quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Tempo, morte, família


1) Em seu livro dedicado a Alejandra Pizarnik, César Aira escreve sobre o surrealismo: a ideia de que se o artista produz algo de banal usando as técnicas do surrealismo, ainda assim estará produzindo algo de banal, desinteressante, inócuo. A técnica se submete ao talento, e não o contrário. Aira afirma que, quando Pizarnik começa a escrever, na década de 1950 (ela nasce em 1936), o surrealismo já é uma relíquia do passado e que já está morto: Pizarnik então "instrumentaliza a metodologia de uma escola morta", continua Aira, "como alguém que usa o relógio de um parente morto". 

2) A imagem é excelente e fica ainda mais valorizada pela rapidez com que Aira a emprega, logo partindo em direção a outra frase, outra ideia (a ideia de que o surrealismo já nasceu morto e que, por isso, segue circulando de forma póstuma e sempre renovada). A imagem funciona não apenas porque o relógio é um símbolo/artefato tão ligado ao surrealismo, mas especialmente porque faz pensar simultaneamente em três elementos: o tempo, a morte e a família (uma triangulação que é fundamental não apenas para a poética de Pizarnik, mas para boa parte da literatura feita desde Homero - esses três elementos, tempo, morte e família, não resumem também a Odisseia?).

3) Em um breve texto sobre Pizarnik, Enrique Vila-Matas (também ele um continuador, ou ao menos um entusiasta do surrealismo) fala sobre o suicídio e sobre a capacidade que obra/figura de Pizarnik tem de desafiar o tempo (mais uma vez o tempo, portanto - sua linguagem "resiste à passagem do tempo", escreve Vila-Matas, acrescentando ainda outras palavras à equação: "sono, morte, infância, terror, noite"). De certa forma, escreve ainda Aira, "a poesia morreu com ela"; "agir como se ela ainda estivesse viva, mesmo metaforicamente, é desvalorizá-la" (agora é Pizarnik quem deve ser levada por aí, como o relógio de um parente morto).

domingo, 27 de dezembro de 2020

Nabokov, leitor


1) Em vários momentos de sua obra - nos romances, nos contos, nas entrevistas, nas aulas - Nabokov marca (com distintos graus de ênfase) a centralidade da experiência única, irrepetível, da visão de mundo intrasferível. E, ao mesmo tempo, ele também insiste na possibilidade de imposição dessa visão de mundo pessoal sobre outros. Mesmo quando fala de Flaubert, Kafka ou Joyce, Nabokov está falando de si próprio e da impossibilidade de se escapar da redoma da subjetividade, especialmente se você for um gênio (como é o caso dele em sua própria percepção: I think like a genius, I write like a distinguished author, and I speak like a child, escreveu ele).

2) No que diz respeito às aulas de literatura, Nabokov sempre faz questão de frisar como pensou, preparou, escreveu e datilografou tudo com muito cuidado, oscilando entre uma cena de auto-aprimoramento (escrevi e preparei pelo gosto de reler romances que gosto) e uma cena de indulgência e irônica generosidade (quem sabe assim vocês aprendem algo). O mesmo se aplica ao conteúdo das aulas: muitas vezes a leitura de Nabokov se prende aos detalhes, se prende à sua capacidade de desvendar uma camada subterrânea dos textos a partir de sua atenção privilegiada, sua atenção não só de escritor, mas de gênio - um gênio que se aplica a todas as instâncias (produção, recepção, decodificação).

3) Quando lê Kafka, Nabokov se mostra interessado em esmiuçar a planta da casa da família em A metamorfose; quando lê Flaubert, Nabokov se mostra interessado em problemas de tradução em uma passagem muito específica sobre um dos penteados de Emma Bovary, e assim por diante. Nabokov me parece completamente avesso a qualquer tipo de cenário messiânico - tão importante para nomes como Kafka, Benjamin ou Agamben -, no qual o apego ao detalhe surge como espécie de projeção em direção a um futuro incerto, mas desejado (Nabokov tem plena consciência que o mundo como ele conheceu já não existe mais e está muito além de qualquer chance de recuperação - seu apego ao detalhe é, mais uma vez, extremamente autocentrado, diz respeito ao seu projeto pessoal de resistência e de apego).  

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Utopia, sublime


1) Em "The Politics of Interpretation" (originalmente de 1982), um dos capítulos de seu livro The Content of the Form, Hayden White reflete sobre as condições que tornam possível a transformação de um "campo de estudos" em uma "disciplina" - com o objetivo final de pensar sobre as relações entre História e Literatura (no século XIX, escreve ele, para a primeira se tornar disciplina teve que camuflar seus laços com a segunda). Em confronto com o romance realista do século XIX, o discurso histórico quer disciplinar a própria consciência, distanciando-se do utopian thinking in all of its forms. White afirma que a pulsão utópica (e a dimensão estética do sublime) é sacrificada para a consolidação da autoridade da disciplina histórica.

2) A performance de exclusão da utopia e do sublime no discurso disciplinar no século XIX gera, quase que de imediato, uma potente resposta: basta pensar em Nietzsche (escrevendo A gaia ciência perto do Lago Silvaplana, na Suíça, Nietzsche liga a emergência de Zarathustra ao sublime). Tudo isso acontece poucos anos antes da morte de Ranke, que acontece em 1886. Escrevendo a partir de Nietzsche e desse movimento de resposta à exclusão da utopia e do sublime, Walter Benjamin vai se posicionar contra esse conjunto de limitações em vários pontos de sua obra (não à toa vai resgatar os românticos, vai recorrer ao pensamento místico judaico e vai absorver igualmente a dimensão utópica do marxismo, fazendo malabarismo com essas vertentes).

3) Em paralelo a essa movimentação benjaminiana, acompanhamos uma série de artistas envolvidos em projetos nos quais o tempo, a história e a experiência são transtornados ao extremo - desde Proust e Eliot, até Woolf e James Joyce, passando pelos futuristas, dadaístas, surrealistas e assim por diante. Existem outros experimentos análogos, não tão drásticos em termos formais, mas igualmente desviantes com relação ao recalcamento do utópico e do sublime, como a reconfiguração do conto de fadas em Robert Walser ou da fábula em Kafka.         

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

D-H, JLG


1) Georges Didi-Huberman, em seu livro sobre Godard (Passés Cités par JLG): o jogo de palavras do título mostra que citar o passado é uma sorte de antídoto à "cegueira" no presente (pas cecité), um trabalho de invenção diante do passado (como aparece escrito em um dos quadros de História(s) do cinema, “fazer uma descrição precisa daquilo que não aconteceu é a tarefa do historiador"). Não se trata de "arbitrariedade interpretativa", como se tudo pudesse ser dito, mas de “despertar no passado as centelhas da esperança”, como escreve Benjamin nas teses.

2) Citar não para se esconder por trás da citação, mas para fazer pensar não sobre o que estava lá (o passado), mas sobre o que está aqui (o presente - present oriented, como diz Hayden White em "O passado prático"). Godard, segundo Didi-Huberman, ao usar a citação (ao requisitar o "trabalho da citação", como escreve Compagnon), coloca-se sempre "a meio caminho entre dois gestos aparentemente contraditórios: entre a desautorização de tudo aquilo que ele cita e a re-autorização de si mesmo enquanto 'organizador consciente das relações forjadas e das montagens produzidas em seus filmes e textos".

3) Didi-Huberman aproxima Malraux de Godard, falando de uma "concepção fraca de historicidade" no primeiro e uma superação disso no segundo, pela via dos "jogos de justaposição por atrito de imagens e textos". Em outro livro, D-H estabelece uma diferença entre o Álbum de Malraux e o Atlas de Warburg; o primeiro buscando uma "história universal" que "tenderia ao intemporal, negando os processos, os conflitos e as divisões"; o segundo ligado à "historiografia materialista" fundada na montagem, via Benjamin, "que divide para pôr em movimento, que dissocia para trazer à luz, a cada instante, o choque que se cristaliza em mônada, depois em constelação" (L'Album de l'art à l`époque du Musée imaginaire. Paris: Editions Hazan, 2013, p. 171).

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Política das diferenças


Arno Gisinger: Qual é a importância do pesquisador e artista André Malraux na relação que você estabelece entre fotografia e história da arte? 

