sábado, 6 de setembro de 2025

Alice, Lincoln, Ford


1) Além de incorporar, em uma das cenas de Alice in den Städten, a presença física de um dos livros de Peter Handke, Wim Wenders também incorporou um dos filmes de John Ford, Young Mr. Lincoln, de 1939, transmitido na televisão de um dos quartos de hotel no qual se hospeda o protagonista; esse filme, contudo, é a incorporação de uma incorporação: esse filme de Ford é citado por Wenders em seu filme porque é citado, anteriormente, em um romance de Handke de 1972, Breve carta para um longo adeus (a história de um jovem escritor austríaco que viaja pelos Estados Unidos em busca de sua esposa, de quem está afastado; Ford inclusive aparece como um personagem no fim da estrada na costa da Califórnia).

2) O mecanismo narrativo básico do filme de Wenders é o da incorporação: fragmentos alheios à cronologia progressiva do filme que são costurados à história; acontece com a capa de Handke e com o filme de Ford, mas acontece também - e sobretudo - com as fotografias instantâneas que o protagonista faz com sua Polaroid ao longo de todo o filme (a primeira cena mostra o protagonista olhando e rearranjando o conjunto das fotografias que tirou até aquele momento, um passado fragmentado que irrompe no presente da narrativa: uma passado que pode ser reposicionado, montado, embaralhado, como nas lições de montagem de Aby Warburg e, na esteira desse, Georges Didi-Huberman).

3) Como na fotografia que surge na abertura de A invenção da solidão, de Paul Auster, é também uma fotografia - retirada da bolsinha que Alice leva no pescoço - que reconfigura o percurso do filme: o protagonista e a menina precisam seguir viagem para encontrar alguém que se responsabilize por ela; será a avó; a menina tem uma fotografia da casa (mas não sabe onde é); como no frame do filme sobre Terezín que Sebald incorpora em Austerlitz (a mãe que, aparentemente, surge veloz, como um relâmpago, reconfigurando o percurso/narrativa de Jacques Austerlitz), e eles começam a percorrer a Alemanha de carro em busca do referente real que faz jus à imagem e que permitirá a conclusão da história (que é, mais uma vez, suspensa, postergada, quando a casa finalmente aparece - quem mora lá, agora, é "uma italiana", diz a menina). 

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