gerais, os diários de Kafka se organizam em três eixos de produção: em primeiro lugar, o registro do cotidiano, encontros, conversas, rascunhos de cartas (e também os sonhos, que poderiam formar uma subcategoria); em segundo lugar, o registro das ideias para sua ficção, com rascunhos de histórias e fragmentos de contos; em terceiro lugar, a preocupação com o próprio diário, que muitas vezes é tópico de reflexão (e preocupação) por parte do autor.

2) “Folheei um pouco os diários”, escreve ele em outubro de 1914 (tradução de Sergio Tellaroli). “Tive uma espécie de ideia de como uma vida como a minha se organiza”. Ou, em abril de 1912, o diário como “conhecimento completo de si mesmo”: “Poder abarcar a amplitude das próprias capacidades como quem apanha uma bolinha”. Em fevereiro do mesmo ano: “A partir de hoje, manter-me firme na escrita do diário! Escrever com regularidade! Não desistir de mim mesmo!”.

3) As emoções básicas que formam toda vida (e todo diário) marcam presença também no cotidiano de Kafka. Ele sente inveja do colega escritor Franz Werfel, mais habilidoso socialmente e bem-sucedido com seus livros; ama com devoção seu melhor amigo Max Brod, mas também se sente incomodado com ele; ama também de forma ambivalente Felice Bauer, sua noiva por duas vezes (noivado desfeito por Kafka nas duas ocasiões); respeita os pais, mas não consegue conter a angústia decorrente da falta de entendimento e comunicação dentro da família, e assim por diante.

domingo, 5 de maio de 2024

Ler um por causa do outro

Michel Foucault em 1954

"Vale notar que quando Foucault tenta explicar por que leu Nietzsche e diz que não sabe, ele está nos mostrando, por sua própria confissão de ignorância, que o sujeito não pode fornecer plenamente os fundamentos de seu próprio surgimento. O relato que faz de si mesmo revela que ele não conhece todos os motivos que agiram sobre ele e nele naquela época. Ao tentar responder por que leu Nietzsche, ele diz que outros pensadores o leram - Bataille e Blanchot  -, mas não diz por que isso representa um motivo, ou seja, que o motivo de ler Nietzsche foi a necessidade de se atualizar ou a influência que sofreu. Lê um por causa dos outros, mas não sabemos que tipo de explicação é essa. O que ele leu em um que o motivou a procurar o outro?"

(Judith Butler, Relatar a si mesmo: crítica da violência ética, trad. Rogério Bettoni, Autêntica, 2015, p. 150)