Georges Didi-Huberman: Ele é importante, todo mundo sabe. Seus trabalhos do Museu imaginário são obras-primas da edição de arte, e marcaram época. Mas era um modelo que eu não deveria seguir. O modo como Malraux usa a fotografia de arte é prescritivo, englobante, normativo, para além de suas intuições fulgurantes. Depois de Walter Benjamin e Warburg podemos, ao contrário, imaginar um uso da fotografia na história da arte que não seja ilustrativo, mas hipotético. Diante de uma montagem com duas imagens, Malraux propunha que ela respondesse a perguntas do tipo: qual é o estilo dedutível dessa associação? O que é a arte,  afinal de contas? Parece-me que podemos ser ao mesmo tempo mais modestos (no plano metafísico) e mais operativos (no plano dos contatos ou dos contrastes entre imagens), como Georges Bataille, por exemplo, na extraordinária ilustração de sua revista Documents. Existem ali bifurcações cruciais na “política das diferenças” a adotar quando utilizamos as imagens fotográficas para ter uma  ideia mais sensível da história.

Da entrevista publicada na Revista Zum.

*

1) Ao modo de Giovanni Morelli, o crítico de arte italiano do século XIX, é possível dizer que o estilo está mais pronunciado justamente quando não se está prestando atenção (quando o pintor faz os dedos dos pés ou os lóbulos das orelhas, escreve Morelli). É essa intuição de Morelli que será tão útil para Freud em O Moisés de Michelangelo e que formará parte central do amplo percurso de Carlo Ginzburg em "Sinais: raízes de um paradigma indiciário" (percurso que expandirá enormemente, dez anos depois, em 1989, com a publicação do livro História noturna).

2) Tudo isso para dizer, portanto, que o estilo relampeja no momento de espontaneidade, como nesse momento da entrevista em que Didi-Huberman fala de Benjamin e Warburg ao falar de Malraux - ou seja, mais uma vez o anacronismo fabrica a história, algo que Didi-Huberman elaborou teórica, crítica e fenomenologicamente, mas que aqui surge de forma espontânea no registro um pouco labiríntico da conversa

3) De certa forma, é o "museu imaginário" de Malraux que permite observar certas potencialidades dos projetos críticos de Benjamin, Bataille e Warburg - em certo sentido, Didi-Huberman cria esses precursores do "museu imaginário" ao identificar as lacunas e limitações do ponto de partida (um ponto de partida anacrônico, mas de um anacronismo deliberado, que transforma a sucessão histórica convencional em uma "política da diferença", como diz Didi-Huberman). O fato de Malraux ter vindo "depois" não assegura sua "completude" diante das referências "anteriores"; a "anterioridade" não é, de novo, uma marca da falta, mas uma marca da diferença. 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

O ofício de viver

"A forma moderna do diário do escritor mostra uma evolução peculiar, quando examinamos alguns de seus principais expoentes: Stendhal, Baudelaire, Gide, Kafka e agora Pavese. A desinibida exposição de egocentrismo se transfere para a busca heroica de apagamento do ego. Pavese nada tem da percepção protestante de Gide de sua vida como uma obra de arte, do respeito pela própria ambição, da confiança em seus sentimentos, do amor por si mesmo. Tampouco tem o sério e apurado compromisso de Kafka com sua angústia pessoal. 

Pavese, que usava o 'eu' tão prodigamente em seus romances, em geral se refere a si mesmo no diário como 'você'. Não se descreve; dirige-se a si mesmo. É o espectador irônico, exortativo, crítico de si. Parece inevitável que a consequência última dessa visão distanciada de si fosse o suicídio. Os diários, com efeito, constituem uma longa série de avaliações e indagações pessoais. Não registram nada sobre o cotidiano ou fatos ocorridos; não há nenhuma descrição de parentes, amigos, amantes, colegas ou reação a acontecimentos públicos (como nos Diários de Gide)."

(Susan Sontag, Contra a interpretação e outros ensaios, trad. Denise Bottmann, Cia das Letras, 2020, p. 66)

1) O ensaio de Sontag sobre Pavese é de 1962 e ela já escrevia seu próprio diário desde novembro de 1947, quando tinha quatorze anos; um traço subterrâneo da genealogia que ela propõe é sua própria projeção como diarista, no futuro, décadas depois e de forma póstuma (ela prepara a recepção do próprio diário);

2) "A busca heroica de apagamento do ego": essa é, sem dúvida, a divisa tomada por Coetzee a partir de T. S. Eliot, especialmente em Juventude, romance de 2002 (a carga ambivalente que Sontag encontra em Pavese também está em Coetzee: o "crítico de si" e "espectador irônico" será amplamente trabalhado por ele em Verão, o romance de 2009);

3) De resto, a breve genealogia apontada por Sontag dá conta de três poéticas fundamentais para a literatura da segunda metade do século XX: Coetzee (não só o "crítico de si" e o "apagamento do ego", mas especialmente o recurso ao "você" ao invés do "eu"); Sebald (o "apurado compromisso" de Kafka com sua "angústia pessoal" foi agudamente notada por Sebald, que reconfigura esse compromisso em Vertigem - resgatando também Stendhal, mencionado por Sontag); e Enrique Vila-Matas (Gide é decisivo tanto para Doutor Pasavento quanto para O mal de Montano, por exemplo);  

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Ruído branco

O que é o "ruído branco" para Don DeLillo, para além do sentido imediato ligado às emissões fora de sintonia, aleatórias e com intensidade equilibrada em diferentes frequências? Seu estilo detalhista, seu apego crítico à tecnologia, seus personagens por vezes inusitados, excêntricos, falam de um mundo que oscila entre a hiper-conexão irrestrita (o consumismo como ontologia) e uma inércia subjacente, uma sorte de sonambulismo quimicamente induzido (faz sentido pensar em Hermann Broch e na trilogia dos sonâmbulos (1930, 1931, 1932): os mundos de DeLillo e Broch são semelhantes na embriaguez de tecnologia da guerra e na incerteza histérica da passagem de mãos das "potências mundiais").

A questão de DeLillo é também uma questão heideggeriana na medida em que tenta elaborar cenários possíveis a partir da relação entre o Ser e a técnica e a expansão desse atravessamento no próprio tecido do tempo (Submundo é a arqueologia pluridimensional de um artefato - a bola de beisebol - capturado nessa trama; A artista do corpo faz da materialidade do ente o próprio artefato). A reflexão sobre a "atmosfera" (central não só para Heidegger, mas também e especialmente para Peter Sloterdijk) é determinante em Ruído branco: "Após uma noite de neve onírica, o céu ficou limpo e tranquilo. Havia uma tensão azulada na luz de janeiro, uma dureza, uma confiança. O ruído de botas pisando neve compacta, os riscos nítidos deixados pelos jatos no azul. O tempo era um dado muito relevante, embora de início eu não o soubesse" (Ruído branco, trad. Paulo Henriques Britto, Cia das Letras, 1987, p. 107).

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Pilatos

La Clef des champs, 1936

 "Uma afirmação falsa, uma afirmação verdadeira e uma afirmação inventada não apresentam, do ponto de vista formal, nenhuma diferença. Quando Benveniste analisou os tempos dos verbos franceses serviu-se, sem hesitação, de exemplos tirados ora de romances, ora de livros de história. Num curto romance chamado Pôncio Pilatos, Roger Caillois explorou com muita inteligência as implicações dessa analogia. É noite: na manhã seguinte Jesus será processado. Pilatos ainda não decidiu a sentença que proferirá. Para induzi-lo a escolher a condenação, um personagem prevê uma longa série de acontecimentos que se seguirão à morte de Jesus: alguns importantes, outros insignificantes - mas, como o leitor compreende, todos verdadeiros. No dia seguinte Pilatos resolve absolver o imputado. Jesus é renegado pelos discípulos; a história do mundo toma outro caminho. A contiguidade entre ficção e história faz pensar naqueles quadros de Magritte em que estão representados, lado a lado, uma paisagem e seu reflexo num espelho quebrado"

(Carlo Ginzburg, "Descrição e citação", O fio e os rastros, trad. Rosa Freire d'Aguiar e Eduardo Brandão, Cia das Letras, 2007, p. 18).

domingo, 29 de novembro de 2020

Retorno a Reims


1) Didier Eribon publica em 2009 um livro incrível, um híbrido de autobiografia e estudo sociológico, Retorno a Reims, motivado pela morte do pai, a quem não via há anos (Eribon disseca suas origens operárias e seu esforço de rompimento com a "vida determinada" que lhe parecia destinada). Além de evocar indiretamente tantos outros textos sobre a morte/vida dos "pais" (da carta de Kafka ao Patrimônio de Philip Roth, passando pelos espectros de Marx em Derrida), Eribon cita e trabalha a partir de vários nomes e textos, costurando-os ao seu próprio percurso pessoal: Foucault, Deleuze, Sartre, Dumézil, Lévi-Strauss e, com ênfase especial, Annie Ernaux (de resto, a reivindicação do passado como componente da autorreflexão no presente feita por Eribon faz pensar no "passado prático" de Hayden White, estabelecido a serviço do "presente" como um "espaço de experiência").

2) Outro ponto de resgate fundamental no livro de Eribon é a figura de Foucault (biografado por Eribon em livro de 1989). Eribon comenta sua própria condição de sujeito "minoritário" e "estigmatizado", submetido à "violência discursiva e cultural", a partir da vivência e do pensamento de Foucault: "Entendemos por que, por exemplo, o clima que predomina nos primeiros textos de Foucault, ao longo dos anos 1950, no seu prefácio ao livro de Ludwig Binswanger O sonho e a existência de 1954 até a História da loucura, finalizado em 1960, é precisamente o da angústia, que exprime todo o vocabulário, que ele mobiliza com uma intensidade perturbadora, de exclusão, estranheza, negatividade, silêncio forçado e mesmo da queda e do trágico".

3) "Quando releio esses textos brilhantes e dolorosos de Foucault, que inauguraram sua obra", escreve Eribon, "reconheço neles algo de mim: eu vivi o que ele escreveu, e ele tinha vivido antes de mim, buscando um meio de escrever sobre isso. E vibro a cada página, ainda hoje, com uma emoção que vem do mais fundo de meu passado e do sentimento imediato de uma experiência compartilhada com ele. Sei até que ponto foi difícil para ele superar essas dificuldades. Ele tentou muitas vezes se suicidar. E caminhou durante muito tempo em um equilíbrio incerto sobre a linha que separa a razão da loucura. Ele saiu disso por meio do exílio (primeiro na Suécia), depois pelo trabalho paciente de um questionamento radical do discurso pseudocientífico da patologização médica" (p. 263-264).

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Roma, 1492


1) Em determinado momento do quarto capítulo de Nondimanco, seu livro sobre Maquiavel e Pascal lançado em 2018, Carlo Ginzburg parece suspender o andamento da argumentação para comentar algo sobre a materialidade de um livro: a edição de 1492, feita em Roma, do comentário de São Tomás de Aquino à Política de Aristóteles. O objetivo principal de Ginzburg é estabelecer qual foi a edição da Política lida por Maquiavel - para chegar lá (nesse ponto argumentativo lançado para o futuro), ele visita geograficamente a Biblioteca Comunale degli Intronati de Siena, onde está um exemplar da edição de 1492.

2) "O exemplar que consultei", escreve Ginzburg, "tem um valor especial, porque pertenceu àquele que inspirou o projeto editorial: Agostino Piccolomini" (não confundir com Agostino Patrizi Piccolomini). Ginzburg descreve as duas cartas dedicatórias presentes no exemplar: a primeira é escrita por Agostino e endereçada ao seu mestre, Ludovico di Valenza; a segunda carta é escrita pelo próprio Ludovico e endereçada ao tio de Agostino, Francesco Todeschini Piccolomini, que em breve se tornaria o Papa Pio III (ocupando o posto de 22 de setembro a 18 de outubro de 1503). O exemplar se torna uma sorte de testemunha dos eventos e da materialidade dos corpos daqueles de quem fala Ginzburg - na linha do Barthes da Câmara clara: "vejo os olhos que viram o Imperador".

3) Gostaria de ler um relato suplementar ao livro de Ginzburg, uma sorte de apostila, dedicada exclusivamente a detalhar as viagens necessárias para ter em mãos certos livros. Não é só esse de Agostino Piccolomini em Siena que Ginzburg cita: vários outros livros únicos aparecem e são elementos determinantes para a argumentação (ele aponta diferenças entre os exemplares, acréscimos, substituições, rasuras e assim por diante). O livro de Pontano sobre a prudência, de 1508 (edição napolitana), foi consultado em Bolonha; a edição das Vidas de Plutarco em latim, de 1491 (edição veneziana), foi consultada em Chicago, e assim por diante.

domingo, 22 de novembro de 2020

Se eu me esquecer


1) Como o romance faz para fazer sentido, como ele estabelece, a partir da articulação da sua forma, a plausibilidade de seu discurso e de sua possibilidade de fazer sentido? Ou melhor, como a composição formal do romance atua sobre a performance sempre renovada da leitura, enfatizando certos traços e sublimando outros? Um romance como Dusklands, de Coetzee (que comentei dias atrás), arma um complexo sistema de significação a partir de sua construção formal (para falar com Hayden White, o "conteúdo da sua forma" passa pelo registro dos eventos em uma determinada configuração deliberada; o conteúdo da forma, no caso do romance de Coetzee, é seu esforço de tornar manifesta a configuração formal).

2) Em vários momentos da sua obra Coetzee aparece como um leitor de Faulkner (como em Elizabeth Costello), na ficção, no ensaio e na mescla de ambos (como em Diário de um ano ruim). A divisão seca que Coetzee propõe entre as duas partes de Dusklands retoma aquela de The Wild Palms, de Faulkner (cada parte com 5 capítulos cada, a primeira sobre Harry e Charlotte, a gravidez, o aborto e a morte; a segunda sobre o prisioneiro que é levado para auxiliar os habitantes de uma região inundada pelo rio Mississippi, resgata uma mulher grávida, ela dá à luz e ele retorna à prisão). A forma do romance de Coetzee coloca já de antemão o caráter indireto da relação entre as partes (a guerra psicológica no Vietnã, a guerra colonial na África do Sul no século XVIII) e postula a necessidade de um esforço de conexão por parte do leitor (uma performance cognitiva potencialmente infinita).

3) É irônico que mesmo a história do título de Faulkner seja cindida: The Wild Palms foi publicado em 1939 com o título escolhido pelo editor da Random House. Faulkner não aprovou, preferia o título escolhido por ele, If I Forget Thee, Jerusalem (referência ao Salmo 137, verso 5: Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha direita da sua destreza). Desde a década de 1990 as edições do romance já incorporam os dois títulos (a relação entre os dois títulos é também produtiva e inacabada, como o próprio romance e a reconfiguração de Coetzee em Dusklands: o título bíblico, recorrente em Faulkner, diz respeito à dimensão arcaica da experiência, o misto de religiosidade e intransigência da vida no Sul; o título dos editores é uma demarcação clara do espaço geográfico e da experiência do sujeito diante do meio - a falta, a fome, a seca, a cheia, os ciclos da natureza, o nascimento/morte, o ciclo da vida, a morte inevitável, o caráter vão de todo esforço de mudança e assim por diante).      

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Eco, palavra preciosa


1) Reencontro uma passagem do livro de Roland Barthes de 1970, O império dos signos, híbrido de relato de viagem, tratado semiótico e livro de imagens (e tanto mais). Ele está comentando o haicai - o haicai como forma e como vazio de forma, como performance de uma "isenção do sentido":

"é talvez por isso que ele é dito duas vezes, em eco; dizer apenas uma vez essa palavra preciosa seria atribuir um sentido à surpresa, à ponta, à repentinidade da perfeição; dizê-lo várias vezes seria postular que há um sentido a ser descoberto, seria simular a profundidade; entre os dois, nem singular nem profundo, o eco não faz mais do que traçar uma linha sob a nulidade do sentido" (p. 100).

2) Edward Said, em The World, the Text, and the Critic, recupera a célebre passagem do 18 de Brumário de Luís Bonaparte, fórmula hegeliana em sua origem: "Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes", escreve Marx, e continua: "Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa". Ainda que não se escape do imperativo da repetição, argumenta Said a partir de Marx, é não só possível como necessário intervir criticamente na significação (estética, discursiva, política) dessa repetição, daí a relevância central do trabalho com a linguagem, que constitui o instrumento de intervenção por excelência.

3) Mais próxima da perspectiva Zen contemplada por Barthes está a situação de Beckett, especialmente da peça que ele estreia em janeiro de 1953, Esperando Godot (a escrita aconteceu entre outubro de 1948 e janeiro de 1949). A frase de Barthes sobre o eco e a nulidade do sentido do haicai me fez pensar naquilo que o crítico Vivian Mercier famosamente escreveu, em 18 de fevereiro de 1956, no The Irish Times, sobre a peça: Beckett "has achieved a theoretical impossibility—a play in which nothing happens, that yet keeps audiences glued to their seats. What's more, since the second act is a subtly different reprise of the first, he has written a play in which nothing happens, twice".

domingo, 15 de novembro de 2020

Dusklands / Portnoy


1) Na História da sexualidade, ao falar da "vontade de poder" (1976), Foucault descreve, comenta e problematiza a dimensão dos "dispositivos do poder", estratégias que geram discurso ao dar a impressão que o discurso é interditado (o aparente interdito é uma das ramificações do dispositivo em sua constante coerção do sujeito). Trata-se de uma dimensão inerente à própria linguagem e sua condição de permanente incompletude (já está no Fedro, reaparece na polêmica de Karl Kraus com a psicanálise - pensada como solução para um problema que seu próprio discurso cria - e mais recentemente nas várias reflexões de Peter Sloterdijk (No mesmo barco, Se a Europa despertar) sobre o discurso "democrático" do Ocidente que descrever, denuncia e cria o "terrorismo" de que é vítima).

2) O dispositivo atua a partir da ambiguidade do discurso, preservando e abolindo ao mesmo tempo (uma versão da Aufhebung hegeliana?). Publicado em 1969 (o mesmo ano da Arqueologia do saber de Foucault), Portnoy's Complaint, o romance de Philip Roth, é emblemático dessa dinâmica: o dispositivo que permite o discurso (a cena analítica) é o mesmo que impede sua resolução e garante sua disseminação virtualmente infinita (a cena da "cura" intensifica a "doença", dando novos significados e ressonâncias para algo que, inicialmente, era quase sem importância). O próprio "discurso-romance" é simultaneamente preservado e abolido, já que seu encerramento é, ao mesmo tempo, uma desistência e um reenvio ao início.

3) Em 1974, Coetzee publica seu primeiro romance, Dusklands, dividido em duas narrativas "independentes" (sendo esse efeito de dissociação uma das principais dimensões do dispositivo preservação-abolição no romance): "The Vietnam Project" e "The Narrative of Jacobus Coetzee". A primeira conta a história de um homem que trabalha em uma agência governamental dos EUA que coordena as estratégias de guerra psicológica no Vietnã; a segunda se passa no século XVIII e fala da incursão do Coetzee do título para caçar no interior do país (o romance é o trabalho intenso de Coetzee a partir de uma imersão nos arquivos e de sua própria exposição ao dispositivo discursivo colonial - pesquisando relatos de viajantes na África do Sul primeiro na biblioteca do British Museum, depois na biblioteca da University of Texas at Austin - onde lia também os manuscritos de Beckett).  

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Charbovari


Em seu livro Os nomes da história, Jacques Rancière faz uma reflexão acerca da ambiguidade inerente a todo discurso que se quer "disciplinar" ou "instituído", enfatizando que tal ambiguidade é sempre mais evidente nos "nomes" mobilizados e assinalados (na linha daquilo que comenta Foucault em A ordem do discurso acerca do "marxismo" e do "freudismo", por exemplo). 

É preciso aprender com a instabilidade do discurso literário, escreve Rancière; aprender, por exemplo, com Virginia Woolf a fazer a narrativa nascer "entre os atos" da promessa de uma frase saída do mesmo silêncio que os "sujeitos da era democrática e suas expectativas de amanhãs" ("Sim, é claro, se fizer tempo bom", diz a sra. Ramsay, "Mas vocês terão de acordar ao amanhecer", cita Rancière de To the Lighthouse); ou ainda, ver como Flaubert multiplica a história de vidas mutiladas a partir "do não sentido de um nome estropiado" (ou seja, "Charbovari", o modo como o professor escuta o nome de Charles Bovary no início do romance); ou ainda, seguir em James Joyce "as peregrinações do novo Ulisses", insular, urbano e "traído pela esposa", "andando em círculos pela cidade de colonizado, partido pela multiplicidade de línguas, destruindo, um pelo outro, o livro de vida cristão e o livro de vida pagão" (p. 153).

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Herança


1) Um aspecto fundamental de Proust que fica de fora do ensaio de Benjamin (que comentei dias atrás) é a relação entre a obra e o dinheiro. Entre muitas coisas que se tornam legíveis no século XIX a partir de Proust, uma delas é a relação entre difusão do impresso e literatura: Hugo, Balzac, Dumas, Dickens escreveram o tanto que escreveram porque com isso ganhavam dinheiro (e cabe a reflexão, que Benjamin não faz, da relação entre herança e obra em Proust, ou seja, o fato de Proust não precisar "escrever para ganhar dinheiro" e poder, simplesmente, escrever - elemento valorizadíssimo adiante por Barthes, que também não fará a conexão).

2) Flaubert, por sua vez, que vivia de rendas, estava disponível para desenvolver a poética da lentidão que desenvolveu - de novo, por não precisar escrever para ganhar dinheiro, podia simplesmente escrever (e especialmente reescrever, virando as frases do avesso, passando um dia inteiro ao redor de uma única frase e, ao final do dia, jogá-la fora, como relata em várias cartas a Louise Colet). No caso de Proust, Jacques Bonnet (em seu livro Algumas historietas) dá números exatos: ele recebeu 1,35 milhão de francos de herança depois da morte da mãe (Bonnet indica em nota que, em 2010, esse valor equivaleria a 4,1 milhões de euros). 

3) Faz parte da dimensão da obra de Proust sua possibilidade de distanciamento do mundo e atenção obsessiva à escrita (a procrastinação da publicação, por exemplo, e a revisão interminável - embora isso também fosse o caso para Balzac, embora com efeitos distintos; é preciso mencionar também que Proust arca com os custos da publicação do primeiro volume, em 1913, pela editora Grasset). Benjamin fala do estilo asmático de Proust, relacionando com a dimensão do "exercício espiritual" e da "auto-absorção" de Loyola (Barthes, de novo); é preciso acrescentar a noção de um estilo que é herança (simbólica) de uma herança (financeira), um tema que, de resto, se encaixa naquele outro que Benjamin também fala em seu ensaio: a relação entre "mostrar" e "tocar" (Proust nunca "entra em contato", escreve ele).

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Duas frases

No ensaio que dá título à coletânea Crítica e verdade (lançada em 1966), Roland Barthes escreve:

Le curieux, c’est que les Français s’enorgueillissent inlassablement d’avoir eu leur Racine (l’homme aux deux mille mots) et ne se plaignent jamais de n’avoir pas eu leur Shakespeare.

O contexto é dado pela polêmica com Raymond Picard, acadêmico especialista em Racine que, em 1965, publica um texto intitulado Nouvelle critique ou nouvelle imposture?, dedicado a criticar dois trabalhos anteriores de Barthes: Sur Racine, de 1963, e Essais critiques, de 1964. De forma semelhante àquela que Alan Pauls identifica em El factor Borges (quando Borges utiliza as palavras críticas do hoje desconhecido Ramón Doll para definir e intensificar sua poética), Barthes faz da miopia de Picard a plataforma de lançamento da "nova crítica". 

Como é típico de Barthes, seu olhar vai em direção àquilo que falha e falta: não o orgulho por ter Racine, mas a tristeza por não ter Shakespeare (aquilo que falta é, por vezes, mais significativo do que aquilo que se presta imediatamente à visão e ao orgulho - nessa perspectiva, encontramos ecos de outras vozes muito ativas nos anos das primeiras publicações de Barthes, como Blanchot, Bataille, Lacan). Por alguma razão não muito clara, a frase de Barthes me faz pensar em outra frase, de Borges, hoje disponível no capítulo "Europa" de seu Ensaio autobiográfico (originalmente publicado no jornal La Opinión, em setembro de 1974, com o título Las memorias de Borges): 

Quizá, sin saberlo, siempre fui un poco británico. De hecho, siempre pienso en Waterloo como una victoria.

Um elemento que pode explicar essa associação é o conto tardio de Borges, "La memoria de Shakespeare", publicado em 1983 (e magistralmente comentado por Piglia em Formas breves), que não deixa de ser uma solução ficcional para a tristeza (argentina? de todos?) de não ter tido Shakespeare (algo que me remete de imediato a outra frase de Borges, no Atlas: "minha ignorância do grego é tão perfeita quanto a de Shakespeare").

domingo, 1 de novembro de 2020

O carrasco e a vítima


1) Em seu livro Imagens apesar de tudo, de 2004 (p. 48-50), Didi-Huberman resgata Georges Bataille e sua reflexão sobre a relação entre "vítimas e carrascos" no contexto da Shoah. Antes disso, Didi-Huberman prepara o terreno com uma reflexão de Blanchot, presente em seu A escritura do desastre: com os campos de concentração, surge o paradoxo do "invisível que foi para sempre tornado visível". É altamente significativo, continua Didi-Huberman, que Blanchot - o pensador da negatividade sem tréguas por excelência - não tenha aproximado a Shoah do "inimaginável" ou do "invisível" (como fizeram Sartre, que é o exemplo dado por Didi-Huberman, ou mesmo Heidegger, poderíamos acrescentar aqui).

2) Logo depois de citar o texto escrito por Bataille contra Sartre e suas noções sobre a question juive ("Sartre", de 1947), Didi-Huberman resgata outro texto de Bataille, que retornará em outros momentos da obra de D-H, intitulado "Réflexions sur le bourreau et la victime", "Reflexões sobre o carrasco e a vítima", também de 1947. "Não somos apenas as possíveis vítimas dos carrascos", escreve Bataille, "os carrascos são semelhantes a nós". O que faríamos se estivéssemos no lugar das vítimas? A fuga, a resistência, a desistência? O que faríamos se estivéssemos no lugar dos carrascos? 

3) Didi-Huberman comenta que Bataille entendeu, já em 1947, a necessidade de pensar a partir do possível e do semelhante - "falar dos campos como do próprio possível", o "possível de Auschwitz". Se o pensamento de Bataille se mantém na mais estreita proximidade desta terrível "possibilidade humana", escreve Didi-Huberman, "é porque ele soube enunciar desde o início, o nexo indissolúvel entre a imagem (a produção do semelhante) e a agressividade (a destruição do semelhante)". E Didi-Huberman ainda acrescenta em nota que o nexo entre o imaginário e a agressividade foi teorizado, "de um modo bastante próximo do de Bataille", por Jacques Lacan em um artigo de 1948, "A agressividade em psicanálise".   

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Dante e a burguesia


Dolf Oehler comenta, em seu livro O velho mundo desce aos infernos, a curiosa relação estabelecida por Flaubert com Dante, especialmente no que diz respeito a uma reflexão artística sobre uma classe dirigente decadente (que "desce aos infernos"). Da mesma forma, existe uma idealização do espaço urbano francês em Flaubert que passa por um registro duplo, simultâneo e dissociativo, tanto "realista" quanto "fantástico" (não é à toa que Foucault se refere à imaginação de Flaubert como um "fantástico de biblioteca"). A cidade francesa em Flaubert é tanto símbolo quanto "realismo".

Escreve Oehler: "Farner fala do Dante de Doré como de um 'Baedeker para a complicada viagem do inferno rumo ao céu', e acrescenta: 'Fugir para Dante e com Dante é o sonho dos burgueses', do mesmo modo que o é, pode-se completar, fugir para a natureza e com a natureza, para a Renascença e com ela, como faz o herói de Flaubert", e nesse ponto Oehler está fazendo referência a Educação sentimental. E ele continua: "o herói da Éducation não dispõe de uma memória fértil, mas dissociativa" (dissociação que é inerente ao método de Flaubert, eu acrescentaria). 

(Dolf Oehler, O velho mundo desce aos infernos, trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 1999, p. 401, notas 458 e 461)

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Cronotopo, século XIX



1) O ensaio de Benjamin sobre Proust ("A imagem de Proust", 1929) termina com uma sobreposição de visões: Benjamin aproxima a visão de Proust deitado em sua cama, escrevendo freneticamente, à visão de Michelangelo deitado nos andaimes enquanto pintava o teto da Capela Sistina. Ele parece reservar para o final, estrategicamente, "a imagem de Proust", uma imagem impura, dialética, na medida em que faz pensar em diferentes associações (o tempo do trabalho, a solidão, a grandiosidade) e leva a múltiplas direções simultaneamente (a sobreposição é um corolário da fórmula expressa por Benjamin um pouco antes, "ver e desejar imitar eram a mesma coisa").

2) Se Michelangelo está para Proust, a Recherche está para a Capela Sistina. Eis a doutrina das semelhanças, das correspondências que não se dão de imediato, que não se oferecem pacificamente (devem ser forçadas manualmente). É o trabalho que Proust faz a partir de Baudelaire e para além dele, escreve Benjamin - é Proust quem torna o século XIX visível, possível, inteligível, justamente quando ele não existe mais (especialmente porque ele não existe mais). É só a partir de Proust e da reconfiguração de espaço-tempo feita por ele que o século XIX pode ser "partilhado" (e disso decorre a possibilidade de Paris ser a "capital do século XIX"). Benjamin escreve que Proust transforma o século XIX em um "campo de forças" (já não é mais uma "simples época").

3) Essa ideia de Benjamin repercute em um ensaio de Hayden White de 1987 intitulado "O século XIX como cronotopo", no qual ele tenta o mesmo gesto: pensar a passagem do século XIX de uma "simples época" para um "campo de forças" (fazendo uso da categoria de Bakhtin). Aquilo que Benjamin faz de forma por vezes intuitiva (e com o foco restrito a um único autor), White tenta fazer de forma ampla, estrutural (aproveitando o trabalho já feito por Fredric Jameson em O inconsciente político, que cita, especialmente quando Jameson fala do cronotopo de Bakhtin como uma condensação das dimensões espaciais, temporais e socio-culturais, manejando tanto a persistência do antigo hegemônico quanto a ressurgência de conteúdos políticos latentes, subterrâneos, soterrados).

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sontag, 1964


1) No célebre ensaio de 1964, "Contra a interpretação", Susan Sontag posiciona em tensão duas possibilidades da arte: "dizer" e "realizar", ou seja, aquilo que solicita a explicação e aquilo que solicita a experiência, a vivência, a fruição. O viés do "dizer", que é o viés da interpretação, argumenta Sontag, tem sido historicamente privilegiado há séculos (e nisso o argumento de Sontag antecipa algumas das posições de Derrida - o ensaio sobre a estrutura, o signo e o jogo é de 1966), desde os gregos, passando pela reconfiguração do Antigo Testamento pelos primeiros cristãos, até chegar na articulação entre conteúdo manifesto e conteúdo latente em Marx e Freud. 

2) A admiração de toda uma vida que Sontag nutria por Barthes não é por acaso: ela percebe nele uma constante atenção à arte do presente e percebe nisso um motor para a crítica (o contato de Barthes com Brecht é o primeiro exemplo forte de reconfiguração de sua crítica a partir da arte). "Contra a interpretação" é o primeiro esforço consciente, público e consolidado de Sontag de transformar o próprio pensamento crítico a partir da arte do presente: os filmes de Elia Kazan, Bergman e Resnais, os romances de Robbe-Grillet e "o ensaio de Randall Jarrel sobre Walt Whitman", entre outros. A arte do presente não pede o cancelamento da interpretação, até porque Sontag sabe que isso é impossível; pede uma reconfiguração e uma expansão da possibilidade de interpretação e mesmo uma desnaturalização da imposição da interpretação (nesse aspecto, mais uma vez faz pensar em Derrida e na ideia de que sempre falamos do interior da metafísica).

3) Em certos momentos a linguagem metafísica em Sontag é flagrante - quando fala da "coisa em si", por exemplo, ou quando fala da obra de arte com aparência "unificada e limpa". Ao mesmo tempo, há um conflito claro entre as referências que ela escolhe elencar: ao mesmo tempo em que elogia o trabalho de Benjamin sobre Leskov (sem, contudo, apontar exatamente o que Benjamin "faz ver" em Leskov que seja pertinente para um paradigma "contra a interpretação"), elogia também o trabalho de Erwin Panofsky, a quem Georges Didi-Huberman, por exemplo, critica em termos semelhantes aos usados por Sontag em seu ensaio de forma geral (em Diante da imagem, de 1990, Didi-Huberman ressalta as articulações "claras, limpas e racionais" de Panofsky diante dos objetos artísticos, "sobredeterminados" por um "neokantismo" disciplinatório).   

domingo, 18 de outubro de 2020

Logos & Bios

Além de soldado e bebedor inveterado, Sócrates foi um instaurador de discursividade, para usar a terminologia do Foucault da Ordem do discurso. O Fedro mostra a performance de uma posição que era tanto simbólica quanto prática: Sócrates caminhando e conversando nas margens da cidade, ocupando uma espécie de limite (valorizando a vida na cidade e, ao mesmo tempo, gozando das benesses da natureza). Outro traço fundamental de Sócrates é sua insistência em andar de pés descalços: indicação de sua forte e íntima ligação com o lado mundano da experiência, com o mundo fenomênico (em consonância com seu gosto pela comida e pela bebida).

Assim como Nietzsche antes dele, Foucault abertamente seleciona Sócrates como um modelo (de vida e de trabalho, simultaneamente). No seminário intitulado A coragem da verdade, Foucault retoma Sócrates, reconta parte de sua biografia, a cena de sua morte, a consistência de sua posição desconfortável diante do poder estabelecido. Para Foucault, a trajetória de Sócrates mostra um peculiar equilíbrio entre logos e bios, ideia e existência, pensamento e experiência (é curioso e irônico que as últimas aulas dadas por Foucault em sua vida tenham sido justamente sobre Sócrates, sobre a trajetória de Sócrates, sua relação com a verdade e sobre a cena de sua morte como um corolário de uma longa batalha contra a falsidade). 

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Beginnings

Em seu ensaio "Foucault Decodificado", Hayden White (além das críticas e reservas) busca em Foucault certos traços de uma reconstrução potente da "imaginação humana" (na esteira de Nietzsche), ou seja, pistas que indiquem um espécie de cenário pós-erradicação do humano/humanismo. Nessa perspectiva, Foucault é considerado insuficiente, e White retorna a Vico, capaz de oferecer um instrumental de renovação da imaginação humana (pois Vico é, para White, o teórico do eterno retorno dos modos retóricos de representação da realidade). 

White encontra um espírito correlato em Edward Said, leitor não só de Foucault como de Vico. Em 1976, White publica uma resenha de Beginnings, livro de Said, intitulada "Criticism as Cultural Politics", resgatando parte dos atores de outrora: como é possível começar de novo, pergunta Said a partir de Nietzsche (escreve White), sugerindo que tal "possibilidade" não está nem na intensificação do uso da razão, nem em um método de veiculação irrestrita da emoção (ou do irracional), mas na criativa oscilação de um número restrito de métodos e modelos de explicação do mundo e da tradição (não por acaso o modelo para Metahistória, de White, é o Mimesis de Auerbach, entusiasticamente levado como modelo também por Said ao longo de toda sua produção). 

sábado, 10 de outubro de 2020

Apenas começando


1) Há tempos conhecemos as teses de Ricardo Piglia sobre o conto - a teoria do iceberg de Hemingway, a noção de que todo relato conta duas histórias, uma superficial, a outra subterrânea. Sabemos também que Piglia inicia sua argumentação com Tchékhov e a anedota breve (vinda de seu caderno de anotações) do homem que ganha um milhão em Montecarlo, volta para casa e se suicida (é interessante notar que um dos contos longos de Tchékhov, característicos da produção de fins da década de 1890, intitulado "Em serviço", circula ao redor de um cena incompreensível de suicídio). O relato moderno, escreve Piglia, deixa as justificativas e resoluções em aberto, em suspensão e assim por diante.

2) É digno de nota, contudo, que a noção do relato que conta duas histórias (uma delas latente) já está em Tchékhov, já está em "A dama do cachorrinho", talvez seu conto mais célebre, já está no início da quarta seção daquele que é talvez seu conto mais célebre. Em uma conversa com a filha, Gurov explica por que no inverno não há trovoadas e, no processo, reflete que "levava duas vidas", uma delas evidente, "vista e conhecida por todo mundo", e a outra transcorrendo em segredo. Tudo que importava para ele, continua Gurov (através do discurso indireto livre meticulosamente calibrado de Tchékhov), acontecia na segunda vida, naquela oculta, uma "existência privada" apoiada no segredo ("sob as trevas da noite").

3) Tchékhov, portanto, não só prefigura a teoria do iceberg de Hemingway e a elaboração em tese de Piglia (no sentido criativo da figura: sem as teses de Piglia, a reflexão de Gurov "diria" outra coisa, diversa) como elabora dentro do próprio relato uma crítica (um comentário) à noção da narrativa dúplice: o conto narra a trajetória de consolidação dessas duas camadas simultâneas de vida (vida de casados x vida de amantes), a convivência tensa desses dois registros (privado x público), e em alguns momentos insinua a junção dos dois registros, até que, por fim, na última frase, anuncia que o mais difícil estava "apenas começando" (ou seja, Tchékhov já incorpora ironicamente uma referência à noção de "final aberto", "relato em suspenso").

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Figurações


1) A interpretação "figural" de que fala Auerbach em Mimesis: a ideia de que um evento do passado possa prefigurar um evento do futuro (no contexto bíblico, a ideia de que Davi prefigura Cristo e que a arca de Noé prefigura a Igreja do futuro). É impossível entender Dante sem entender o método figural, defende Auerbach (o que me faz pensar em outro leitor de Dante, contemporâneo de Auerbach, Jorge Luis Borges: um dos fios que sustentam a argumentação de "Kafka e seus precursores", por exemplo, é justamente o da figuração/prefiguração: se não existisse Jesus, Davi não prefiguraria aquilo que não existe; da mesma forma, se Kafka não existisse, Bartleby seria prefiguração de qualquer outra coisa, mas não do sistema de adiamento angustiado de O Castelo).  

a) (o próprio procedimento da interpretação figural diz respeito a um gesto de adiamento - por mais que o próprio Auerbach, na condição de filólogo, não tenha avançado nesse tipo de especulação. Se a Comédia de Dante é, ao mesmo tempo, prefiguração da Comédia de Balzac, e refiguração da Eneida de Virgílio, isso quer dizer que a tradição é um work in progress, um efeito da acumulação de "leituras fortes" (nos termos de Harold Bloom) ao longo do tempo)

2) Em um ensaio chamado "The Rhetoric of Interpretation", Hayden White propõe uma peculiar aplicação da interpretação figural de Auerbach (que ele, de resto, utiliza em vários outros textos): lendo a Recherche de Proust, White separa uma série de cenas em jardins (que disparam o curto-circuito de uma série de oposições: palavra e silêncio; interioridade e exterioridade; campo e cidade; palavra e imagem) que encadeiam um complexo sistema de prefiguração, figuração e refiguração (o sentido oferecido pelo conjunto de cenas nunca é completo, na medida em que elas estabelecem um regime de figuração e contra-figuração virtualmente infinito: toda figura que se apresenta requisita uma atualização no futuro).

b) (a frase inicial de Tolstói em Anna Karienina, por exemplo, Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira, é um bom exemplo de uma figura que se refrata e atualiza inúmeras vezes ao longo da narrativa, sendo constantemente modulada e ressignificada)

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Usos do passado


1) No centro da crítica de Carlo Ginzburg a Hayden White (feita em 1990 no evento de Friedlander) estava, mais uma vez, o fantasma do fascismo. A reflexão de Ginzburg percorria um caminho já feito muitas vezes antes no que diz respeito a Nietzsche - será que as ideias de White sobre a possibilidade de intervenção imaginativa sobre o presente não podem ser usadas pelo totalitarismo? O cenário é construído por Ginzburg a partir de uma comparação meticulosa entre as ideias/posturas de White e aquelas de Giovanni Gentile (The self-styled "philosopher of Fascism", como diz a Wikipedia). 

2) Assim como Gentile (e Nietzsche, sem dúvida, digo eu), White (argumenta Ginzburg) defende o uso criativo, imaginativo e político do passado - o problema reside na instrumentalização que regimes totalitários podem realizar da ideia (uma questão, de resto, que White aponta desde seus primeiros textos, que respondem precisamente à ênfase totalitária do governo dos Estados Unidos nos anos 1960 - e, de forma ampla, a questão se articula com a proposição de White de que a escrita da história deve ser sempre present-oriented).

3) A tensão entre Ginzburg e White (ao redor do fascismo) é, de resto, a tensão que percorre o pensamento do século XX - desde a virada do século e suas primeiras décadas (a tríade Nietzsche-Hitler-Heidegger), por exemplo, até os seminários de Derrida sobre a pena de morte e os rogue states. Do lado de Ginzburg, estão duas referências centrais cujos trabalhos respondem diretamente aos projetos totalitários: Auerbach e Bakhtin. Do lado de White, o intenso corpo-a-corpo com o estruturalismo de Lévi-Strauss (e, em parte, de Michel Foucault) e a atraente ideia da história como efeito de superfície da estrutura (ou seja, o sujeito não como aquele que manipula a contingência, mas que é manipulado por ela). 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

O aniversário de Döblin


 14 de agosto de 1943

Helli organizou uma festa para comemorar os 65 anos de Döblin. Heinrich Mann dirigiu-lhe uma bela saudação, Kortner, Lorre, Granach leram trechos dos livros dele. Blandine Ebinger cantou chansons berlinenses, Steuermann executou um tema de Eisler ao piano, e no fim Döblin fez um discurso contra o relativismo moral e a favor de padrões fixos de natureza religiosa, e com isso melindrou os sentimentos irreligiosos da maioria dos convidados. Uma sensação incômoda se apossou dos seus ouvintes mais racionais, algo como o indulgente horror experimentado quando um companheiro de prisão sucumbe à tortura e fala.

O fato é que Döblin recebeu alguns golpes duríssimos, a perda de dois filhos na França, uma epopeia de 2.400 páginas que nenhum editor publicará, angina pectoris (a grande curadora de almas) e a vida ao lado de uma mulher incrivelmente tola e vulgar. O declamador Hardt cometeu um lapso revelador. Estava recitando a "Oração de Zoroastro" de Kleist e, em vez de dizer "que eu tenha forças para relevar os erros e as tolices de minha espécie", trocou "espécie" por "esposa" no apelo solene: Döblin e a mulher tinham passado o fim de semana na casa de Hardt. 

Quando Döblin começou a dizer que, a exemplo de muitos outros escritores, também ele era culpado da ascensão dos nazistas ("O senhor não disse, Sr. Thomas Mann, que ele é como um irmão, ainda que um mau irmão?", perguntou à primeira fila) e depois continuou obstinadamente a perguntar por que era assim, por um momento tive a infantil convicção de que ele diria "porque acobertei os crimes da classe dirigente, desencorajei os oprimidos, iludi com canções os famintos" etc, mas tudo que fez foi anunciar com teimosia, sem arrependimento ou pesar, "porque não procurei Deus".

(Bertolt Brecht, Diário de trabalho, volume II, 1941-1947, trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo, Rocco, 2005, p. 194-195)

sábado, 26 de setembro de 2020

Objeto do objeto


1) Em seu ensaio sobre a coleção e o colecionismo, Gérad Wajcman fala rapidamente de Lolita, de Nabokov. O que está em questão para ele é o estatuto do objeto, seja na troca psicanalítica, seja na dinâmica específica do colecionismo (o objeto único que se repete indefinidamente no desejo do colecionador de expandir a coleção, e assim por diante). O que há de mais escandaloso no romance de Nabokov, escreve Wajcman, não é tanto a sedução da menina quanto a transformação de Humbert Humbert em objeto: ele é reduzido ao estado de objeto pelo próprio objeto de seu desejo (a partir de Freud e Lacan e da discussão sobre o fetichismo, Wajcman mostra como Nabokov sempre apresenta os personagens de forma "objetal", em partes, em seções específicas, como que recortados de um todo).

2) No seminário sobre Subjetividade e verdade (janeiro a abril de 1981), Foucault apresenta uma extensa reconstrução do contato entre paganismo e cristianismo pelo viés do casamento, da sexualidade e do desejo. A valorização do casal, do casamento e da fidelidade não é invenção cristã, escreve Foucault, e sim uma herança anterior, aprimorada especialmente pelos estoicos (Musônio Rufo é o principal nome na argumentação de Foucault). Um dos elementos responsáveis por essa transformação estrutural é o manejo do desejo: o homem, que no passado mostrava sua virilidade pela expansão do desejo (em direção a escravos e escravas, por exemplo), passa a ser valorizado (na doutrina de Rufo) por sua capacidade de controlar o próprio desejo. Em vários momentos a glosa de Foucault se aproxima dos termos usados por Wajcman: o homem que não controla o próprio desejo (restringindo o sexo ao casamento) é passivo e não ativo, é um objeto controlado pelo próprio desejo.

3) Escreve Foucault na página 238: "No sistema de que estou lhes falando - que genericamente é o sistema estoico, mas que vocês encontram também em autores que não o são especificamente -, a relação de domínio não é o que vem impedir em seu termo, o que vem impedir em seus abusos ou em seus excessos o domínio sobre o outro. A relação consigo torna-se a condição prévia para se ter direito ao domínio sobre os outros. E, consequentemente, dominar a si mesmo, em particular ter domínio sobre seu desejo, é a condição fundamental". 

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Hitler no Reader's Digest



 21 de abril de 1942

Mandei um artigo sobre Hitler para a série "Meu personagem inesquecível" do Reader's Digest (3 milhões e meio de exemplares vendidos). Foi prontamente devolvido. Me diz Feuchtwanger que Thomas Mann e Werfel, que tem feito muito sucesso aqui, tiveram suas colaborações devolvidas também. A revista submete a colaboração dos leitores a meia dúzia de especialistas. Um verifica se a coisa é marrom, um segundo se fede, um terceiro se não há nela torrões duros etc. E assim é severamente examinada para se ter certeza de que é merda de verdade antes de ser aceita. (Especialista em suspense, especialista em caracterização, especialista em "fidelidade à vida" etc).


(Bertolt Brecht, Diário de trabalho, volume II, 1941-1947, trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo, Rocco, 2005, p.91)

domingo, 20 de setembro de 2020

Língua morta, intempestiva


1) Corre um claro influxo nietzscheano na representação da I Guerra Mundial oferecida por Kusniewicz em Lição de língua morta: o protagonista, tenente que aos poucos morre de tuberculose em uma cidade do interior, volta e meia começa a pensar na degradação do ambiente histórico e da moral europeia, por vezes dividindo o mundo entre aqueles que seguem em direção ao abate de forma passiva e aqueles que se sentem prontos para fazer o que deve ser feito para a renovação do ser (de resto, são inúmeros os autores que falam do Zaratustra como leitura recorrente nas trincheiras durante o conflito - Wittgenstein, por sua vez, lia os Evangelhos recontados por Tolstói...).

2) Repare no complexo jogo de escalas dentro da cronologia: Kusniewicz, em 1977, publica um romance sobre a I Guerra Mundial dentro do qual se apresenta (sempre de forma "extemporânea", "intempestiva") uma encenação, um performance textual decorrente de certas ideias de Nietzsche de 1874 (precisamente a consideração Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida). Para além do próprio conteúdo da reflexão, portanto, a falta de encaixe entre gesto e realização, entre presente e passado faz parte da lição de Nietzsche atualizada por Kusniewicz (Derrida, Marx e Shakespeare: time is out of joint).

3) O tenente acompanha o trabalho de um contingente de prisioneiros russos: "trabalho também foi feito do outro lado do riacho, no pequeno cemitério onde, por ordem das autoridades militares, todos os cadáveres exumados ou nunca enterrados foram transportados, espalhados pela mata ou enterrados aqui e ali da melhor maneira possível: na orla dos campos e caminhos, perto dos trilhos, no pátio das fazendas. O tenente se aproximou para ver melhor. Mas imediatamente teve que tirar do bolso o lenço com o monograma bordado, levemente impregnado de água-de-colônia, e levá-lo ao nariz: o cheiro de podridão era muito penetrante. Os corpos sem nome, encontrados ou exumados, datavam de diferentes períodos" (p. 72-73). O choque não se dá apenas entre o lenço perfumado e o cenário de mortandade; está condensado também nessa variada proveniência dos corpos, indicando, mais uma vez, a sobreposição de temporalidades encenada pelo romance. 

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Augustus Rex


1) Lição de língua morta, o romance de Kusniewicz, é uma reflexão sobre o fim de um mundo determinado, específico (uma reflexão escrita depois do fato - da I Guerra Mundial - mas cuja narrativa se posiciona no processo de derrocada). O protagonista, um oficial do Exército do Império Austro-Húngaro (o mundo de Joseph Roth), vive seus últimas semanas de vida durante o período que também marca as últimas semanas de duração da guerra (e, por consequência, as últimas semanas de duração do Império). Trata-se, portanto, de uma alegoria em camadas, dentro da qual o destino individual do corpo do oficial espelha o destino do corpo coletivo, do corpo nacional).

2) Diante dessa derrocada, o que faz o protagonista? Ele aproveita sua posição privilegiada diante da destruição promovida pela guerra para coletar artefatos artísticos: estátuas, quadros, ícones religiosos russos, pratos de porcelana de Meissen e assim por diante. Nesse aspecto, a pulsão colecionadora do tenente faz pensar em Utz, de Bruce Chatwin, com a diferença que a coleção de Kaspar Utz se amplia muito mais no tempo e no espaço (as duas coleções, contudo, só existem por conta das guerras e das perseguições). 

3) O tenente de Lição de língua morta é convidado para comer na casa de um funcionário, o "superintendente de florestas" Szwanda: "de repente, um lampejo: o que é aquilo?", escreve Kusniewicz. "Aqui, uma tal maravilha? Meus olhos me enganam? Ali, na parte inferior da escada da varanda, desponta incrustado de lama e ração de frango, estampada com pés de galinha, um autêntico, absolutamente autêntico prato de Meissen". O tenente, maravilhado pela descoberta, se ajoelha no chão e analisa o prato: "encontra a confirmação daquilo que já sabia: uma data, sim, há inclusive uma data: 1713, e ao lado, gravadas na porcelana, as letras A. R., Augustus Rex, naturalmente!".

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Detritos


1)
Andrzej Kusniewicz publica Lição de língua morta em 1977, mesmo ano dos Fragmentos de um discurso amoroso, de Barthes, e de Alguien que anda por ahí, de Cortázar. Assim como em seu romance anterior, O rei das duas Sicílias, de 1970, Kusniewicz retorna ao Império Austro-Húngaro e à I Guerra Mundial. Como já escreveu Sergio Pitol sobre esses escritores "nascidos sob a órbita habsbúrgica", "o triestino Italo Svevo, o croata Miroslav Krleza, o polonês Bruno Schulz", que mostram "a decomposição e a precariedade de seu mundo", "um pesadelo atroz crescia atrás das impecáveis fachadas da administração; a rotina convertia o prazer em uma careta muito parecida com a da dor. Onde se escrevia plenitude, se anunciava o vazio. No interior do museu em que corria a vida, reinava a morte".

2) Kusniewicz, em seu romance Lição de língua morta, se ocupa de um mundo que será, de certa forma, a base do mundo de artistas como Joseph Cornell ou Sebald (que se ocupam dos resíduos e detritos de um mundo que não existe mais, já destruído). Durante a I Guerra Mundial, cenário do romance de Kusniewicz, o mundo ainda está sendo destruído, vive o processo de destruição, e seu protagonista acompanha esse processo de uma perspectiva privilegiada:

- não se preocupa com as glórias militares porque sabe que está condenado;
- sabe que, caso sobreviva à guerra, a tuberculose certamente o matará;
- por um acaso feliz nos meandros da burocracia militar, ele trabalha longe do fronte;
- trabalha nos "esquadrões punitivos" que atuam atrás das linhas, caçando sabotadores, resistentes e desertores;

3) Não é só o mundo tal como se conhece que está à beira da destruição no romance; é também a própria guerra, veículo e justificativa da destruição, que se encaminha para seu final, seu esvaziamento - de certa forma, conteúdo e continente se mesclam, cruzam seus registros: o alívio pelo fim da guerra se mescla ao terror diante do fim do mundo tal como se conhece. De certa forma, o romance de Kusniewicz começa exatamente no ponto em que A montanha mágica, de Thomas Mann (romance publicado em 1924), termina: acompanhamos toda a vida de Hans Castorp no sanatório e somos surpreendidos com a guerra e com sua partida para a batalha; em Kusniewicz, por outro lado, vivemos a guerra com o tenente Kiekeritz, e tanto sua tuberculose quanto sua vida prévia são detalhes muito eventualmente evocados. 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

No exílio


1)
Tchékhov deixou a ilha de Sacalina em outubro de 1890 com lembranças muito desagradáveis: "agora que sou capaz de contemplá-la em retrospecto, a ilha me parece um verdadeiro inferno". A publicação de seu relato causou um escândalo público tão grande que levou o governo a instaurar uma comissão secreta para discutir o futuro da colônia penal.

2) No conto "No exílio", de 1892, Tchékhov narra os longos anos de banimento na Sibéria de um velho ferroviário: um de seus companheiros afirma a certo ponto que ele "já não é um ser vivo, é uma pedra, argila". A última parte do conto "O assassinato", de 1895, se passa em Sacalina, com o assassino condenado carregando carvão e sonhando em voltar para casa. 

3) Depois da obra de Tchékhov, uma série de trabalhos autobiográficos, etnográficos e jornalísticos surgiram: No mundo dos excluídos, de Piotr Iakubovitch (1896), e Sacalina, de Vlas Dorochevitch (1903). A mais influente condenação do exílio siberiano foi o último grande romance de Tolstói, Ressurreição, um retrato sem rodeios das condições degradantes na Sibéria.


terça-feira, 8 de setembro de 2020

Enfermaria nº 6


1) Tchékhov e Nietzsche, contemporâneos: o primeiro nasce em 1860 e morre em 1904; o segundo nasce em 1844 e morre em 1900 (o primeiro se formou médico; o segundo atuou como assistente de enfermagem na Guerra Franco-Prussiana, 1870-1871). Dois traços peculiares permitem a aproximação: um traço formal (o uso da forma breve, do corte, da elisão, seja nos contos, seja nos aforismos) e um traço moral, que repercute em uma visão do humano e da sociedade (ambos são profundamente descrentes das aparências, das convenções naturalizadas que governam as interações e a própria automodelagem dos sujeitos).

2) Um conto como "Enfermaria nº 6", por exemplo, um dos mais conhecidos e comentados de Tchékhov, é acentuadamente nietzscheano: a história coloca em primeiro plano uma sorte de radiografia do pacto social a respeito da loucura e das instituições reservadas para a manutenção dos corpos dos insanos. Um médico idoso é punido pela sociedade e seus pares por conta de sua aproximação excessiva da loucura - sua amizade com um interno da Enfermaria coloca em risco toda a arquitetura do pacto social, e a única solução é fazer do médico também um louco, encarcerando-o (o que faz pensar também no típico mecanismo totalitário de perseguir antigos aliados).

3) Existe também uma ambivalência operando (no conto mas também em toda a obra de Tchékhov, e também no pensamento de Nietzsche) na relação entre interior e cidade: Tchékhov faz questão de frisar que a cidade em que tudo acontece é distante da estação, do trem, da "civilização". Por outro lado, há um claro distanciamento entre os dois: o narrador de Tchékhov em "Enfermaria nº 6" em momento algum se aproxima ou se identifica com o discurso do louco (ele é uma figura pitoresca quase que de terceiro grau - pois funciona apenas como chamariz da "loucura" do médico idoso, e nunca de forma independente, "gratuita", pelo simples gosto do dispêndio, para falar com Bataille), algo que, da parte de Nietzsche, é reivindicado e exercitado (Zaratustra). 

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Riso-esquizo


"Aqueles que leem Nietzsche sem rir, e sem rir muito, é como se não lessem Nietzsche. Isto não é verdadeiro somente em relação a Nietzsche, mas em relação a todos os autores que fazem precisamente este mesmo horizonte de nossa contracultura. O que mostra nossa decadência, nossa degenerescência, é a maneira pela qual experimentamos a necessidade de situar a angústia, a solidão, a culpabilidade, o drama da comunicação, todo o trágico da interioridade.

Mesmo Max Brod conta como os ouvintes eram tomados pelo riso quando Kafka lia O Processo. E Beckett também é difícil de ler sem rir, sem passar de um momento de alegria a outro. O riso, e não o significante. O riso-esquizo ou a alegria revolucionária é o que sobressai dos grandes livros, ao invés de angústias de nosso pequeno narcisismo ou terrores de nossa culpabilidade. Pode-se chamar isso de 'cômico do além-do-humano', ou então 'palhaço de Deus', há sempre uma alegria indescritível que jorra dos grandes livros, mesmo quando eles falam de coisas feias, desesperadoras ou terríveis"

(Gilles Deleuze, "Pensamento nômade", in Nietzsche hoje? (seleção e apresentação de Scarlett Marton), São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 63-64)
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"Nossa companheira, a esposa de um oficial da Marinha, tinha fugido de Vladivostok assustada com o cólera, e agora, já um pouco mais tranquila, fazia o caminho de volta. Tinha um caráter invejável. Bastava o motivo mais irrelevante para ela desatar a risada mais sincera e jovial, e ria até rebentar, até chorar; começou a contar alguma coisa, com sua dicção diferente, que velarizava o r e o l, e de repente gargalhou, a alegria jorrava em esguichos e, quando olhei para a dama, comecei a rir também e, depois de mim, Irákli e o japonês rira. 'Puxa!', disse o comandante, rendendo-se afinal, também contagiado pelo riso.

Com certeza, no estreito da Tartária, lugar em geral soturno, nunca antes foram ouvidas tantas gargalhadas. Na manhã do dia seguinte, no convés, o hieromonge, a dama, o japonês e eu nos reunimos para conversar. De novo, as risadas, e pouco faltou para que as baleias, pondo o focinho para fora da água e olhando para nós, começassem a gargalhar"

(Anton Tchékhov, A ilha de Sacalina, trad. Rubens Figueiredo, São Paulo, Todavia, 2018, p. 197)

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Colônias penais


Penso nos fios subterrâneos que ligam Tchékhov e Bruce Chatwin, na capacidade proliferadora da literatura, que de um elemento por vezes simples, banal, promove uma espécie de disparo rizomático virtualmente infinito. Em primeiro lugar, a vida breve de ambos - o que teriam escrito se tivessem vivido mais dez, vinte anos? Mais especificamente, o incrível trabalho de escritores-viajantes de ambos - no caso de Tchékhov, a ilha de Sacalina, esse pedaço inóspito de terra ao norte do Japão que ele vista em 1890.

O relato do russo faz pensar em O rastro dos cantos, de Chatwin, por uma série de razões: antes de mais nada, a coincidência de dois lugares utilizados como colônias penais, a Austrália pelos britânicos, a Ilha de Sacalina pelos russos. Outro detalhe que aproxima os dois projetos e a preocupação dos escritores-viajantes com a população originária - no caso de Chatwin, a vivência dos aborígenes é o que dá título ao livro; no caso de Tchékhov, uma parte considerável do seu relato gira ao redor das especificidades de ainos e guiliaques. 

O fascínio com as colônias penais serve também para aproximá-los de uma figura intermediária, Kafka (Tchékhov morre em 1904, Kafka em 1924 e Chatwin nasce em 1940), outro viajante (embora mais comedido), outra figura do trânsito. A colônia penal é um dos tantos avessos monstruosos do projeto iluminista da colonização e da "civilização" dos espaços distantes (de resto, também Kafka se interessava, como os outros dois, pela experiência do outro, do nativo, do autóctone - basta pensar no conto "Wunsch, Indianer zu werden", já traduzido como "Desejo de ser índio" ou "O desejo de ser pele vermelha").